Angelique por Zuggi Almeida
Valdemar estava ansioso diante o espelho mesmo sendo a décima vez que desfilava no Filhos de Gandhi. Cada ano marcando grandes momentos e muitas felicidades.
Então resolve chamar pela irmã quase aos berros:
– Valquíria! Cadê você ? Menina lerda da zorra !
A irmã responde:
– Já vai Vado ! Espere aí, que já estou quase terminando – explica.
O cabeleireiro em frente ao espelho, gira sobre si, observa a fantasia no momento que Valquíria entra no quarto trazendo um vistoso turbante branco e coloca sobre a cabeça do irmão, faz os ajustes com cuidado e comenta:
– Puxa como meu irmão está bonito ! Está parecendo um rei. Igual aqueles lá da África. Agora na moral, vê se esse ano tem cuidado e não volta com a fantasia toda suja. Você sabe que sou eu que lavo e só tem uma fantasia pra sair todos os dias.
Lá fora alguém chama por Valdemar que apressa-se em sair da casa, ainda ajeitando os colares no pescoço. O grupo de garbosos componentes do afoxé Filhos de Ghandy desce a ladeira do Alto da Terezinha em direção ao ponto de ônibus.
São dez e quarenta e cinco da manhã de um domingo de carnaval.
Às 10h 45m do mesmo dia, uma aeronave aterrisa no aeroporto de Salvador. A bordo está Angelique Vidal em sua primeira visita ao Brasil.
No sobrevoo sobre a cidade feito pelo comandante do avião, a martinicana percebe algumas semelhanças com sua terra natal, principalmente a exuberância dos coqueirais. Sentiu saudades de Fort de France, a cidade onde nasceu e a curiosidade da modelo aumenta.
Angelique pertencia ao grupo das top models internacionais que abrilhantam as passarelas. Vidal tinha um portfólio que exibia editoriais de moda feitos para Versace, Gucci,Dolce & Gabana e outras grifes famosas. Recentemente tinha assinado um contrato de exclusividade com a Victoria´s Secrets.
Durante uma das semanas de moda em Paris, a top conheceu uma estilista baiana que lhe apresentou imagens do Brasil, inclusive do carnaval de Salvador.
Um desses vídeos despertou atenção de Angelique. Era o desfile de um imenso grupo de homens, negros em sua maioria vestindo túnicas e torsos brancos, exibindo colares e com sorrisos irradiantes.
A decisão súbita, o bilhete aéreo adquirido e Angelique Vidal partiu rumo à Salvador, a capital dos príncipes de pele preta.
Valdemar e os amigos desembarcam na estação Aquidabã e segue em direção a sede do afoxé, no Pelourinho. No caminho a parada num isopor e compra algumas latinhas de cervejas e prossegue até o Ghandi. Eles precisavam chegar antes do início da cerimônia do padé.
Valdemar era um homem de Ogum e sabia da importância de agradar Exú, o encarregado de abrir os caminhos e proteger todos dos imprevistos nas encruzilhadas da cidade de Salvador.
Após as obrigações com o dono das estradas , uma pomba branca é solta e faz um vôo sobre as cabeças dos presentes no largo e desaparece por trás dos telhados do casario colonial. O aroma da alfazema que pairam no ar adentra pelos poros, becos e ladeiras do Largo do Pelourinho e o Afoxé Filhos de Gandhy parte para mais uma jornada no Carnaval de Salvador.
Valdemar e os amigos chegam à Praça Castro Alves, onde o afoxé se expande e torna-se um gigantesco lençol branco até estreitar-se na rua Carlos Gomes e seguuir serpenteando até alcançar o Campo Grande.
Justo na curva da entrada da passarela dos camarotes, o cabeleireiro Valdemar tem a visão mais bela de todos os carnavais da sua vida. Ela estava lá, imponente como uma esfinge negra exibindo o belo sorriso de marfim. A leve blusa de cetim branco que usava era ornada por um colar de madeira que combinava com os destacados brincos do mesmo material.
