ACM cursou medicina pulando a janela! Por Marconi De Souza Reis
A história que eu vou narrar aqui é inédita e sensacional, que deveria ser publicada há duas décadas, mas só tomei conhecimento no último dia 1º de março de 2018. Para contextualizá-la, porém, terei que fazer um resumo do que ocorreu há exatos 20 anos. Acompanhe-me:
No ano de 1998, eu publiquei uma série de reportagens, que denunciou o ingresso de mais de 200 estudantes nos cursos de Direito e Medicina da UCsal e Ufba, sem prestar o vestibular. E mais: todos esses “janeleiros”, como ficaram conhecidos, eram filhos de autoridades da Bahia.
Eu recebi tanta ameaça de morte, que o jornal A Tarde decidiu interromper a série e me enviar para um cruzeiro na Europa e África. E eu fui com a minha esposa. Mas agora, 20 anos depois, eu compreendi que a viagem no navio de luxo foi uma forma de me desviar do núcleo duro daquela tramoia.
A série de reportagens foi batizada de “Janeleiros” pelo diretor de Redação do jornal A Tarde, jornalista Cruz Rios, que caía na gargalhada a cada matéria publicada. Mas ele jamais me explicava o porquê de ter escolhido aquele título. Quando eu concorri aos prêmios de jornalismo, mudei o nome da série para “Golpe das Liminares”.
Na verdade, eu não gostava do título “Janeleiros”. Achava chulo, tosco, mas foi com esse nome que as reportagens ficaram famosas, foi o assunto mais comentado na Bahia, e com repercussão no Jornal Nacional, Isto É, Veja, Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo, O Globo, Jornal do Brasil, enfim, correu o Brasil afora.
O golpe consistia no seguinte: os estudantes prestavam vestibular na UCSal e na Ufba, para os cursos de Direito e Medicina, mas eram reprovados. Na época, só existiam praticamente essas faculdades na capital baiana. Então esses candidatos reprovados viajavam para outros estados, onde algumas faculdades privadas possuíam mais vagas do que candidatos.
As mais famosas eram as faculdades Estácio de Sá, em Niterói (RJ), a Unimar, em Marília (SP) e a Tiradentes, em Aracaju (SE). A lista que publiquei tinha umas dez faculdades, ou melhor, uma dezena de fábricas de aprovação em vestibular de Direito e Medicina espalhadas pelo país.
Assim que eram “aprovados” nessas fábricas de ensino, os estudantes conseguiam um cargo comissionado em algum órgão público na capital baiana, e solicitavam à UCSal ou à Ufba, para que aceitassem a transferência da matrícula da faculdade do outro estado, porque precisavam trabalhar na Bahia.
Essa solicitação estava prevista na Lei 9.536/97, sancionada por FHC no dia 11 de dezembro de 1997, mas a legislação autorizava apenas a transferência se o estudante (ou os seus pais) fosse removido do emprego de origem para outro domicílio. Por exemplo: se ele trabalhasse no Rio e fosse removido para Salvador.
O golpe dos “janeleiros” consistia, portanto, em burlar essa norma sancionada meses antes por FHC. É óbvio que a UCSal e a Ufba negavam a transferência, e então os estudantes impetravam mandados de segurança. Resultado: o Judiciário baiano, que participava da tramoia, concedia as liminares.
Foram mais de 200 liminares para filhos de desembargadores, magistrados, advogados, deputados, prefeitos, secretários de Estado e do Município de Salvador, dos Tribunais de Contas do Estado e dos Municípios. Só para se ter uma ideia, 65 filhos de prefeitos baianos entraram pela “janela”.
Todos os três poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário – estavam envolvidos no golpe. Entre os “janeleiros”, nada menos do que parentes do presidente do Tribunal de Justiça da Bahia, dos cônsules do Chipre e do Gabão, além de filhos dos presidentes da Assembleia Legislativa e da Câmara Municipal de Salvador.
Os parentes do chefe da Casa Militar e do governador do Estado também estavam na lista, além dos filhos dos presidentes do Bahia e do Vitória, Marcelo Guimarães e Paulo Carneiro, respectivamente. Não ficou quase ninguém de fora desse golpe na Bahia.
Até uma sobrinha de dona Arlete Magalhães, mulher de ACM, era uma das “janeleiras”. E mais: cerca de 40 magistrados participaram da farra, seja concedendo as liminares ou empregando os filhos nos gabinetes, para justificar a transferência ilegal.
