Amorim destaca a diplomacia brasileira: “EUA foram surpreendidos” por Mauro Santayna
Celso Amorim é, em todos os seus gestos e palavras, o menos solene de todos os chanceleres conhecidos. Nenhum outro poderia ser o chefe da diplomacia com Lula na Presidência, nem com Itamar – mesmo incluídos os paisanos, isto é, os ministros políticos que, em alguns casos, se esforçam para adquirir caricatural physique du rôle.
Por Mauro Santayana, no Jornal do
Brasil
Amorim, o
discutido
presidente da Embrafilme que patrocinou a produção de Pra frente,
Brasil,
provavelmente não conseguiria o mesmo desempenho com um presidente vindo
das
velhas famílias do Império, ou das novas famílias de imigrantes
enriquecidos em
São Paulo.
A atualidade determina a pauta
de nossa conversa: que
perspectivas há, no caso do Irã? Amorim se move entre a cautela
profissional e o
natural orgulho da ação positiva brasileira no mundo atual. Confessa, de
início,
que não tinha muita convicção de que houvesse grande possibilidade de
acordo
entre os Estados Unidos e o Irã, mas, da mesma forma, entendia que era
preciso
tentar tudo, para obter alguma coisa.
"Sempre fomos
muito bem tratados, tanto da parte do
presidente (dos EUA) Obama, quanto da parte da secretária (de Estado)
Hilary
Clinton. Posso dizer que não havia divergências quanto ao resultado
pretendido,
que era o de obter garantias de que o Irã só iria usar a tecnologia
nuclear para
fins pacíficos, mas os meios não pareciam os mesmos. Nós acreditávamos, e
continuamos acreditando, na persuasão, no convencimento, na conversa
amistosa,
na sinceridade de nossos propósitos. Eles, no entanto, se mostravam
muito
céticos, quanto à possibilidade de que o Irã viesse a aceitar as
condições que
haviam proposto em outubro passado. Creio que eles se mostraram
surpreendidos
com o resultado. É provável que não esperassem a aquiescência do Irã aos
esforços da Turquia e do Brasil, que agiram como países soberanos,
interessados
na paz. Eles gostariam de ter iniciado o processo de punição antes de
nossos
entendimentos – e responderam com a decisão da secretária de Estado de
propor as
sanções às chamadas grandes potências."
Atrevo-me a
observar que há uma diferença doutrinária,
digamos, entre o presidente e sua competidora nas eleições primárias
dentro do
Partido Democrata, e que, provavelmente, Obama não pense exatamente como
a
secretária de Estado, que busca afirmar-se na ala direita de seu partido
no
Congresso. Amorim sorri com suave malícia. Ele sabe que eu não espero a
contribuição de seu juízo, posto que, qualquer que ele fosse, seria
diplomaticamente inoportuno.
E,
agora, o que ocorrerá? – levo-o a retomar o seu pensamento. Amorim está
otimista. Acha que os demais membros do Conselho de Segurança –
sobretudo a
China e a Rússia – podem concordar com a ideia, mas provavelmente não
aceitem o
conteúdo da resolução proposta por Washington.
Nesse
momento, Amorim se desculpa, diante de um sinal de
uma assessora que chega à porta. Deve atender a um chamado de seu colega
turco,
com quem estivera conversando antes de nossa entrevista. Não bem
retornou ao
Brasil, e está em contato permanente com Teerã e Ancara. De Teerã teve a
promessa de que a carta, endereçada à ONU, reiterando os termos do
acordo, que o
governo de Ahmadinejad ficou de enviar até segunda feira, está sendo
cuidadosamente redigida – e será enviada a tempo. "Essas coisas levam
tempo,
recomendam a ponderação, reclamam consultas. Na diplomacia, tempo e
paciência
caminham juntos."
Acrescenta que,
pouco a pouco, os norte-americanos e europeus compreenderão a
necessidade de
cautela. Isso, repete, fortalece seu otimismo, o mesmo otimismo de Lula.
Lembra
que, com o passar das poucas horas, já se percebem os sinais da
prudência, por
parte dos membros permanentes do Conselho, e com direito a
veto.
Deu no New York
Times
Comento com o
chanceler matéria divulgada pelo New York Times – que, como seu
editorial, interpretava os fatos em favor da senhora Clinton – e a
reação
surpreendente nos comentários dos leitores. Até onde eu havia lido (mais
ou
menos dois terços de quase 300 intervenções), não havia um só leitor que
aprovasse a posição do Departamento de Estado.
