Anais Nïn e o amor por Emiliano José
“…E ontem uma mulher se entregou a ele
pela primeira vez de verdade. Foi um casamento. O homem dando à mulher
sua força e visão, e a mulher dando ao homem sua força e visão.”
Hoje saio de meu percurso habitual. Peço licença às leitoras e leitores para falar de mulher. De uma mulher especial que, a seu modo, marcou o século XX: Anais Nïn. Recentemente, redescobri Em busca do homem sensível, uma leitura quase poética em torno do amor sob o olhar feminino, o olhar de Anais.
Agora, fui assaltado por Incesto, uma bem cuidada edição dos diários não-expurgados dela entre 1932 e 1934, da L&PM Editores. Pode ser recebido como um soco no estômago. Ou como uma elegia em torno da vida. Depende do olhar da leitora ou do leitor.
Quem tenha experimentado as delícias e as dores da paixão, sempre intensas, saberá compreender a grandeza e a profundidade de Incesto. Quem simplesmente tenha procurado encontrar o amor de sua vida, para além da paixão, também. Incesto é uma confissão, um mergulho psicanalítico, revelações cruas da
mulher que se desnuda diante do mundo, com toda sua beleza, paixão, amor, crueldade, compaixão.
Uma mulher. Que assumiu toda a complexidade de ser mulher, e aqui estamos falando de sua existência nos anos 30 do século passado. Uma mulher que buscou desesperadamente o amor. Que recusou o marasmo das águas paradas, da boa vida de um casamento. Que se apaixonou umas tantas vezes. Que viveu de forma impressionantemente intensa sua sexualidade. Que soube viver o gozo sem medo. Que se bateu ferozmente contra os padrões morais dominantes. Que viveu em busca do homem sensível. Que a seu modo tentava educar os homens para que fossem sensíveis.
“…Vista de fora, pelo olhar alheio, parece que eu sou uma parte das propriedades materiais e mundanas de Hugh. Eu sou uma aquisição. Eu sou um instrumento de sua ascensão. Em troca, ele me protege, me ama, me mima. Mas também me aprisiona.”
Mulher que teve a coragem – e agora é possível que a leitora, o leitor se assustem ou quedem perplexos – de assumir a atração pelo pai e resolvê-la na cama de modo febril, para depois deixá-lo de lado. O pai, que havia deixado a mãe de Anais quando ela tinha 11 anos, e que só a reencontra coisa de 20 anos depois, é seduzido por ela. E depois abandonado. Incesto, amor, desejo, abandono. Freud talvez explicasse, nem sei se. Ela, aliás, tem uma relação fortíssima com a psicanálise, e vamos falar disso adiante.
Mulher que viveu a dura contradição entre a ternura e o desejo – e essa contradição estava presente na sua relação com o marido, Hugh Guiler, alto funcionário do City Bank. Nunca deixou de ter carinho por ele, mas o desejo sumiu e isso a fazia sofrer muito. Juntavam-se, aqui, repulsa, quando do sexo, e compaixão, quando da convivência cotidiana, que não era ruim.Contradições do humano.
Anais recorria ao diário e só a ele para suas confissões mais íntimas. Nem os analistas dela foram depositários de tantas confidências. É provável que tenha sido ele, o querido diário, o seu grande divã, o seu mais amoroso
psicanalista. Nele, podia dizer, sem restrições, dando nomes e circunstâncias, como fazia para conviver com amores simultâneos, quais eram suas estratégias e táticas para evitar feri-los.
“Quando eu instintivamente deito ao lado de Hugh e digo que o amo, é como se eu fosse movida pelo arrependimento e por um obscuro sentimento de culpa – por pena. Eu gostaria de encontrar defeitos nele, de conseguir odiá-lo, mas ele não tem defeitos. O que me prende a ele é meu sentimento de culpa”.
Soube enfrentar e amar os homens com as armas da sutileza, da delicadeza e, não se pode fugir dessa constatação, da dissimulação, esta aqui uma forma de carinho, uma forma de não ferir, como já se disse. Soube viver a compaixão pelos homens, e ela confessa essa compaixão repetidas vezes ao longo de
Incesto. Foi adquirindo consciência da fraqueza de cada um de seus amantes. E soube desfrutar deles, da força de cada um. Olhando para a trajetória dela, dá vontade de parafrasear Guimarães Rosa e dizer que mulher é bicho arriscoso.
Os diários não-expurgados começaram a ser editados em 1986, quase dez anos após a morte dela, graças à iniciativa de Rupert Pole, seu segundo marido, que cumpriu desejo expresso por ela em vida. Para preservar as pessoas que amava, Anais publicava parte dos diários, omitindo nomes e situações que pudessem comprometê-las. Como todas as pessoas, tinha um baú onde sua vida dupla estava revelada por inteiro. Fez questão de deixar estabelecido que seu baú devesse ser aberto.
E não era, como se vê, um baú de horrores, mas de amores. Revelador da complexidade do humano, e particularmente da singularidade da alma feminina. Embora, é claro, disse isso no início, pode ocorrer de muitas pessoas encararem seus diários como um autêntico horror. Depende como cada um vê o mundo, os amores, as paixões, os encontros e os desencontros amorosos. Os que preferem as águas paradas, certamente se escandalizarão. Ela deixava as águas livres. Sabia que elas corriam para o mar, e mergulhava junto. Até o
mar, sempre.