Entre as advogadas que conseguiam as liminares no Judiciário estava Adriana Barreto, amante de ACM e filha do desembargador Amadiz Barreto. E eu publiquei o nome de todos, sem dó nem piedade. Nomes dos estudantes, dos pais, dos magistrados, dos advogados, das autoridades, enfim, não ficou ninguém de fora.
Ruth de Aquino, jornalista renomada, disse-me que na história do jornalismo brasileiro não há uma série de reportagens com tamanha amplidão social, envolvendo os três poderes, como essa que protagonizei na Bahia entre os dias 16 de agosto e 30 de setembro de 1998, quando então viajei para a Europa.
Mas somente agora, 20 anos depois, eu compreendi porque Cruz Rios decidiu me enviar, com a minha esposa, para um cruzeiro de luxo no Mar Mediterrâneo. Fui conhecer Madri, Barcelona, a costa azul da França, Gênova, Roma, Nápole, a Sicília, Cartago (norte da África), além das ilhas de Ibiza e Palma de Mallorca.
Foi a primeira vez que fui à Europa – eu tinha 33 anos, e a minha esposa, 28, mas eu já conhecia tudo sobre arte e filosofia, ou seja, não foi uma viagem inútil. Um detalhe: as únicas canções brasileiras que ouvi por lá, nas rádios europeias, foram “Feelings”, de Morris Albert, e “Sentado à beira do caminho”, de Erasmo.
A verdade é que as ameaças de morte que eu recebia não foram, sem dúvida, o principal motivo que levou o diretor de Redação a me mandar para fora do país. E somente agora eu entendi porque Cruz Rios, na época da série de reportagens, comentava enigmático, aos risos:
– “Antonio Carlos está com o cu no ponto”!
É o seguinte: no início deste mês, no dia 1º de março de 2018, fui ao apartamento do grande advogado Raymundo Paraná Ferreira, acompanhado da minha esposa, para tratarmos de uma causa de grande monta, e na qual estamos trabalhando juntos há dez anos. A advogada Ana Silvia Chaves, minha amiga nessa rede social, também é parceira nessa causa.
Raymundo Paraná está com 96 anos de idade, mas demais lúcido. Ele é pai de um médico, um engenheiro e uma advogada. A sua vida é linda. Tudo que eu queria na vida era chegar aos 96 anos de idade com idêntica lucidez, enfrentando advogados jovens com um conhecimento ímpar do direito processual civil. Ele é incrível.
Fiquei lá por duas horas, ouvindo histórias bacanas, entre as quais, duas que vão para o meu livro “ACM e Adriana – uma história de amor, traição e grampo”. A primeira história é sobre o avô de Adriana Barreto, amante de ACM. A outra história narrarei agora, porque explica muito dos “janeleiros”, e não pode esperar…
O advogado Raymundo Paraná Ferreira, que nasceu em 1922, contou-me que ACM, nascido em 1927, entrou na Faculdade de Medicina da Bahia porque, naquela época, o ingresso era muito fácil (era uma espécie de admissão nos bons colégios), assim como também ocorria na tradicional Faculdade de Direito. A capital baiana tinha apenas 300 mil habitantes.
Acontece que o verdadeiro vestibular para medicina era feito no primeiro ano do curso, por meio do professor de anatomia, o médico Eduardo Diniz Gonçalves (primeira foto abaixo). O cara, que nasceu em 1878 e faleceu em1955, era o funil da faculdade. Reprovava boa parte da sala, reiteradas vezes, o que levava muita gente a abandonar o curso.
Ele era conhecido como “Biriba”, apelido ganho exatamente por ser “o terror dos calouros de medicina” (sua biografia está no Google e ele hoje dá nome a uma rua na Barra). Pois é: o professor de anatomia aplicou uma nota zero na prova do jovem Antonio Carlos Magalhães. Foi um escândalo, até porque ACM já era famoso em brigas no Campo da Pólvora.
E não deu outra: ACM disse que iria arrebentar a cara do professor, no dia seguinte à divulgação da prova. Quando “Biriba” chegou à Faculdade de Medicina da Bahia, no Terreiro de Jesus, Antonio Carlos partiu para cima, mas o professor lhe acertou um safanão no pé da orelha, e aí os colegas apartaram a briga. Novo escândalo.
Resultado: o diretor da Faculdade de Medicina da Bahia, o médico Edgar Santos – pai de Roberto Santos, futuro médico e governador da Bahia –, que viria a ser reitor da Ufba posteriormente, em conluio com o pai de ACM, o médico e professor Francisco Peixoto de Magalhães Neto, encontrou uma saída indecente para o imbróglio.
