Alegria e indigência por Fernando Conceição
Carnaval e outra vez, como nas últimas duas décadas e meia – com a
industrialização dessa festa popular -, quem tem olhos e sensibilidade viu.
Foi
a repetição do espetáculo daquilo que Maria de Azevedo Brandão uma vez
classificou de uma das faces da propalada "baianidade": o lado perverso de
convenções naturalizadas no cotidiano das relações sociais dessa porção
territorial denominada de recôncavo, Salvador incluso. Região onde ainda hoje
predominam fortes resquícios das tradições escravocratas.
Não apenas os chamados "cordeiros", atividade em vias de sindicalização
por espertalhões politiqueiros, são a imagem gritante de uma sociedade zelosa na
manutenção de hábitos medievais. Os farrapos humanos pululam em todas as
esquinas e desvãos da festa, para o deleite de uma ordem-de-coisas que determina
o lugar do branco e do negro, do rico e do pobre, do turista e do nativo. A
"terra da alegria" e de "todos nós" dos slogans governamentais convive, de forma
conveniente, pari pasu com o chicote (real ou mental) no lombo da
maioria.
A afirmação, por vezes orgulhosa, de que "a África é aqui", registra
também o que há de mais horroroso no olhar colonialista do passado: a
inferiorização e a brutalização do colono, do serviçal, do escravo. De fato, no
circuito da folia, enquanto brilham as estrelas nominadas pela indústria
cultural, com seu aparato midiático composto por profissionais que vão de áreas
tão distintas como o marketing, jornalismo, "promoters" e grupos de segurança,
de um lado das cordas e lá em cima nos camarotes tudo é alegria. O que há de
lacônico, lúgubre, nefasto, transita do lado de fora.
O Carnaval soteropolitano é a síntese dos nossos contrastes. É exemplo da
clássica microfísica de poder foucaultina, na qual quem pode pisa no que está
abaixo ou ao lado. Tais contrastes estão presentes antes e depois do interregno
da festa. No regime servil há como se um acordo tácito entre o algoz e a suposta
vítima, que aceita servir, às vezes abrindo os dentes (banguela?). O gado
humano, pisoteado nas cancelas dos ferry-boats, estádios de futebol, teatros,
festas populares, mesmo que pagando ingresso, tudo aceita do nhô-nhô.
Assim, enquanto os capitalistas da hotelaria, da indústria fonográfica,
do comércio de drogas e do turismo sexual vêem seu saldo bancário engordar, os
vendedores ambulantes, famílias inteiras à cata das sobras dos foliões, serão
citados pelas estatísticas da propaganda oficial como partícipes do saldo
econômico gerado nesses dias. Números diversos, à potência de milhões, serão
trazidos em linguagem de economês para asseverar o êxito do evento, que tudo
pára e ao mesmo tempo mobiliza. Empresários, intelectualóides da cultura e
políticos contabilizarão como lucro o que, em realidade, é a pura indigência de
muitos.
FC I
Jornalista, professor da Ufba, pesquisador-visitante na Universidade Livre
Berlim (Alemanha).
Artigo publicaro originalmente em A Tarde de 24 de Fevereiro de 2009