Aldeia Nagô
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Artista privilegiado por Marcelo Praddo

8 - 11 minutos de leituraModo Leitura

Há uma semana, em um almoço na casa de amigos, regado a vinho e
calorosa discussão sobre política brasileira – a despeito da provável
indigestão que o tema nos provocaria –  a conversa descambou para o
Governo Jaques Wagner e, mais especificamente, para a política cultural
encampada pelo Governador.

Bem, a essa altura dos acontecimentos acho que a classe teatral
baiana já supõe o que penso a respeito, principalmente no que se refere
ao artista de teatro profissional da Bahia.


Mas o que mais me marcou nesse papo familiar foi o comentário de um
amigo, voraz defensor do Governo da Bahia e da sua Secretaria de
Cultura.

Esse amigo, freqüentador assíduo do nosso teatro, argumentava em
defesa de suas convicções, que as mudanças perpetradas pela referida
Secretaria eram necessárias porque, afinal, "tinha muito artista
privilegiado mamando na gestão anterior".

Perguntei quem eram esses artistas. "Ah, Marcelo, você sabe!"

Não, realmente, não sei! Pedi, mais uma vez, que ele me citasse algum desses artistas.

Silêncio!

Ele também não sabia!

Fui pra casa com aquela conversa na cabeça. Artista privilegiado.
Pensei em todos os meus colegas de trabalho, tentando encontrar algum
ator, diretor, dramaturgo, figurinista, cenógrafo, maquiador, enfim,
alguém que pudesse estar naquela lista imaginária dentro da cabeça do
meu amigo. Acabei por fazer uma viagem no tempo, à procura de alguém,
um amigo, um colega, um desses artistas privilegiados que,
inadvertidamente, tivesse me dado um sinal do seu privilégio e que eu
não tinha percebido.

Comecei a fazer teatro em 1985, cantando no Corana, um coral
performático regido pelo Maestro Keiller Rego, no espetáculo "Psiu! Um
Conto de Fadas", do Grupo Via Magia. Com o Corana participei de outros
espetáculos do Grupo, ganhando pequenos textos até Ruy Cezar e Rô Reyes
me darem um papel de verdade, uma personagem: um menino, dono de um
robô. Foi quando comecei a me sentir privilegiado.

Em 1989 fiz o V Curso Livre de Teatro, da Escola de Teatro da UFBA
e, no meio do curso, recebo uma ligação de uma produtora de vídeo para
fazer um teste para um comercial. Até hoje não faço a menor idéia de
como isso ocorreu. Mas fiz o teste, passei e gravei meu primeiro
comercial – um privilégio, principalmente numa época em que encontrar
ator baiano na publicidade local era uma raridade.

Em 1990 pedi transferência do curso de Arquitetura e Urbanismo da
mesma Universidade – que eu empurrava com a barriga sem ter coragem de
realizar mudança tão radical na minha vida – para o curso de Bacharel
em Interpretação Teatral. Naquela época o estacionamento da Escola de
Teatro ainda vivia às moscas e pouca gente tinha coragem de se assumir
ator quando se deparava com a pergunta: profissão?

Na Escola de Teatro tive o privilégio de ser colega de Elisa Mendes,
Claúdio Simões, Celso Júnior, Teresa Costalima e tantos outros
privilegiados pela sede de aprender aquele ofício que nos encantava.
Logo fomos apelidados de "Turma de Nojenta" (90) porque causamos certo
reboliço num período em que a Escola passava por uma fase morna,
fazendo de cada Mostra de Cena um pequeno espetáculo, ganhando a
admiração e o incentivo dos professores e gerando ciúmes nas outras
turmas – daí o apelido. Talvez fossemos mesmo, metidos. Mas, queiram ou
não, viramos referência na Escola de Teatro, o que era um privilégio. E
privilégio maior era ser aluno de Harildo Deda, Deolindo
Checcucci, Cleise Mendes, Ewald Hackler, Paulo Dourado, Sérgio Farias,
Armindo Bião, Marta Saback, Claudete Eloy, Hebe Alves, Sônia Rangel,
Eduardo Tudella, Jorge Gaspari, atores, diretores, operários de teatro
como poucos.

Paralelamente ao curso, minha carreira de ator de publicidade
começada ao acaso ganhava força com o fortalecimento do mercado de
teatro da cidade atestado pelo talento de gente como Rita Assemany,
Gideon Rosa,
Frank Menezes, a Cia Baiana de Patifaria, Los Catedrásticos e muito mais gente que, como eu, também já aparecia na telinha.

Com o trabalho, a resistência e o talento desses profissionais
tivemos o privilégio de ver sumir da cidade as produções do eixo Rio-
SP que inundavam os nosso teatros e que já não se arriscavam com tanta
facilidade em um mercado que se viu tomado de espetáculos profissionais
baianos – curiosamente, esse fenômeno começa a se repetir, basta
observar a programação do Teatro Jorge Amado, por exemplo.

Foi quando criamos a Companhia de Teatro Elétrico da Bahia, com
direção de Fernando Guerreiro, tendo Vadinha Moura como diretora
assistente e no elenco, além de mim, Ana Paula Bouzas, Evelin
Buchegger, Andrea Elia, Agnaldo Lopes e Wagner Moura. Um elenco dos
sonhos! Isso sim, foi privilégio!

Em 1997, um ano antes da formação da Companhia, Salvador atingia a
marca de 127 estréias de espetáculos de teatro. Isso mesmo, 127! O
público baiano tinha o privilégio de escolher de tudo um bocado:
"Divinas Palavras", "Cabaré das Raças","Medeia", "Abismo de Rosas", D.
Maria I – A Louca", "Suburra", "Assis Valente – Um Musical Brasileiro",
"Os Cafajestes", só pra citar alguns espetáculos do período, dos mais
variados grupos e correntes. Que privilégio!

