Aldeia Nagô
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Após ‘ditabranda’, Brasil pode rumar para a ‘democradura’, diz Mario Rosa

5 - 7 minutos de leituraModo Leitura
Mario-Rosa

Que voltas o mundo dá, não? Na Bahia, há um ditado que diz: “Pense num absurdo? Aqui tem precedente!”. Pois o axioma baiano parece ter ganho dimensão nacional: gostem ou não gostem, queiram ou não queiram, o presidente Temer lançou uma cruzada para combater o crime organizado.

Pode dar certo ou não, pode ser uma farsa ou uma sacada genial, mas até esse mistério ser decifrado haverá dois símbolos do enfrentamento às organizações criminosas no país: o abnegado juiz Sérgio Moro e ele, ele sim, Michel Miguel Elias Temer Lulia!

Outro dia, mencionei aqui o desencontro deliberado entre a moral e a ordem, no episódio em que o juiz Moro evitou cumprimentar o deputado Jair Bolsonaro no aeroporto de Brasília, uns anos atrás.

A moral e a ordem não são irmãs. São como primas. Pertencem à mesma família, compartilham algum DNA, podem até se parecer. Mas são coisas diferentes. A ordem pode funcionar facilmente como um genérico da moral e ser assimilada como tal, pela grande maioria.

Ao desfraldar a bandeira do combate à criminalidade, astutamente, o presidente Temer se enrola na bandeira nacional (que por sinal tem ordem e não moral e progresso como lema) e se apropria de um tema conexo com a moralidade –o combate ao crime– só que pela via da ordem.

Quem já viu a foto oficial do primeiro mandatário, percebeu que ele se apoia na mesa presidencial. Mais do que nunca ele está fazendo isso agora: está usando sua caneta como uma bazuca política.

Na foto oficial, Temer escolheu posar com a mão apoiada sobre uma mesaBeto Barata/PR (divulgada em 9.nov.2017)

O povo detesta a baderna e os moralistas são sempre a infantaria que sai em campo dinamitando regimes com denúncias no campo de batalha da política. Mas, essa é a tradição no Brasil, quem chega por último com a artilharia pesada, domina e vence a guerra são os batalhões da ordem.

No meio disso, a choldra confunde os diversos regimentos e acha que fazem parte do mesmo exército. Mas nunca houve até hoje nenhuma toga que fuzilou uma baioneta. A ordem sempre venceu.

Temer, como em sua foto oficial, usa agora a ordem como calço de seu mandato. E ao fazê-lo escolhe um inimigo perfeito, um dos atributos mais primorosos da alta política: escolher contra quem lutar é vencer metade da batalha. Pois enquanto a Lava Jato guerreia contra a velha política, a epítome da política tradicional no exercício da Presidência decidiu guerrear contra a criminalidade desenfreada que atinge sobretudo os mais pobres.

Então, poderemos ter a partir de agora duas forças-tarefas: a de Temer e a da Lava Jato.

A força-tarefa presidencial estará enfrentando problemas concretos, em comunidades reais, libertando pessoas do comando do tráfico, das milícias, dos criminosos.

A força-tarefa de Curitiba estará fazendo a assepsia que, já bem avançada, a população endossou e aplaudiu.

A intervenção no Rio de Janeiro, a rigor, ainda é uma “intervencinha“. Não existe na Constituição intervenção setorial, assim “tipo” na saúde, na educação, na segurança. Ou se é interventor –e o governador dançou– ou não se é interventor coisíssima nenhuma.

Não faltam ao general-interventor Braga Netto senso de disciplina e de dever. Não lhe faltam, decerto, alvos de sobra para serem atingidos. Não lhe falta efetivo. Só lhe falta o essencial para travar esta guerra, qualquer guerra a rigor: falta-lhe munição.

Pelas vias legais disponíveis, o combate necessário ao crime organizado no Rio de Janeiro simplesmente não pode acontecer. Os traficantes podem ignorar a lei, os bandidos, os contraventores, os assaltantes –mas o Estado, não. O Estado só pode guerrear dentro dos marcos legais. Senão, seria um Estado bandido, um contrassenso.

Ou seja, a intervenção terá de se tornar uma intervenção de fato, plena, total, absoluta, se quiser produzir efeitos. Mas, ainda assim, não será suficiente. O general precisará de um paiol institucional bem mais persuasivo.

E, atenção: a cada passo nesse aumento da guerra contra o crime nas ruas, há um reflexo enorme e bombástico nos cálculos e nos jogos do poder real nos bastidores. É preciso acompanhar um com o olho no outro. Foi essa a sutileza colocada pelo presidente em sua guerra contra o crime.

Há munição disponível para enfrentar o crime na democracia? Há sim senhor. Chama-se Estado de Defesa. É um estado de exceção, estipulado pela Constituição, por tempo determinado em local determinado. Nessa situação, ficam abolidos alguns direitos individuais dos cidadãos, como sigilo de correspondência e comunicação, de se reunir em grupo. Com algo desse tipo, bem, seria necessário haver planejamento, trabalho duro, seriedade, honestidade, compromisso –mas o alargamento legal necessário estaria disponível para que uma guerra ao crime fosse tentada de uma forma como nunca se tentou.

Mas como tudo na política, nada é neutro. O Estado de Defesa só pode ser decretado por 30 dias e prorrogado por uma vez. Tempo suficiente para resolver a criminalidade incrustada nas vísceras carcomidas do Rio?

O sucedâneo a isso seria o Estado de Sítio, um estado de exceção generalizado de caráter nacional. Eleições poderiam ser suspensas. Alguém imagina que no Palácio do Planalto alguém está preocupado com política numa hora dessas? Tenho certeza de que a pauta é só segurança no Estado do Rio, né não?

Ah, sim: num eventual Estado de Sítio, o presidente da República acumula automaticamente todos os poderes. Passa a ser chefe do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. O presidente Temer, nessa hipótese distante, tornar-se-ia presidente da República, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal.

Tempos atrás, criou-se uma expressão para definir o estado das coisas na ditadura militar: a ditabranda. Foi uma expressão muito contestada, pois queria dizer que a ditadura brasileira não foi dura, mas branda.

Podemos estar caminhando (embora ainda não acredite) para um experimento inédito: a democradura –a democracia com todos os contornos de uma ditadura.

Quem poderia imaginar que depois da Lava Jato haveria a hipótese institucional de termos o presidente da República como chefe da Suprema Corte? Em tese, com um Estado de Sítio, isso é possível. Temer chefe do do STF? Muitos irão achar que é plenamente justificável: acabar com a criminalidade no Rio é fundamental, não é mesmo?

Mario Rosa, 53 anos, é 1 dos mais renomados consultores de crise do Brasil. Pede que em sua biografia seja incluído o fato de ter sido jurado de miss Brasil e ter beijado o manto verde-rosa da Estação Primeira de Mangueira. Foi o autor do prefácio do primeiro plano de gerenciamento de crises do Exército Brasileiro. Atuou como jornalista e consultor.

Tropas do Exército brasileiro: acostumadas a operações em grandes cidades

Artigo publicado originalamente em https://www.poder360.com.br/opiniao/brasil/apos-ditabranda-brasil-pode-rumar-para-a-democradura-diz-mario-rosa/

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