Mandaram ACM fazer uma prova de anatomia numa faculdade em Niterói, no Rio de Janeiro, onde ele recebeu a aprovação. De posse da “aprovação” obtida nessa fábrica carioca, Antonio Carlos passou direto para o segundo ano de medicina na Bahia, onde conseguiu concluir o curso cambaleando aqui e acolá.
A fama de “janeleiro” ficou entre os jovens da época, mas ninguém era louco de chamá-lo assim pessoalmente. ACM fez o episódio ser esquecido a ferro e a fogo. Mas o advogado Raymundo Paraná me contou que Cruz Rios sabia demais dessa história, visto que era mais velho (havia se formado em Direito e já trabalhava no jornal A Tarde).
A verdade é que eu fui enviado para fora do país no dia 2/10/98, porque não deveria chegar ao “Janeleiro Mor”. Quando retornei à Bahia, a primeira pauta que recebi foi para investigar uma fraude no concurso de magistrados do Tribunal de Justiça da Bahia. Foi um enorme escândalo. Isto é, esfriou-se o caso dos “janeleiros”…!
De fato, a minha viagem para a Europa não foi por causa de ameaça de morte, afinal, poucos meses antes, eu e a enfermeira Heloísa Gomes estávamos na mira de policiais militares, em face das reportagens denunciando os crimes no bairro de Cosme de Farias. A enfermeira foi metralhada no dia 20/06/98, em frente à maternidade Tsylla Balbino (eu já narrei essa história aqui).
Ademais, eu detonei tantos policiais e delegados quando exerci o jornalismo – vários deles foram exonerados dos cargos (já narrei também aqui em outros textos) –, que essa ameaça contra a série de reportagens dos “janeleiros” seria fichinha para representar uma justificativa à minha viagem ao estrangeiro.
Ademais, basta lembrar que 10 jornalistas baianos foram assassinados na década de 1990, e fui eu que, em abril de 2000, com uma série de reportagens de repercussão internacional, reabri os processos arquivados, mandando policial para a cadeia e recebendo várias ameaças de morte sem nenhuma preocupação do jornal A Tarde.
A verdade é que o jornalista Cruz Rios foi amigo de ACM por muitas décadas, e não queria vê-lo sendo humilhado no caso dos “janeleiros”. A solução foi me mandar para um exílio de luxo. Cruz Rios era uma pessoa muito grata a ACM, e isso é bacana. A gratidão é uma virtude. Se eu publicasse uma reportagem sobre o “janeleiro ACM”, todos saberiam de onde partira a informação, obviamente.
Muita gente odeia Cruz Rios, mas sem ele dialogando democraticamente com o meu jornalismo, Antonio Carlos ainda estaria vivo, e com poder, tal Sarney, que vai completar 90 anos em 2020, protagonizando o mal nos lençóis maranhenses. Jorge Calmon, que me convidou para trabalhar no jornal A Tarde, sentiu isso antes de morrer, em dezembro de 2006.
Bem, voltando ao tema dessa crônica, lembro-me que um dia eu perguntei a Cruz Rios por que Antonio Carlos usava tanto terno branco ao longo da década de 1970 (segunda foto abaixo), e ele me respondeu:
– Isso era um trauma antigo com a faculdade dos médicos. Ele só usava o terno branco na Bahia. Era uma forma de se autoafirmar… Mas deixe pra lá. Não vá investigar isso. Essas coisas mexem com o íntimo da pessoa, com suas frustrações, e não tem interesse jornalístico.
Enfim, agora eu tenho a resposta para outra coisa que me intrigava. É o seguinte: toda vez que eu publicava uma série de reportagens bombástica, Antonio Carlos me esculhambava com editorial de meia página no Correio da Bahia (hoje Correio), xingando-me sem dó nem piedade.
No caso da série dos “janeleiros”, ACM reagiu diferente, estranho, meio doce, ensaboado, enfim, com o cu no ponto. Em 1998, ele estava no auge do poder, daí que reviver a história de “janeleiro de medicina” iria ter repercussão nacional, mexendo com os seus brios, ou seja, Cruz Rios apenas ria da situação, mas sem me mostrar o caroço no angu.
Olha, as pessoas me perguntam por que demoro tanto para publicar o livro sobre a minha história no jornalismo. Eis a resposta: há coisas ainda a serem acrescentadas com o tempo, para enriquecer suas páginas. O advogado Raymundo Paraná é, ressalte-se, um homem honesto, e que merece um livro de memórias, ao que já me prontifiquei fazê-lo.
A série de reportagens sobre os “janeleiros”, que eu batizei com o nome de “Golpe das Liminares”, ganhou o Prêmio Esso, Prêmio Embratel, Prêmio Banco do Brasil e o Prêmio SIP, nos Estados Unidos. Eu ainda ganharia mais prêmios Esso, Embratel e nos Estados Unidos, por outras reportagens (terceira foto abaixo).
