Algo além do rito do processo de impeachment. Por Beatriz Vargas Ramos e Camila Prando
O Supremo Tribunal Federal, ao examinar a questão do rito a ser adotado no impeachment, decidiu que a Câmara dos Deputados tem competência para autorizar a instauração do processo.
É isso exatamente o que diz o art. 51, I, da Constituição da República (“Art. 51. Compete privativamente à Câmara dos Deputados: I – autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração de processo contra o Presidente e o Vice-Presidente da República e os Ministros de Estado”). O que fez o Supremo? Ajustou o rito previsto na Lei dos Crimes de Responsabilidade – que é de 1950, época do governo de Eurico Gaspar Dutra – às normas da Constituição em vigor. Além disso, indicou a competência de cada uma das Casas do Congresso Nacional, no tocante ao processo de impedimento. Com autorização da Câmara, tem início a ritualística no Senado. A mesma Constituição da República, no art. 52, I, determina que o Senado é privativamente competente para processar e julgar, entre outras autoridades sujeitas a impeachment, o Presidente e o Vice-Presidente, por crime de responsabilidade. Até aqui, nenhuma novidade. As competências estão definidas no texto constitucional.
O que é procedimento? Procedimento é, numa palavra, o “como” fazer. Tem a ver com a forma, a ordem e a sequência dos atos processuais. É o rito, o conjunto de normas que regulam o caminho a ser percorrido desde o início até o fim do processo. O processo é “meio” para realização das garantias constitucionais e o procedimento é “modo”. Todos os processos que têm como objeto o crime começam com a apresentação de uma acusação (pretensão acusatória) perante o órgão julgador competente, e, em condições normais, se desenvolvem até a decisão final, condenatória ou absolutória. É, como nas palavras de Aury Lopes Jr., uma “dinâmica orientada ao futuro”. Há processos, no entanto, que não têm futuro – e nem podem ter. Existem acusações (pretensões acusatórias) que não estão aptas a gerar decisão final, nem condenatória e nem absolutória. Que fique claro desde já: este é o caso do processo de impeachment que tramita contra Dilma Roussef.
Claro que o rito é importante e sua não observância pode gerar nulidade, mas a forma não é tudo. A razão de ser do processo não é a forma, mas o conteúdo. O processo de impedimento em curso contra a Presidenta Dilma, podemos afirmar, é apenas “forma à procura de um conteúdo”. É simples forma e, por si mesma, não garante a constitucionalidade do processo. É simples forma, ainda que observadas as delimitações estabelecidas pelo STF em observância à Constituição. Porém, sem conteúdo que corresponda às categorias de crime de responsabilidade previstas na Constituição (art. 85, CRFB). Os fatos alegados na denúncia que geraram o processo de impeachment (inadimplemento de obrigação contratual com bancos públicos da União e decretos não numerados de créditos extraordinários ratificados pela 13.199/15) não correspondem a nenhuma imputação típica de crime de responsabilidade (ainda que os tipos de crime de responsabilidade previstos na lei 1.079/50 sejam tipos abertos e de péssima técnica legislativa, e ainda que a própria Lei devesse ela mesma ser avaliada em sua constitucionalidade diante da CRFB). Esta é, aliás, a questão central apresentada pelo Advogado Geral da União em defesa da Presidenta, e não respondida pelo julgamento de pré-admissibilidade da Câmara dos Deputados realizado no dia 17 de abril último: os fatos alegados na acusação contida na denúncia oferecida contra a Presidenta Dilma e constante da decisão de recebimento da denúncia pelo Presidente da Câmara dos Deputados corresponde a crime de responsabilidade?
Isso não é pouco, ao contrário, é o indicativo mais exuberante da aberração processual que se instalou no Congresso Nacional a partir do acatamento, por Eduardo Cunha, da denúncia firmada por Miguel Reale Júnior – como se a assinatura de uma autoridade no campo jurídico fosse suficiente para converter uma acusação em condenação.
A questão vem sendo tratada tão somente sob a ótica conceitual de mérito processual e, embora seja certo que guarde relação com o mérito, com ele não se confunde e nele não se esgota e, por isso, comporta uma análise distinta. Numa decisão condenatória, mesmo que entregue ao âmbito de competência do Senado, – como é o impeachment, o mérito diz respeito à interpretação do ato materialmente comprovado em relação aos elementos que constituem o crime. Essa interpretação deve atender à categoria do injusto culpável e é feita por fases que correspondem aos conceitos jurídicos de tipicidade, ilicitude e culpabilidade. Acontece que, na teoria processual, inteiramente válida para a ação deimpeachment, uma vez que também ela não está imune ao controle de legalidade e de constitucionalidade, não se pode passar à análise final do mérito sem a verificação prévia e indispensável do que se convenciona chamar de “aparência de crime”. Antes de provar o ato – ou mesmo diante da prova do ato – é preciso responder se ele pode ser interpretado validamente como uma das definições legais de crime de responsabilidade, em obediência à própria exigência constitucional de que não é qualquer ato que se adequa ao conceito jurídico de atentado à Constituição. A interpretação de “aparência de crime” é uma condição sem a qual não se pode chegar a uma decisão de mérito. Os processualistas conhecem essa categoria jurídica como condição da ação. Se o processo é “meio” e o rito é o “modo”, a aparência de crime é o “por que”. Ora, o Congresso Nacional é competente para julgar crime de responsabilidade (juízo de admissibilidade da Câmara, processo e julgamento do Senado)! Logo, se o fatos alegados na acusação, desde o ponto de vista de sua correspondência jurídica com as hipótese legal abstrata, não podem ser interpretados validamente como crimes de responsabilidade, a própria competência do Congresso tem que ser afastada.
