As dívidas de campanha, A história de uma farsa – Capítulo 3 por Miguel do Rosário
Em algum momento lá trás, eu mencionei o “mínimo distanciamento histórico” em relação aos fatos que produziram o escândalo do mensalão. Preciso agora enfatizar o termo “mínimo”, ou mesmo me contradizer. Não há distanciamento histórico.
As bombas ainda explodem lá fora. O editorial do Globo hoje, 15 de maio de 2013, é: “Mensalão recoloca STF em risco”, onde o jornalão assevera que o tribunal “precisa ter consciência de que, ao decidir sobre novo julgamento, pode pôr a perder a credibilidade obtida com sua atuação no caso até agora”. É uma ameaça. O Globo, pela enésima vez, põe uma faca no pescoço dos ministros do STF e diz: vão em frente.
A grande ironia é que o Globo está certo. Só que ao contrário. O STF está, de fato, em risco de se desmoralizar, mas se se curvar mais uma vez aos interesses políticos e às chantagens da família Marinho.
Eu falei nas bombas que estouram lá fora porque me lembrei de um comentário de alguém sobre Jules Michelet, talvez o mais querido historiador francês. Em 1848, Michelet escrevia sobre a revolução francesa enquanto ouvia, do lado de fora de sua casa, as bombas de uma outra revolução acontecendo. Os mesmos princípios estavam em jogo: a república, a democracia, a igualdade social. Michelet era um ardente republicano e defensor dos legados da revolução francesa, mas não podia negar os erros trágicos e brutais das lideranças que assumiram o poder no auge do “terror” jacobino. Michelet, todavia, era inteligente demais para publicar uma denúncia contra a revolução que pudesse ser instrumentalizada por seus adversários políticos para atacar os princípios que ele, Michelet, acreditava. Michelet era o que, mais tarde, os marxistas chamariam de “intelectual orgânico”. Hoje em dia, a historiografia oficial francesa lê Michelet com muita cautela, tentando separar seu engajamento ideológico e seus inegáveis talentos literários dos acontecimentos históricos em si. Após um certo tempo, a academia tende a analisar os fatos com a frieza de um dissecador de cadáveres. Mas todos admitem que, se você quiser sentir um pouco do calor revolucionário que emanava das ruas parisienses, naqueles cinquenta anos a partir da queda da Bastilha; se quiser entender o que aconteceu não apenas de maneira cerebral ou acadêmica, mas apreender sobretudo suas reverberações espirituais, então você precisa ler a História da Revolução Francesa de Jules Michelet.
Ao abordar a aparição de Marcos Valério no palco da história política brasileira, começaremos a falar dos grandes erros do PT. O erro fundamental, naturalmente, foi ganhar as eleições. Um parente meu, alguns meses após a posse de Lula, quando a onda de cobranças deflagrou mais uma fornada “desencantados com a política”, me disse assim mesmo: “O PT não deveria ter ganho”. Não era ironia. Havia muita gente, na própria esquerda, que entendia que o PT não deveria ter ganho, para evitar o processo de corrosão ética e ideológica provocado pelo poder.
Quando escavamos as origens do mensalão, batemos em alguma coisa sólida lá embaixo, guardamos a pá e abrimos o baú encontrado, o que vemos?
A vitória de Lula não representa, naturalmente, apenas a vitória pessoal do ex-metalúrgico, nem somente a ascenção do Partido dos Trabalhadores às funções máximas do Executivo. Há um corte histórico, que nem o mais raivoso inimigo do PT poderá negar. Uma coisa é o que acontece na superfície dos acontecimentos. A festa do povo nas ruas. A cantoria, o choro e as bebedeiras. Outra coisa é o movimento silencioso e profundo das placas tectônicas da história.
Vamos aos fatos.
Primeiro, a campanha. Todos os crimes eleitorais acontecem na campanha. A campanha eleitoral, em si, é o crime fundamental do regime democrático.
Não por outra razão, quando os petistas começam a se recuperar do susto que levaram com o escândalo do mensalão, repetirão em coro: a culpa é das campanhas! Daí nasce o desejo de fazer uma reforma política para tampar o ralo por onde escorre toda a decência e toda a ética.
Só que não vão conseguir. As campanhas eleitorais continuarão, para sempre, sendo um crime político. Porque é nas campanhas que se mobilizam todas as forças, todos os recursos, se amarram todos os compromissos. É nas campanhas que, invariavelmente, vemos despontar no horizonte, caminhando em nossa direção, um homem manco, de rosto estranho, com um pé deformado, semelhando um pé… de cabra.
Perdoem-me a caricatura, que tentarei desfazer mais adiante, mas não posso resistir: que figura mais parecida com o diabo senão aquele risonho moço de careca luzidia chamado Marcos Valério?
A única maneira de pôr fim a este grande crime político, ao crime original, é dar fim às campanhas. Ou seja, é dar fim ao regime democrático e instalar a ditadura. De preferência, uma ditadura de juízes vitalícios. Aí sim, o país poderá respirar aliviado, as classes instruídas poderão olhar, satisfeitas, para os donos do poder, que serão homens cultos e severos, e que não chegaram onde chegaram através de campanhas políticas sujas.