Um fato positivo na série de reportagens sobre os “janeleiros” é que ela provocou uma revolução educacional no Estado. No ano seguinte, várias faculdades foram criadas na Bahia. E desde 1999, dezenas de faculdades foram criadas na capital e no interior – umas boas, outras médias, algumas péssimas. Mas, enfim, foi uma revolução educacional na Bahia.
Outro dia, um advogado me disse que uma dessas faculdades famosas, que nasceu em função das minhas reportagens, tem nos seus quadros dois professores que foram “janeleiros” denunciados por mim. Ele me disse, ainda, que na OAB-BA há também um conselheiro que fez parte da lista dos ‘janeleiros”, e que hoje me persegue… Triste Bahia.
Meu filho George Marconi, 24 anos, engenheiro mecânico, que acaba de chegar do Canadá, conversando ontem conosco durante o almoço, fez um comentário que provocou o deslize de uma lágrima no meu rosto. O garoto disse:
– Quando era criança, eu ia para a escola e, ao voltar para casa, a única coisa que não queria ouvir da minha mãe era que o meu pai tinha sido assassinado. Eu vinha com o coração acelerado…!!!
Bem, o fato negativo de toda essa história é que os “janeleiros”, hoje na faixa dos 40 anos de idade, não foram expulsos das faculdades. Nós vivíamos uma ditadura, na qual os magistrados baianos obedeciam a um só homem e nada mais. Esses “janeleiros” estão por aí, impunes, advogando, julgando, clinicando, e até me perseguindo, afinal, a Bahia é o precedente do absurdo.
O assassinato da vereadora e do promotor público!
Não vou me alongar nesse comentário, até porque escrevi o texto principal nesta manhã de domingo, às pressas, posto que passei o sábado cuidando das rosas do meu jardim. Isso mesmo: eu adoro cuidar do jardim da minha casa. A minha esposa não faz nada no jardim. Sou eu (e o jardineiro que contrato) quem cuida das plantas.
Ontem à tarde, pedi ao meu filho caçula Pedro Marconi para digitalizar as fotos publicadas acima, mas o texto aguardou até a manhã deste domingo, para que eu o desenhasse na página. Os velhos jornalistas que trabalharam comigo sabem que isso não é problema, afinal, quando tenho a história na cabeça, ela vai para a página em poucos minutos.
Estive conversando ontem à noite com a minha esposa sobre o assassinato da Mariele, vereadora do Rio. Falando de mim e da vereadora, eu disse a ela que era incompreensível como um cara como eu, que detonou o mundo inteiro à sua volta, inclusive trazendo desemprego para inúmeros policiais e delegados, tenha sobrevivido por dez anos no jornalismo, enquanto a Mariele, por nada, ou quase nada, foi assassinada com apenas um ano de mandato.
Minha esposa comentou:
– Quando o assunto é corrupção, você é limpo, alvo, transparente. Isso salvou você. Essa é uma resposta para que você saiba de que Deus existe!
Bem, se a vereadora era envolvida com o tráfico de drogas – Ravengar, o maior traficante baiano, dava dinheiro e cocaína a jornalistas, policiais e artistas da axé music, além de financiar campanhas de vereadores e deputados –, o mesmo não se pode falar do promotor público Francisco José Lins do Rêgo, que investigava uma máfia dos combustíveis em Minas Gerais, e foi assassinado em plena luz do dia, no centro de Belo Horizonte. Eu também detonei a máfia dos combustíveis na Bahia. Então o promotor não recebeu a proteção divina?
Mudando de assunto, ressalto que eu não só ouvi essa canção de Erasmo tocando nas rádios europeias, como também no navio de luxo em que eu viajava em 1998. A pianista tocava com frequência. Inclusive, ela tocou “Sentado à beira do caminho” enquanto jantávamos com o príncipe Felipe, da Espanha. Pois é, gente: já jantei com um príncipe, embora eu busque apenas um lugarzinho qualquer no mundo literário – sou um plebeu, um jardineiro, das letras.
Um detalhe: quando era garoto (com 15, 16 e 17 anos de idade), eu ficava tocando essa canção de Erasmo, com meu violão, no entroncamento de Jaguaquara, assim que saía do internato nos feriados prolongados, enquanto esperava o ônibus da Camurujipe, que me levaria para Feira de Santana, e de lá para Queimadas. Essa canção me remete sempre ao navio do Mediterrâneo e àquele trecho da BR-116.
Marconi é Advogado e Jornalista