Aos inimigos, a lei. Por Ignacio Cano*
Reza o ditado popular brasileiro que aos amigos devemos tudo e aos inimigos, a lei. Implicitamente, entende-se que não podemos aplicar aos amigos a mesma lei que reservamos aos inimigos ou, ao menos, não da mesma forma. A máxima é perfeita para entender o processo político que o Brasil vive hoje.
Na verdade, a despeito da sua imagem de dama cega e implacável, a justiça penal é sempre seletiva, pois a aplicação sistemática da lei a todos os supostos infratores seria materialmente impossível, pela falta de recursos, e extremamente inconveniente. Se todos os indivíduos que cometeram alguma vez algum tipo de infração fossem simultaneamente processados e condenados, numa eficácia penal absoluta, a sociedade seria ingovernável. Por isso, os operadores de justiça criminal costumam priorizar os casos seguindo um critério de oportunidade, dando preferência aos delitos mais graves. Mas, se a aplicação da lei é necessariamente seletiva, ela precisa ser isonômica para poder ser legítima, isto é, precisa ser aplicada a todos sob as mesmas condições. Caso contrário, a lei deixa de ser um limite comum para regular a conduta dos indivíduos e torna-se um instrumento da ação política.
A possibilidade de uma utilização enviesada da lei se beneficia da existência de normativas ambíguas, que podem ser interpretadas de acordo com o momento e o contexto, como acontece com a regulação do impeachment, que parte de uma lei de 1950 só parcialmente recepcionada pela Constituição de 1988. Define-se o impeachment como um julgamento simultaneamente político e jurídico. Ora, qualquer julgamento que pretenda ser ambas as coisas será, fatalmente, político e não jurídico, pois a isenção e a técnica necessárias para um veredito criminal serão sobrepujadas pelo critério político. Existem muitos países em que o poder legislativo precisa autorizar o processamento criminal de autoridades com foro privilegiado, mas não é comum que a atribuição de determinar se houve ou não crime caia nos ombros dos legisladores, muitos dos quais carecem de qualificação jurídica. Outro ponto questionável é o fato de que a aceitação dos pedidos de impeachment caiba, em exclusiva, ao presidente da Câmara, neste caso do mesmo partido político do vice-presidente que se beneficia do processo.
O ritual do impeachment se arrasta como uma farsa jurídica, com depoimentos de peritos que são basicamente irrelevantes, pois não é a possível antijuridicidade da conduta presidencial o que está realmente sendo julgado. Muito se falou sobre a possibilidade de que o vice-presidente tivesse assinado decretos parecidos aos que embasaram o processamento da presidenta ou sobre o fato de que muitos governadores tivessem recorrido a práticas contábeis parecidas. De novo, tudo isso é irrelevante, pois a votação dos parlamentares no processo não depende da suposta responsabilidade criminal, mas de avaliações de cunho político, como muitos deputados esclareceram na explicação do seu voto na Câmara e como muitos senadores não se furtam a admitir abertamente.
Desse modo, o Brasil troca um sistema formalmente presidencialista por uma espécie de parlamentarismo pela porta dos fundos, em que coalizões políticas podem forçar uma mudança de um presidente eleito usando a lei como desculpa. Não será esse uso partidário das leis que restaurará a confiança dos investidores internacionais, objetivo que o governo interino declara perseguir.
A própria condução da justiça pelos operadores do direito não está livre de suspeita. O juiz Moro, alçado a condição de herói por alguns setores sociais, cometeu irregularidades de extrema gravidade. Utilizou gravações realizadas fora do período autorizado, decidiu sobre pessoas com foro privilegiado ao invés de repassar a decisão para o Tribunal Supremo, e divulgou numerosas escutas telefônicas, muitas delas sem relação alguma com os fatos investigados, sob o argumento de que “a democracia numa sociedade livre exige que os governados saibam o que fazem os governantes”. Seguindo essa mesma lógica da transparência ilimitada, poder-se-ia defender o grampo dos próprios juízes do Supremo e a sua divulgação posterior, para que a sociedade pudesse saber também como eles agem. O Supremo já se manifestou no sentido de corrigir essas deficiências, mas não parece que elas vão implicar em qualquer consequência para o juiz Moro de cunho disciplinar, muito menos penal. Por irregularidades de menor gravidade o juiz espanhol Baltasar Garzón, também elevado ao papel herói por setores de uma orientação ideológica diferente, foi processado por prevaricação e expulso da carreira judicial.
Na verdade, o processo de impeachment é apenas o maior expoente dessa tendência mais ampla a usar a lei de forma seletiva. A utilização do tipo penal de ‘apologia do crime’ é outro exemplo gritante, com baloeiros sendo processados criminalmente pela sua rejeição às leis ambientais, enquanto políticos que defendem a tese de ‘bandido bom é bandido morto’, uma clara apologia do homicídio, nunca são perturbados.
Além da ambiguidade, outro cenário que favorece a seletividade legal é a elaboração de normativas extremamente estritas, quase impossíveis de cumprir, para que a tolerância com seu descumprimento seja administrada em seu favor pelas autoridades. Assim, por exemplo, a autorização para a celebração de eventos festivos em áreas públicas é frequentemente sujeita a numerosas exigências, impossíveis para os moradores de favelas e invasões. Dessa forma, cada comandante policial pode decidir quais solicitações autorizará e quais não, usando essa discricionariedade como um instrumento político e de controle na sua relação com os cidadãos.
Um dos traços centrais do Brasil sempre foi a distância entre o país das leis e o país das ruas, entre as leis que são efetivamente cumpridas e as que permanecem no limbo. No dia que as altas autoridades do estado aplicarem as leis de forma isonômica será mais fácil exigir o seu cumprimento ao conjunto dos cidadãos.
Ignacio Cano é professor da UERJ
Artigo publicado originalmente em http://brasil.elpais.com/brasil/2016/07/16/opinion/1468686540_779382.html