Anatomia de uma chantagem por Paulo Kliass
Como o mercado financeiro serve-se da mídia para exigir a elevação insana das taxas de juros — e torpedear alternativas
As forças políticas e os defensores de idéias e propostas
alternativas às da ditadura financeira necessitam estabelecer
estratégias para convencer o público e debater com os adversários. Não
basta ter as melhores proposições, nem mesmo tê-las comprovadas pela
prática. É preciso ganhar a opinião pública, algo ainda mais complicado
quando se trata de temas de densidade técnica, em terrenos
escorregadios, onde poucos se sentem com conhecimento e capacidade de
intervir. Aqui, entram em cena mecanismos fundamentais para a criação de
consensos no interior da sociedade. Pouco importa se são estabelecidos
pelo apego emocional ou por argumentos de pouca sustentabilidade
racional. O que vale é o resultado final do embate. Quem ganhou, quem
perdeu.
O conceito de hegemonia pode ajudar a entender melhor o quadro atual.
A noção, cujas origens remotas estão na Grécia Antiga, foi recuperada
para o mundo contemporâneo pelo pensador italiano Antonio Gramsci. E
passou a ser utilizada no campo das ciências humanas em geral. Pode ser
vista como supremacia, influência preponderante, autoridade soberana,
liderança ou predominância. No campo das disputas políticas e
ideológicas, revela-se útil para avaliar as forças e as potencialidades
das idéias.
Desde a crise financeira internacional de 2008, vivemos tempos de
forte indefinição. Para evitar um colapso da economia mundial, o
establishment recorreu, em desespero, a instrumentos teóricos e
políticas públicas até então consideradas heréticos e irresponsáveis. Os
ditames do Consenso de Washington foram rapidamente superados. Mas isso
ocorreu sem o necessário processo de autocrítica e revisão dos
elementos que lhes davam sustentação teórica.
Os paradigmas mudaram muito rapidamente nos espaços de tomada de
decisão, mas as cabeças ainda foram formadas no antigo pensamento
hegemônico da escola neoliberal, superada pela realidade. Emergiu uma
disputa de projetos e idéias no interior das organizações multilaterais,
como o FMI e Banco Mundial. Longas polêmicas estenderam-se para as
universidades e centros de pesquisa. Houve intensos debates entre
economistas a respeito dos rumos e das alternativas de política
econômica.
Mas o tempo de sedimentação das novas formas de encarar o fenômeno
econômico é lento: corresponde à velocidade da mudança das idéias. E o
tempo da tomada de decisão das autoridades públicas é o do aqui-e-agora:
a urgência do imediatismo necessário para conduzir o país em seu
cotidiano. O setor que se beneficiou do modelo financista fracassado
compreendeu com clareza este cenário — e traçou, para enfrentá-lo, uma
estratégia competente. Derrotado pela crise, passou a uma postura mais
defensiva. Aguarda o momento adequado para buscar a volta por cima.
Como não é possível questionar abertamente as novas orientações do
FMI sobre a necessidade de controlar os fluxos de capitais; nem atacar a
volta do Estado à economia; nem ressuscitar o mito das “solução de
mercado” – o suposto livre jogo das forças de oferta e demanda – para
todos os problemas econômicos, procura-se minar e desacreditar as
propostas alternativas por meio de um acesso privilegiado aos grandes
meios de comunicação. Em suma, o financismo busca desqualificar o
adversário, mesmo sabendo que não tem alternativas a oferecer no curto
prazo – a não ser a preservação de seus postos e interesses.
Nesse período de disputa por novas idéias e modelos, os órgãos da
“grande” imprensa são o palco privilegiado para o capital financeiro
resistir às mudanças e disparar contra as alternativas – que vão sendo
construídas pouco a pouco. A mídia cria uma blindagem contra o novo. Os
comentaristas, analistas e “especialistas” ouvidos são quase sempre os
mesmos, repetindo monocórdios as mesmas interpretações e apresentando as
mesmas sugestões.
Eles próprios constroem o cenário sobre o qual pretendem atuar,
oferecendo a sua própria solução. E a imprensa se encarrega de
reproduzir tal quadro, repetindo os pressupostos ad nauseam e criando um
falso clima de consenso na sociedade. É a busca da supremacia na marra,
a construção da hegemonia com características de artificialidade.
O processo aparece com força no debate sobre as alternativas de
política econômica, em disputa inclusive no interior da equipe da
presidenta Dilma. Qualquer tentativa de apresentar medidas contra a
inflação que não incluam elevação da taxa de juros é ferozmente
combatida. A tática mais utilizada é criar um clima de catastrofismo nos
dias que antecedem às reuniões do Comitê de Política Monetária (o
Copom), de maneira a pressioná-lo a elevar a taxa básica de juros
(Selic).
Os jornais contribuem, ao difundir informações alarmistas sobre o
risco da inflação escapar ao controle. Consideram que qualquer índice
inflacionário acima de 4,5% ao ano (o “centro da meta” do Copom) é
inaceitável. Expõem as previsões para os índices futuros, mas não
analisam os fatores que os pressionam – o que bastaria, para demonstrar
que de nada adianta aumentar os juros para combatê-los.
Quando setores do governo reconhecem os prejuízos impostos à
sociedade e à economia pela política que permite a valorização
irresponsável do real, o financismo vai para as manchetes, denunciar os
riscos da intervenção pública no mercado de moedas estrangeiras. De
acordo com as opiniões dos analistas sempre de plantão, o ideal seria
aguardar pacientemente o “dia do equilíbrio final”, quando a oferta e a
demanda pelo dólar deverão se igualar no mercado de divisas. Ninguém se
manifesta sobre os custos embutidos nessa hipótese: desindustrialização,
risco de crise cambial.
De tempos em tempos, os representantes do capital financeiro exigem –
sempre com respaldo da mídia – redução dos gastos públicos. Os jornais
não escrevem uma linha para mostrar que o pagamento de juros é um dos
maiores itens de despesa orçamentária.. E que esse tipo de gasto estéril
só aumenta ao longo do ano, a cada aumento da taxa de juros decretado
pelo Copom. Os gastos com custeio e investimentos apresentam taxa alta
de retorno social e econômico – inclusive, via pagamento de tributos.
Mas a mídia insiste na direção oposta: o governo deve cortar na própria
carne – mas que não ouse tocar no filet mignon das despesas financeiras…
Um detalhe não pode passar desapercebido, porém. Os representantes do
capital financeiro – especialmente dos rentistas – contam, em sua
empreitada, com a boa vontade de setores do governo. Não surgem, na
equipe de Dilma, vozes suficientes para criticar as viúvas do
neoliberalismo. Tudo indica que o temor das ameaças do capital
financeiro ainda é muito presente. E isso contribui para tornar ainda
mais lenta a desconstrução ideológica da ordem antiga e mais difícil a
construção de um novo modelo a ser aceito na sociedade.
–
Paulo Kliass
é especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira
do governo federal, e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
Artigo publicado originalmente em http://www.outraspalavras.net