Valdemar cutucou o amigo do lado, cochichou alguma coisa e partiu em direção ao alvo. Encostado às cordas do afoxé, retirou um dos colares e ofereceu a moça. Ela apenas sorriu. Ele insistiu e ela apenas sorria. Não exitou e mergulhou sobre as cordas para aproximar-se e elogiar:
– Você é a coisa mais linda que já vi em toda minha vida. Você mora onde?
Ela perguntou querendo entender: Comment ?, – deixando ele confuso.
Valdemar insistiu:
– Você é brasileira ? Carioca, paulista, mineira…Brasil ?
Ela tentou explicar:
– Brésil ? Non. Je suis martinien – nesse momento ele pigarreou, mas, continuou oferecendo um colar até que foi aceito.
O afoxé passa lento e sincopado diante dos olhos de Valdemar, os atabaques rufam triunfantes, os clarins ecoam pelo ar, um foguetório explode nos céus do Campo Grande e Valdemar se chorando alí no meio da multidão.Ao seu lado, Angelique tem exibe na face um misto de surpresa e felicidade quase infantil.
Institivamente Valdemar abraça Angelique pela cintura, ela encosta a cabeça no seu ombro e calados ficam ao ver passar o afoxé rumo aos camarotes.
Valdemar havia encontrado um outro amor na sua vida, além do Ghandi.
Algum tempo depois ele pergunta:
– Qual o seu nome? Como você se chama?
Ela responde:
Mi nombre ? Angelique. Angelique Vidal !
As constantes viagens internacionais realizadas pela top model facilitou um certo domínio do espanhol. Isso facilitou a Valdemar continuar o diálogo e fazer o convite
– Vamos beber alguma coisa ? Água, cerveja ? – ela responde – Cerbeza, no ! Agua, si.
Eles saem em busca de um local e sentam na mesa da primeira barraca que encontram. Valdemar pede uma cerveja para ele e água mineral para Angelique e entre risos e frases desencontradas eles trocam o primeiro beijo.
O amor é o tradutor universal dos sentimentos. Dalí eles saem rumo ao Passeio Público, lá Angelique assiste o por do sol no horizonte da ilha de Itaparica.
A noite encontra os dois maravilhados pela alegria do carnaval no Centro Histórico. Angelique ver passar pela sua frente um filme vivo repleto de pierrots, palhaços, travestidos, velhos e crianças todos embalados no ritmo da festa. Ela sentiu-se em casa, pois Port de France realiza o maior evento da folia da Martinica parecido com Salvador.
Valdemar estava muito feliz pela companhia e pelas novidades desfrutadas por Angelique. A moça arriscou beber caipirinha, comeu um churrasquinho de gato e depois mergulharam numa das praças do Pelô pra curtir o som do reggae até a madrugada.
A comunicação entre os dois já fluía com mais facilidade quando ela acusou cansaço por um dia repleto de emoções. Então, Valdemar levou a namorada até a recepção do hotel onde ela se hospedara, no Campo Grande. Se despediram após um longo beijo, não sem antes combinar um novo encontro na portaria às onze horas da manhã da segunda-feira. Antes, Valdemar foi até a portaria e escreveu num papel o número do seu telefone entregandoa Angelique.
Valdemar planejara levar Angelique para conhecer a Mudança do Garcia. O folião tomou um táxi no Vale do Canela e rumou em direção à sua casa no subúrbio. Olhando pela janela do veículo a sensação era que as ruas estavam mais bonitas, talvez, coloridas pela aquarela de um amor caranavalesco.
Na segunda- feira, às nove da manhã, Valdemar já estava fantasiado e tomava o café quando a irmã saiu do quarto e assustou-se – o que foi houve ? Deu formiga na cama? Porque não pediu pra lavar a fantasia quando chegou?
Valdemar sorrindo respondeu:
– Eu não lhe conto. Eu conheci a minha deusa do ébano!
– Quem é essa criatura, menino ? – ela curiosa.
