A VEJA e o meu pai. Por Roberto Efrem Filho
Hoje, dia 10 de junho do ano de 2008, foi o dia em que meu pai cancelou a
renovação da Revista VEJA. É bem verdade que há fatos históricos um tanto quanto
mais importantes e você deve estar se perguntando "o que cargas d’água eu tenho
a ver com isso?". Não é nenhuma tomada de Constantinopla, queda da Bastilha ou
vitória da Baia dos Porcos. É um ato de pequenas dimensões objetivas, realizado
no espaço particular de uma família de classe média brasileira, sem relevantes
conseqüências materiais para as finanças da Editora Abril, sem repercussões no
latifúndio midiático nacional. A função deste texto, portanto, é a de provar que
meu pai é um herói.
A Revista VEJA se diz assim: "indispensável ao país
que queremos ser". Começa e termina com propagandas cujo público alvo é a classe
média e, nela, claro, meu pai. Banco Bradesco, Hyundai, H. Stern. Pajero, Banco
Real, Mizuno. Peugeot, Aracruz, Nokia. Por certo, a classe média – inclusive meu
pai – dificilmente terá acesso à grande parte dos bens expostos na vitrine de
papel. Não importa. Mais do que o produto, a VEJA vende o anseio por seu
consumo. Melhor: credita em seu público-alvo, a despeito de quaisquer
probabilidades, a idéia de que ele, um dia, chegará lá.
Logo no comecinho, na terceira e quarta folhas, estão
as páginas amarelas da Revista. Nelas, acham-se as entrevistas com
personalidades tidas como renomadas e com muito a dizer ao país. Esta semana a
VEJA apresenta as opiniões de Patrick Michaels (?), climatologista
norte-americano que afirma a inexistência de motivos para temores com o
aquecimento global. Na semana passada, deu-se voz ao "jovem herói" Yon
Goicoechea (?), um "líder" estudantil venezuelano oposicionista de Chávez e
defensor da tese de que a ideologia deve ser afastada para que a liberdade seja
conquistada contra o regime "ditatorial" chavista.
Não. Não é que a VEJA não conheça o aumento dos
níveis dos mares, dos números de casos de câncer de pele, do desmatamento da
Amazônia, da escassez da água e dos recursos naturais como um todo e de suas
conseqüências na produção mundial de alimentos. Sim, ela conhece. Não. Não é que
ela não saiba que um estudante não representa sozinho o posicionamento
democrático de uma nação e que um governo legitimamente eleito não pode ser
chamado de totalitário. Sim, ela sabe. Do mesmo modo que conhece e sabe da
existência de diferentes opiniões (ideológicas, como tudo) sobre ambos os
assuntos e não as manifesta. Acontece que isso ela também vende: o silêncio
sobre o que não é lucrativo pronunciar.
Do meio pro final da Revista estão os casos de
corrupção. Esta é a parte do "que vergonha, meu filho, quando isso vai parar?"
dito pelo meu pai, com decepção na voz. A VEJA desenvolve um movimento
interessante de despolitização nesse debate. Ela veste o figurino do combatente
primeiro da corrupção, aquele sujeito que desvendará as artimanhas, denunciará
os ladrões e revelará "a" verdade, única, inabalável. Com isso, a VEJA confere
centralidade à corrupção no debate político, transformando a política em caso de
polícia e escondendo o fato de que o seu próprio exercício policialesco é
inerentemente político.
No fim, "todo político é ladrão" – menos os do PSDB,
claro, todos "intelectuais" -, "política não presta", o que presta mesmo é a
Revista VEJA. A Revista é ainda permeada por textos de cronistas e colunistas.
Estão, entre seus autores, Cláudio de Moura Castro, Lya Luft e Roberto Pompeu de
Toledo. Todos dignos do título de "cidadão de bem", conscientes e responsáveis.
Evidentemente, todos de posicionamentos um tanto moralistas e um tanto
conservadores. Difere-se deles Diogo Mainardi. Este, conhecido por chamar o
Presidente da República de "minha anta" e por sua irreverência desrespeitosa e
direitista, escancara a alma da VEJA. Mas não se engane. Não é Mainardi o
perigo. São os outros.
Foram eles que meu pai um dia leu com respeito e é
aquela auto-imagem que a VEJA quer – como tudo – vender. Sem dúvida a Revista
VEJA é ainda mais que isso. Suas estratégias de persuasão vão muito além dos
limites deste breve texto. Afinal, é ela a revista mais lida no país, parte
significativa de um império da concentração do poder de informar. Seja nas suas
"frases da semana", nas quais há de costume as fotografias de uma mulher bonita
dizendo bobagem e de um homem-autoridade falando coisa inteligente e importante,
seja no fetiche da citação "eu li na VEJA", faz-se ela um dos mais eficazes
instrumentos de convencimento a favor da classe dominante.
Meu pai, por sua vez, é um trabalhador. Casado com
Fátima, minha mãe, e pai também de Rafael, criou seus filhos com princípios que
ele preserva como inalienáveis. Já votou no PT. Já votou no PSDB e mesmo no PFL
("porque foi o jeito, meu filho!"). Opõe-se a qualquer tipo de ditadura
(conceito no qual incluía até pouco tempo o governo de Chávez: coisas da VEJA).
Já se disse socialista, na juventude. É praticante da doutrina espírita desde
menino. Discorda de mim em milhares de coisas. Concorda noutras. É um bom e
sonhador homem com quem eu quero sempre parecer.
Hoje, ele cancelou a renovação da Revista VEJA,
aquilo que para ele já foi seu meio de conhecimento do mundo, depois de chamar
de "idiota" a entrevista daquele herói das páginas amarelas sobre o qual falei
acima. Antes, havia criticado fortemente um artigo de Reinaldo Azevedo publicado
na Revista, em que Azevedo falava
atrocidades sobre Paulo Freire: "meu filho, veja que besteira esse homem está
dizendo sobre Paulo Freire".
Hoje, ele operou uma mudança nesta realidade tão
acostumada à perpetuação do estabelecido. Hoje, para o mundo, como em todos os
dias da minha vida para mim, meu pai é um herói.
Roberto Efrem Filho é mestrando em direito
pela UFPE e filho de Roberto Efrem, a quem dedica este
artigo.