Todos
apoiavam – e muitos com linguagem dura – os
esforços do Brasil e da Turquia para desamarrar, e não cortar, como
parecem
pretender os alexandres do Complexo Industrial Militar dos Estados
Unidos, o nó
górdio iraniano. Amorim não os havia lido, pediu à assessoria que
acessasse a
matéria; sorriu, feliz, para ilustrar o superlativo:
interessantíssimo.
Observo que
podemos ver, no episódio, a situação dos Estados Unidos no mundo de
agora. O
ministro comenta que há vários artigos, firmados por observadores
respeitáveis,
sobre a resistência de Washington – e seus aliados – à entrada de novas
potências, novos países, no jogo internacional.
"Até
há pouco eles nos convidavam para conversar sobre o
clima. Na OMC foram constrangidos a nos ouvir. Mas consideravam que
assuntos de
paz e segurança entre as nações eram coisas deles. Assim, quando o
Brasil e a
Turquia entram no jogo, é natural que reajam. A tentativa, mesmo que
seja
simbólica, de a Turquia e o Brasil agirem de forma diferente, sugere que
a
arquitetura da segurança internacional, sustentada por algumas
autodesignadas
forças e países, não pode manter-se por muito tempo."
Intervenho,
para lembrar que os Estados Unidos têm
oscilado, em sua História, entre os postulados de Hamilton e os de
Jefferson. E
quando a orgulhosa aristocracia da Nova Inglaterra se defronta com a
eleição de
um mestiço, com o sobrenome Hussein, há sinais claros de que alguma
coisa mudou
realmente naquele país. O chanceler resume em uma frase curta: foi uma
mudança
para melhor, mas seguramente não terá sido para o entendimento de
parcela de
suas elites.
"Há setores da sociedade
norte-americana que, diante de um presidente com essas marcas
biográficas, dele
cobram uma posição mais dura, uma demonstração de força. Eu o vejo como
homem
propenso ao diálogo. Mas, sem dúvida, ele enfrenta
dificuldades."
Conselho de
Segurança
Provoco-o,
lembrando algumas críticas que se fazem à diplomacia brasileira: não
estaríamos
desprezando a prioridade da aliança continental sul-americana, em favor
de uma
intervenção no Oriente Médio? "Não, de forma alguma. O Brasil não pode
desinteressar-se dos assuntos que afetam a paz mundial. Quando os nossos
países,
a Turquia e o Brasil, foram eleitos para o Conselho de Segurança, é
claro que
essa escolha acarretou-lhes a responsabilidade de cuidar da paz, em nome
da
comunidade internacional, e não somente em nome do próprio país ou de
determinada região."
"Não há tema que
mais afete a segurança internacional do que o do Oriente Médio. Em algum
momento, e com razão, eu via na Palestina o perigo maior da região, mas,
nesta
hora, a questão nuclear do Irã é mais premente. Tendo a possibilidade de
atuar,
de maneira positiva, com um país da região, que é a Turquia – o que foi
uma boa
combinação – o Brasil procurou agir em busca de uma solução pacífica,
como é de
seu dever. Isso não foge à nossa vocação. Afinal, quando participamos da
Segunda
Guerra Mundial, o fizemos na defesa da democracia. No caso atual, não se
trata
da guerra mas da paz. Melhor ainda."
Diante das
críticas, algumas acerbas, que alguns dos
condutores da diplomacia brasileira, durante o governo passado,
endereçam ao
Itamaraty de hoje, permito-me observar que eles atuam como os famosos
generais
de pijama. Haveria uma categoria de "embaixadores de pijama"? Amorim se
embaraça
um pouco com a pergunta e, antes de responder com a elegância que tem
faltado a
alguns de seus adversários, permite-se uma boutade: os pijamas dos
embaixadores
devem ser da grife Versace. "Terá que haver uma governança
multipolar"
Indago-lhe se esse grupo
de diplomatas age em decorrência de haver perdido sua posição eminente
no
Itamaraty de Fernando Henrique, ou se há alguma coisa ideológica mais
profunda.
"Em primeiro lugar, eu prezo muito a liberdade de expressão, e acho
perfeitamente válido que cada um dê a sua opinião. Também acho que não é
por
simples coincidência que determinados meios de comunicação busquem
sempre os
mesmos embaixadores com essa posição".