O teatro profissional da Bahia contagiava a todos. Empresas,
Instituições públicas e privadas queriam ter o privilégio de contar em
seus eventos com artistas genuinamente baianos, talentosos e
competentes. Mais um nicho de trabalho se abria para os operários das
artes do nosso Estado.

Trabalhando na Companhia, tive que recusar algumas propostas que iam
surgindo, pelo menos duas ao ano. Sequer tive a possibilidade de tentar
uma audição para os espetáculos do Núcleo de Teatro do TCA porque
estava sempre com algum espetáculo em cartaz, ou ensaiando outro por
estrear. Quando aconteceu, em 2005, foi como ator convidado para
protagonizar o "Hamlet", de Harildo Deda, quase dez anos depois de me
formar pela Escola de Teatro – sob a direção do mesmo Harildo – e com
outro texto de Shakespeare: "Macbeth". Quer mais privilégio?

Eis que a Bahia comemora em 2006 a vitória do Governador Jaques
Wagner e a classe teatral baiana antevê a possibilidade de uma guinada
ainda maior com a pasta da Cultura capitaneada por um artista e, melhor
ainda, um artista de teatro. Um privilégio!

2007 começam com os famosos encontros da nova Secretaria da Cultura
– agora separada da de Turismo – com os seus artistas. Lá estávamos,
dispostos a pensar essa nova forma de produção da nossa arte.

Os trabalhos começaram a ficar escassos, mas, tudo bem, era começo
de governo, precisávamos de um tempo para as coisas se ajeitarem.
Depois, eu tinha o meu contrato de publicidade que me permitia
sobreviver sem estar fazendo teatro. Um privilégio! Aí disseram que o
Fazcultura era um antro de desonestidade de empresários e produtores. E
eles se retraíram. Aí acabaram com vários projetos que faziam parte da
agenda cultural da cidade. Nada foi colocado em seu lugar.

Entram 2008 e Gil Vicente Tavares me convida para uma produção
contemplada pelo Edital de Apoio a Montagens Teatrais da Funceb – agora
a única forma de fazer teatro profissional na cidade – "Os Javalis",
texto e direção de Gil e com Carlos Betão no elenco. O "prêmio" de
R$30.000,00, se transformam em R$24.000,00 com os descontos de
impostos. A pauta da Sala do Coro, teatro da Fundação Cultural do
Estado da Bahia consome mais R$5.000,00 que, atônitos, devolvemos à
mesma Fundação que nos premiou. Restam R$19.000,00 para cobrir os
cachês dos artistas e técnicos, figurinos, cenário e todo o custo de
produção, que nunca é pouco. Ficamos em cartaz por apenas um
mês. Não me lembrava da última vez que isso tinha acontecido. Ou
melhor, até me lembrava, mas aquilo fazia parte de um passado que nós
já tínhamos deixado lá, no passado.

Chegamos ao corrente ano. Acho que não atingimos nem a marca de 10
estréias de espetáculos profissionais até hoje, agosto de 2009.
Coincidentemente, 10 é o número de prêmios do Edital de Apoio a
Montagens Teatrais da Funceb. Os do ano passado ainda estão começando a
estrear devido ao enorme atraso do repasse das verbas. Tomara ainda
contem com os elencos originais, afinal de contas ninguém para por um ano.

Fiz outro trabalho com o Teatro Nu, de Gil Vicente, por três
semanas. Menos de um mês. É o teatro possível da Bahia de hoje. Ainda
bem que tenho meu contrato de publicidade. Um privilégio!

Penso nos meus amigos, artistas de teatro: Agnaldo Lopes, Evelin
Buchegger, Andrea Elia, Márcia Andrade, Tom Carneiro, Zeca de Abreu,
Fafá Menezes, Rita Assemany, Yulo Cezzar, Gideon Rosa, Deolindo
Checcucci, Aícha Marques, Celso Júnior, Carlos Betão, Vitório Emanoel,
Daniel Becker, Elisa Mendes, Edlo Mendes, Carmem Paternostro, Diogo
Lopes, Beto Mettig, Isabela Malta, Beto Laplane, Caíca Alves, Cristiane
Barreto, Cristina Dantas, Diana Ferreira, Fernanda Mascarenhas,
Hamilton Lima, José Carlos Ngão, João Figuer, Lika Ferraro, Marcelo
Augusto, Widoto Áquila, a grande maioria deles presentes na
manifestação do 2 de Julho.

Fico imaginando, procurando alguma pista, um indício qualquer que
ateste a afirmação do meu amigo. Fantasio algumas dessas pessoas com
uma cobertura na Vitória, uma conta milionária em algum paraíso fiscal,
um cargo secreto no Senado, carros importados escondidos em alguma
garagem de um condomínio na Linha Verde, passagens aéreas gratuitas,
cartões coorporativos, férias em Dubai,  um castelo medieval construído
no interior de Minas Gerais ou um loft de frente para o Central Park
comprado com o dinheiro "mamado" que meu amigo falou. Algum deles deve
ser esse "artista privilegiado".

Bom, como agora os "empresários desonestos" sumiram, os "produtores
desonestos" também sumiram – e com eles os projetos culturais e as
produções de teatro que faziam de Salvador e da Bahia um pólo de
cultura – tenho bastante tempo para pensar.

Um dia descubro. E conto para o meu amigo.

* Marcelo Praddo, ator baiano privilegiado.

Artigo publicado originalmente em http://www.culturaemercado.com.br/post/artista-privilegiado/

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