Por tudo isso, é um erro supor que a competência do Supremo Tribunal Federal está limitada à análise do rito do processo de impeachment. O fetiche do rito parece dominar a cena jurídica de uma maneira inédita, sem precedentes, impulsionado pelo massacre político da oposição derrotada. O golpe é anti-democrático, anti-social e anti-sindical. Este é, aliás, sob todos os aspectos, um caso sem precedentes: é a primeira vez que as chamadas “pedaladas fiscais” são criminalizadas; é a primeira vez que são criminalizadas as ações sociais do governo federal. Nunca se deu tanta importância à forma em detrimento do conteúdo. Golpe é forma, não é conteúdo. É simulacro de processo, não é processo legal.
O STF, quando invocado, restringiu-se a determinar questões quanto ao rito do processo de impeachment, e em nome de uma separação de Poderes alegada com fundamentos duvidosos eximiu-se de realizar qualquer controle prévio da condição da ação. Seguiu, portanto, a compreensão de que a ele só cabia a determinação do rito processual. E o fez de modo equivocado como viemos sustentando.
Mas uma vez consumado o início do rito por meio da decisão da Câmara dos Deputados pelo encaminhamento do processo ao Senado, mais uma vez o STF deve ser chamado a cumprir seu papel de exercício de controle da legalidade e da garantia do processo democrático. No dia 17 de abril a Câmara dos Deputados não realizou o juízo de admissibilidade a que foi chamada. Assistimos, perplexas, envergonhadas e indignadas, ao patético espetáculo promovido pelos Srs. Deputados Federais pró-impeachment. Em não se realizando o controle sobre a decisão da Câmara teremos a certeza e a triste constatação de que o simples rito é suficiente para depor um Presidente e que o conteúdo é apenas um detalhe insignificante e secundário. Os sentidos familistas e de fundamento religioso dominaram os votos dos deputados, revelando, mais do que um arremedo de ignorância, uma expressão do discurso de restrição de direitos promovido pela Câmara. E tudo isso com uma nota especial de apologia à tortura e invocação do próprio torturador da Presidenta Dilma Roussef. Não houve julgamento de admissibilidade da acusação, o que aconteceu na Câmara dos Deputados foi um vale-tudo, um ritual de linchamento político promovido pelo ódio ideológico. Um ato, que ademais dos vergonhosos motivos expostos em rede nacional, assemelhou-se mais um ato parlamentarista de voto de desconfiança na Presidente do que um ato produzido nos parâmetros de um sistema político presidencialista determinado em Constituição.
Se há um consenso de que a Suprema Corte deve zelar pelo devido processo legal, então não existe nenhuma propriedade na afirmação de que o exame quanto à presença da condição da ação está a salvo da análise constitucional. A definição de devido processo legal aplicada ao processo de impeachment passa necessariamente pela análise quanto à presença da condição da ação (aparência de crime de responsabilidade) que, a um só tempo, determina a razão de ser do processo e firma a própria competência do Congresso Nacional para se ocupar do julgamento de mérito. A única maneira de dispensar o STF dessa análise é admitir abertamente a possibilidade de depor um Presidente com base em julgamento político – o que equivale à violação mais escancarada do sistema presidencial de mandato fixo, como já foi demonstrado por inúmeros juristas, mesmo aqueles que são favoráveis ao impeachment.
Não há esperança de que o STF venha a assumir sua missão constitucional neste caso, em função de manifestações recentes de alguns de seus Ministros. Se o golpe, para ser vitorioso, tem de passar do dentro do campo do direito, é por dentro do campo do direito que se deve mostrar suas fragilidades e sua verdadeira natureza, a de simulacro de processo legal. Aí está a essência da mentira: ela assume a aparência de verdade, ela quer ocupar o lugar da verdade.
Neste golpe institucional em curso, Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal serão os que assumirão historicamente o lugar daqueles que suspenderam o direito para “combater a corrupção”, reatualizando a fórmula de exceção schmittiana que prevê o poder de o Executivo suspender o direito para “salvar a constituição”.
Artigo publicado originalmente em http://jornalggn.com.br/noticia/algo-alem-do-rito-do-processo-de-impeachment-por-beatriz-vargas-e-camila-prando