“Henry me cura profundamente. Ele disse: ´Eu não tenho como ser desleal porque é dentro de você que eu vivo´. Rimos. Nos deitamos e trepamos devagar, com jeito, absortos, e pela primeira vez o orgasmo vem sem eu
desejar, como uma paz, uma lenta aurora, um lento florescer originado no relaxamento e na entrega do não-ser. Sem almejar. Caindo como a chuva, florescendo, afogando a consciência.”
Com a psicanálise teve uma relação carnal. Tanto no sentido de que a considerava necessária para resolver os conflitos de sua vida, que não eram pequenos, quanto porque teve relações amorosas e sexuais muito intensas com seus dois analistas. O primeiro, René Allendy, autor de Capitalismo e Sexualidade, e membro-fundador da Sociedade Psicanalítica de Paris. O segundo, Otto Rank, austríaco, uma espécie de “filho” designado de Freud, até que publicasse O trauma do nascimento, que provocou o rompimento com Freud e seus seguidores ortodoxos.
Com Rank, ela viveu um deslumbramento. Viveu com ele “um amor que não chamamos de amor, esse amor além do que se entende por amor, imenso, infinito, cósmico, total, indolor, ilimitado, desinteressado, mas um modo de
fluir que nem eu nem ele jamais conhecêramos antes”. “Não sei” – dirá Anais – “onde estamos vivendo, mas é o maior e mais elevado universo em que já estive”.
A entrada dele na vida dela foi, segundo ela mesma, “um espetáculo maravilhoso”. Ela tem delírios poéticos ao falar de Rank: “Os olhos de Rank, aqueles olhos preenchem o silêncio”. Ou quando diz: “Ele deseja se perder,
se afogar em mim”. Ou quando confessa: “Não posso viver sem vê-lo. É uma fome, uma fome insaciável”.
Envolveu-se também com Antonin Artaud, ator de teatro e cinema, ensaísta, poeta, um outsider, maldito da época. Reconhecia seu talento, genialidade, mas não houve um encontro sexual bem-sucedido, e ela não deixa de registrar isso. Seu amante mais constante, no entanto, foi Henri Miller, que estava às voltas então com a conclusão de Trópico de Câncer, seu primeiro livro. Temperamental, explosivo, egoísta, Miller conseguiu seduzir Anais. Ou será melhor dizer que se seduziram? Talvez. Foi um intenso amor. Que sofreu abalos quando do surgimento de Otto Rank. Entre Anais e Miller houve uma troca de correspondência que durou a vida inteira. Ela conseguiu conviver com muitos deslumbramentos.
“Eu magôo, machuco, e sei apenas que sou eu quem mais sofre com isso, mais do que as pessoas que magôo. É um mistério, um mistério terrível e assustador, que Allendy jamais foi capaz de desvendar”.
O momento mais dramático de Incesto é o aborto de um filho de seis meses. Não havia como deixar o filho nascer – era a conclusão de todos, dela inclusive. Mas uma conclusão atormentada. Ela fala com o filho no ventre: “Todos nós buscamos eternamente esse calor e essa escuridão, essa vida sem dor, essa vida sem ansiedade nem medo nem solidão. Você deve morrer antes de saber o que é a luz ou a dor ou o frio. Você deve morrer no calor e na escuridão. Você deve morrer por não ter um pai”.
Na hora do aborto, a resistência. Pensava que fazia toda a força necessária para o aborto. Tinha consciência de que não fazia, no entanto. “Uma parte de mim não queria empurrar a criança para fora de mim. Uma parte de mim se mantinha passiva, recusava-se a empurrar quem quer que fosse – até mesmo esse fragmento morto de mim mesma – rumo ao frio, para fora do meu corpo”. Resistência. “Ainda que minha vida corresse risco, eu era incapaz de quebrar, rasgar, separar, render-me, abrir-me a dilatar-me para entregar um fragmento de vida como se fosse um fragmento do passado”.
E o final. “A enfermeira põe o joelho na minha barriga. Meus olhos estão cheios de sangue, sangue, sangue. Um túnel. Empurro em direção ao túnel, mordo os lábios e empurro. Um fogo, carne se rasgando, asfixia. Para fora do túnel! Todo meu sangue está escorrendo. ´Força! Força! Está saindo! Está saindo´ Sinto uma escorregada, o parto súbito; o peso desaparece. Escuridão.”
Ela pensa: “Essa criança, que significaria uma ligação simples e primitiva com a terra, essa criança, um prolongamento de mim mesma, agora negada para que eu pudesse viver meu destino de amante, minha vida de mulher. Essa criança, que significava minha auto-suficiência e minha emancipação dos homens. Minha criança. Minha. Para não ser abandonada, matei a criança. Não acredito no homem como pai”.
Ela termina o diário desse período com a frase de um amigo :
-Você é uma alma muito disputada.
Disputada, encantadora, sedutora, orgulhosa, vaidosa, amante da vida, que buscou espaços de felicidade no turbilhão da existência.
“Ah, meu Diário, encontrei quem me ame do jeito que amo! Encontrei quem se perca em mim, com eu me perco em meu amor. Como esse amor me queimou, me devorou! E tudo vai para Rank. É o que ele quer; é o que ele oferece. Ele sente o mesmo que eu – ele se doa. A palavra amor não basta. Estamos enfermos de alegria; morrendo de alegria. Rank ama até a morte, ama com desprendimento – ama”.
Artigo publiado originalmente na revista Carta Capital (04/02/2009)
Emiliano é Escritor, Professor Universitário e Deputado Federal do PT-BA