Ações afirmativas sem fronteiras por NAOMAR DE ALMEIDA FILHO
Excluir do programa Ciência sem Fronteiras justamente os que mais necessitam de apoio social será uma perversão, uma inominável iniquidade
Desafiada por Obama, Dilma
Rousseff lança o programa Ciência
sem Fronteiras, oferecendo 75 mil
bolsas de estudos no exterior.
Em fase de elaboração, o programa levanta polêmicas. Por um lado,
prioriza somente áreas tecnológicas, principalmente engenharias,
onde haveria menor capacidade
nacional de formação. Por outro,
encaminha os bolsistas às melhores universidades do mundo em cada área, numa lista feita com base
em rankings internacionais.
Serão inéditas 25 mil bolsas-sanduíche de graduação. Aplausos!
Mas aqui antevejo dois problemas.
Primeiro, há incompatibilidade
entre as estruturas curriculares dos
países receptores e o arcaico regime
de formação linear que adotamos
no Brasil. Na América do Norte e na
Europa, egressos do ensino médio
em geral não entram diretamente
em cursos profissionais.
Por mais sem fronteiras que se
pretenda o programa, não cabe esperar que as universidades estrangeiras se submetam ao modelo brasileiro, ainda bonapartista.
O segundo problema é mais
preocupante. O critério principal de
seleção dos estudantes será (e não
poderia ser diferente) o domínio do
idioma inglês. Ora, este é justamente o novo divisor de classes no
Brasil, onde jovens pobres (ou da "nova classe média", como dizem
alguns) nunca fizeram intercâmbio
nem tiveram bons cursos de inglês
ou acesso livre à web.
Em contraste, os filhos da classe
média/alta urbana, fração dominadora da sociedade, tendencialmente são bilíngues e cosmopolitas.
A se manter tal critério de seleção, o Estado brasileiro custeará
programas de estudos nas melhores universidades do mundo justamente para aqueles que já dispõem
de capital econômico, cultural, social e político.
Nesse cenário, a perversão da
educação superior completaria
uma dinâmica de mal-efeitos: (i) o
ensino básico público não prepara
seus alunos para acesso às universidades públicas, que (ii) têm ensino de melhor qualidade e que, por
isso, recebem em maioria alunos de
classe média e alta que, (iii) adestrados pelo ensino médio privado e
caro (porém subsidiado por maciça
renúncia fiscal), garantem aprovação nos duros processos seletivos
das instituições públicas.
Excluir do programa justamente
aqueles que mais necessitam de
apoio social, jovens de grande potencial, talentosos, porém pobres,
apartados da cultura dominante no
mundo globalizado, será a quarta
perversão, inominável iniquidade.
Proponho duas soluções imediatas: 1) cotas sociais para acesso ao
programa, sem prescindir do domínio de língua estrangeira; 2) programas
intensivos de preparação realizados na universidade brasileira,
com estágio na instituição estrangeira, prévio ao curso. Tais medidas
podem ser exigidas nas parcerias
interinstitucionais.
Mas há uma solução estratégica
e sustentada. Compreende a implantação no Brasil do regime de ciclos, especialmente na modalidade
bacharelado interdisciplinar, compatível ao "college" norte-americano e ao "bachelor" de Bolonha.
Esse regime já existe em 13 universidades públicas brasileiras,
com mais de 9.000 alunos.
Ampliá-lo, por um lado, supera a
incompatibilidade entre currículos; por outro, permite preparar
alunos de origem social humilde
nos repertórios linguísticos e culturais requeridos, além de acolher
com mais facilidade os créditos cursados no retorno. Precisamos tornar a
internacionalização da educação superior brasileira um instrumento de
desenvolvimento social,
competente e justo.
NAOMAR DE ALMEIDA FILHO, pesquisador 1-A do
CNPq, é professor titular do Instituto de Saúde
Coletiva da Universidade Federal da Bahia, da qual
foi reitor.
Artigo publicado originalmente em A Folha de São Paulo, 31 de Julho de 2011.