"Já li muitas
outras manifestações diferentes, de outros
diplomatas e de setores da sociedade que não encontram a mesma acolhida
desses
órgãos tão solícitos à crítica à nossa política externa. Prefiro não
ver, nisso,
a manifestação de quem deixou o poder. Na verdade, todos nós temos como
missão
defender o Brasil e defender algumas ideias importantes nas relações
internacionais. Acho, no entanto, que algumas pessoas têm dificuldade em
adaptar-se aos novos tempos."
"O
Brasil ascendeu muito rapidamente no cenário internacional,
principalmente em
razão do desempenho do presidente Lula, na conciliação entre a boa
economia e a
justiça social – e, é claro, também por sua atuação internacional. Como a
mudança foi súbita, a cabeça de muitos com ela não se acostumou. Por
isso, mesmo
aceitando que criticam com boa-fé, atuam sempre com a preocupação de que
‘não
podemos brigar com tal grande potência’. Quando atuamos em Cancun, no
caso da
OMC, e na divergência sobre a Alca, muitos disseram: ‘Mas, gente, vocês
vão
brigar com os Estados Unidos?’."
Nos tempos de
Bush
O ministro cita a era Bush: "Ora,
mesmo na época de Bush,
as relações entre Lula e o presidente texano foram boas. Trabalhamos
juntos, com
êxito, em vários programas. É claro que, nesses assuntos delicados de
paz e
segurança, as coisas são mais difíceis, levam mais tempo, mas os Estados
Unidos
irão compreender que a participação ativa do Brasil não se faz contra os
interesses deles, porque já passou a época em que um só país pode
dominar o
mundo. Terá que haver uma governança realmente multipolar."
"Da
mesma forma que, para muitos países é difícil
entender essa mudança, é provável que pessoas que militaram durante
muitos anos
em situação diferente tenham dificuldade em entender que o Brasil hoje
não só
pode agir com independência, e defender seus interesses, ao mesmo tempo
em que
contribui para a ordem global. O fato é que a emersão dos Bric assustou
um
pouco. Conforme a gíria americana, há ‘new kids on the
block’."
Relembro o discurso de posse
de Celso Amorim como chanceler do presidente Lula. Ele recomendou aos
jovens
diplomatas que não tivessem medo, nem arrogância. A postura do
Itamaraty, hoje,
pode ser considerada de Realpolitik? Amorim aceita a expressão
bismarquiana, na
medida em que o Itamaraty atua de acordo com a dimensão da realidade
mundial.
Pondera, no entanto, que, mesmo não agindo no vazio, a postura
brasileira é
fundada em positivo idealismo humanista.
"Acho que
não nos podemos mover em uma política
determinada pelo interesse cru. Essa posição não me entusiasma, nem ao
presidente. A política que reúne o nosso interesse como nação e os
nossos ideais
humanistas é a da solidariedade, e ela nos está trazendo maior
reconhecimento
nos foros internacionais. Atuamos no sentido da universalidade, o que
nos leva
tanto às grandes nações europeias, como nos permite trazer a Brasília
ministros
de 50 nações africanas, a fim de discutir os problemas da agricultura.
Vamos a
Israel, vamos à Jordânia, vamos à Palestina e ao Irã, porque nós não
temos
posição preconceituosa."
Ruy
Barbosa, o patrono
Arrisco-me a dizer que
essa política brasileira, de
respeito à igualdade entre as nações, foi enunciada por Ruy Barbosa em
Haia.
Amorim não só concorda, como considera Ruy o patrono da diplomacia
multilateral
brasileira, da mesma forma que Rio Branco foi o patrono da diplomacia
bilateral.
De muitas outras coisas – e algumas importantes – falou o chanceler, mas
todas
dentro da mesma linha de raciocínio.
O Brasil
cresceu muito, o mundo mudou muito, e é preciso
enfrentar os problemas sem medo, mas sem as bravatas da adolescência.
Entre as
mudanças do mundo se encontra a instantaneidade da informação, que
estimula a
transformação dos indivíduos passivos em cidadãos atuantes, como se vê
no mundo
inteiro. Nossa autonomia de ação é um caminho do qual não poderemos
retornar, a
menos que estejamos dispostos a agachar-nos, depois que nos decidimos a
andar de
cabeça alta.
O caso do Irã é
emblemático, porque a sua solução contribuirá para a consolidação de
nova ordem
mundial, com o fortalecimento das Nações Unidas e o fim dos ditados
imperiais
das grandes potências. De qualquer forma, a vigilância na defesa do
entendimento
entre as nações – é o que podemos resumir de suas ideias – terá que se
manter, e
a cada dia mais, porque a paz é sempre uma conquista esquiva da razão
política.