Rapaz, uma negra que é a coisa mais meiga que existe na terra. Ela não é brasileira, não. Ela é da Martinica, mas mora em Paris. Imagine você, ela é modelo internacional
– Agora você aprendeu a falar embolado, é? – Valquíria duvidando.
E prossegue:
– Deixe de mentiras, rapaz, você só vai atrás das piriguetes, como eu sei muito bem.
Valdemar justifica:
– Nada disso, ela fala francês e um pouco de espanhol, mas a gente se arranja e termina entendendo um ao outro – finaliza.
As nove e meia da manhã, Valdemar já está num ônibus que o levaria até o Vale do Canela. Quando o grupo de amigos chega na porta da casa dele, Valquíria informa:
– Meninos, Valdemar saiu foi cedo,viu?
Foi encontrar com a namorada nova no Campo Grande. Disse ele que é uma gringa !
Um dos amigos comenta:
– Foi isso meu velho. Quando o Gandhy chegou no Campo Grande ele sumiu. Já de noitinha, o celular dele só dava caixa. Eu quero é ver se essa namorada é gata mesmo.Valeu Valquíria !
Angelique aguardava o rapaz na portaria do hotel vestindo uma linda túnica africana, exibindo brincos tão especiais quanto os do dia anterior. O batom de um vermelho estravagante moldurava o sorriso que conquistou Valdemar. Cumprimentaram-se e ele levou a moça em direção ao bairro do Garcia. Os dois exibiam o porte de uma casal real africano e a beleza especial de Angelique chamava a atenção principalmente das mulheres.
No caminho, Valdemar encontrou com alguns amigos do bloco As Muquirinas. Angelique achou interessante e pediu que fosse fotografada junto com eles. Mais à frente, deu de cara com a ex-namorada de Valdemar que estava acompanhada por outro rapaz. Ela foi tomada pela surpresa e ele sentiu uma ponta de orgulho e seguiu em frente.
Chegaram ao largo do Garcia no momento da saída do cortejo. Angelique percebeu uma certa diferença em relação a festa do Pelourinho. Mas, não adianta explicar a bagunça organizada da Mudança do Garcia para uma estrangeira. Alí, sorriram bastante, beijaram-se e dessa vez ela experimentou beber cerveja. No meio da tarde foram a um restaurante e Angelique experimentou a muqueca.
Os Filhos de Gandhy iriam desfilar no circúito da Barra, naquela tarde, mas Valdemar preferiu retornar ao Pelourinho onde Angelique demonstrou estar mais à vontade no lugar. A música contagiante da festa incentivou a martinicana pegar seu amado pelo braço e seguir atrás de um bloco de arlequins e colombinas.Subiram e desceram ladeiras embriagados pela folia com amor..
No final da tarde sentaram na escadaria de uma das igrejas do local e ficaram a ver o carnaval passar. Depois assistiram um dos show do samba de roda de Cachoeira. A elegância dos trajes e a graça na forma de dançar das senhoras incentivou Angelique Vidal a fotografar e filmar o espetáculo.
Próximo à meia noite, a moça pediu a Valdemar que a conduzisse até o hotel. Mais uma vez, Valdemar levou Angelique até a recepção e ficou marcado o encontro às 9 horas da manhã da terça-feira, pois pretendiam aproveitar todo o dia. O cabeleireiro voltou para casa irradiando felicidades e nem percebeu quando o táxi parou em frente à sua residência.
O alarme do celular despertou Valdemar às sete horas da manhã, ele correu para o banheiro onde a pressa em fazer a barba provocou um leve corte no queixo. Mais uma vez vestiu a fantasia que ainda estava úmida – Valquíria estava acordada quando ele chegou e resolveu lavar a peça – tomou um gole de café e saiu em busca de um táxi na Avenida Suburbana.
Valdemar ! Ô Valdemar – gritou um amigo na porta. Valquíria apareceu sorrindo e disse – Não já sabe rapaz ?
O amigo respondeu:
– Já sei. Foi encontrar a namorada misteriosa. O grupo riu numa gargalhada só e foram para o ponto de ônibus.
O táxi deixou Valdemar no Vale do Canela às 8h45m. O folião subiu a ladeira em direção ao hotel chegando cinco minutos antes da hora marcada com Angelique. Aguardou por um tempo, mas a moça não apareceu na porta. Resolveu dirigir-se a recepção onde procurou pela hóspede Sra. Angelique Vidal. O recepcionista pediu para ele aguardar e foi até a caixa de correspondências pegou um bilhete e entregou para o cabeleireiro.
Valdemar abriu e lá estava escrito:
– Desculpe, mon amour. Returnei urgent Paris. Volto.
O chão do salão desapareceu sobre os pés de Valdemar. Ele saiu dali quase sem perceber onde estava a portaria. Na Avenida Sete, o sol inclemente do carnaval contribuiu para aumentar a confusão na cabeça do rapaz. Meio atordoado foi lentamente até o largo do Pelourinho encontrar com os amigos.
O ocorrido foi que a top model recebeu um chamado do seu representante em Paris. Angelique Vidal tinha sido contratada para fazer um edital de moda no Senegal, na quinta-feira após o Carnaval. A modelo deixou o hotel às seis e quinze da manhã daquela terça-feira.
Na hora de arrumar as malas apressada não encontrou o número do telefone de Valdemar anotado e este não estava gravado no celular.
Valdemar encontrou um Pelourinho ainda acordando para o último dia do carnaval. Estava tonto e procurando entender o porque de tanta decepção. Lembrou de Valquíria e das piriguetes que ela imaginava que ele procurava no carnaval. Será que ela tinha razão ?
Então bebeu a primeira cerveja com gosto de tristeza, a segunda e a terceira quando resolveu parar. O carnaval aínda não tinha acabado e quem sabe num golpe de sorte a vida lhe daria um troco na forma de alguém mais especial que Angelique ?
O agogô deu o toque, os atabaques rufaram e Valdemar voltou a realidade para descer a rua Chile, atravessar a praça Castro Alves, subir a rua Carlos Gomes até chegar na curva do Campo Grande e perceber um nó na garganta. Ele tinha ainda a esperança de encontrar alí parada com uma leve blusa branca, usando enormes brincos e exibindo um batom vermelho nos lábios, sorrindo pra ele sua deusa do ébano.
Angelique não estava lá.
Os amigos perceberam que Valdemar não estava muito à vontade, mas, eles estavam mais preocupados em entregar colares e receber beijos como bônus. Valdemar aos poucos foi recuperando o ânimo, um pouco por lutar contra as ordens do coração e mais pelo efeito causado pelas diversas latinhas de cervejas engolidas durante o caminho.
As dez horas da noite, Valdemar entrou num banheiro químico próximo a praça Castro Alves quase tropeçando no batente, abriu a porta, suspendeu a fantasia e mijou alí no chão mesmo, saiu cabaleando e tentou encontrar os amigos no mar de turbantes que inundava a praça do povo.
Um cara que entrou no banheiro após Valdemar ouviu a chamada do celular que insistia em tocar naquele piso fétido de um banheiro. Ele agachou, pegou o aparelho e viu um alerta de mensagem pelo WhatsApp. Ele resolveu ler:
Angelique encontrara o número do celular de Valdemar
“ Mon amour, je suis arrivé à Paris à present. Después del trabajo regresso al Brazil em descanso de un mês com você. Te quiero. Angelique “.
O cara tirou o chip do celular e jogou dentro do vaso sanitário acionando a descarga.
Na quarta – feira de Cinzas,Valdemar acordou sem um telefone e sem uma Angelique, daí alimentou a certeza que poderia explicar toda a dor.
O cabeleireiro tinha um coração com muito pouco espaço para ser ocupado por dois grandes amores.
O Filhos de Gandhy era o maior de todos
Zuggi Almeida é baiano, escritor e roteirista.