Ah, mas não é somente um crime. As campanhas mobilizam uma grande quantidade de mão-obra. São milhares, quiçá milhões de pessoas trabalhando em todo país, em tudo que é tipo de atividade. A moeda mais valiosa em qualquer campanha é o trabalho. Qualificado, naturalmente. Se há dinheiro para pagar o trabalho, paga-se. Se não se tem, faz-se dívidas. Arrisca-se. As campanhas mobilizam as apostas mais temerárias que se pode conceber. Empresários, ativistas, políticos, donas de casa, todo mundo aposta alguma coisa.
Após a vitória, Lula chama a equipe que coordenava a questão do financiamento de sua campanha. Obviamente, sempre fora a questão crucial para a vitória. E deixemos claro uma coisa: o PT não ganhou as eleições apenas por causa do amor dos companheiros à causa. A campanha de Lula foi rica em recursos. E falo do Caixa 1, contabilizado. O professor Wanderley Guilherme dos Santos fez um levantamento das eleições de 2002 e verificou que Lula ganhara mais dinheiro que seu adversário, José Serra. Os empresários brasileiros, apesar de toda afinidade ideológica com o PSDB, estavam traumatizados pela incompetência do governo FHC. O país quebrara várias vezes, a carga tributária quase dobrara, os juros atingiram níveis insuportáveis. Só quem ganhava dinheiro, em tese, eram os bancos. Mas até os bancos quebraram! O capitalismo brasileiro foi empurrado à força para a esquerda, porque entendeu que precisava de uma coisa básica para continuar produzindo riqueza: consumidores.
Pizzolato, que já participara de várias campanhas e entendia de economia, em função de seu trabalho no Banco do Brasil, era um dos que trabalhavam no núcleo de programa de governo do comitê e descreve a reunião com Lula em tons vívidos. Os cardeais estavam todos presentes: José Dirceu, Palocci, Gushiken, etc. Lula só pediu uma coisa: quero as contas de campanha totalmente ordenadas. Quero ser diplomado sem a mínima mácula. E assim foi feito. Todos trabalharam como loucos para ordenar sabe-se lá quantos milhares de notas fiscais, preencher sabe-se lá quantas planilhas. Mas tudo foi cumprido à risca e Lula é diplomado com as contas de campanha em dia.
Aí, vem uma outra reunião. A campanha nacional fora paga, mas os dirigentes regionais aparecem com enormes pendências. Dívida tem que ser paga! Ainda mais naquele Brasil em profunda crise econômica, desemprego altíssimo, como era em 2003. Ouvíamos casos de homicídios por dívidas de 15 reais. Que dizer então das milionárias dívidas de campanha?
“Então Lula fez uma coisa de doido”, diz Pizzolato. Quando a gritaria dos diretórios regionais em relação às dívidas começou a ficar alta demais, Lula chamou Delúbio Soares, tesoureiro do partido e mandou: “Resolve isso, Delúbio”. O diretório nacional do PT, por orientação do recém eleito chefe de Estado, assume as milionárias dívidas dos núcleos regionais. O PT, de uma hora para outra, mesmo tendo ganhado as eleições, se tornava uma instituição completamente falida e endividada.
O Delúbio era o cara com mais intimidade com Lula, conta Pizzolato. Quando Lula mandou ele assumir todas as dívidas, ele quase caiu da cadeira e rebateu de pronto: “No meu, não, né, presidente (ele agora já chamava Lula de presidente)! No meu arde!”
Palocci dá um risinho, bate nas costas de Delúbio e diz alguma coisa sobre o peso de “ser governo”.
Delúbio vai atrás do dinheiro. O fundo partidário estava mais liso que a careca de Valério: tudo havia sido gasto para que Lula se diplomasse com as contas pagas, totalmente limpo. Onde está o dinheiro? Nos bancos. Segundo Pizzolato, Delúbio gostava de fumar charutos; quem trabalhava mesmo eram os dois secretários à sua disposição. Os petistas vão ao Banco do Brasil pegar emprestado. O patrimônio do PT só permitia ao partido pegar uns 2 milhões de reais. Não dava nem para encher o buraco do dente. A dívida total era mais de 50 milhões de reais. Os bancos não queriam emprestar para o PT por uma questão burocrática básica: o partido tinha um limite baixo.
Ironia quase trágica. O partido que vencera as eleições presidenciais não tinha limite. Mas o empresário Marcos Valério tinha. Ele podia pegar quanto dinheiro quisesse, porque era bem relacionado. “Hoje o pessoal fala mal do Valério, mas na época ele foi o salvador da pátria”, conta Pizzolato.
Com Marcos Valério como avalista, o PT conseguiu levantar dois bons empréstimos com o BMG e o Rural. Parte do problema estava sanado. Até aí tudo bem. Mas ainda faltava dinheiro. Então Valério faz um acerto com Delúbio. Aí nasce, efetivamente, o “mensalão”. Valério faz um empréstimo em seu nome, para pagar as dívidas do PT. Delúbio fazia assim, conta Pizzolato: conforme os diretórios iam ligando para cobrar o pagamento das dívidas, ele ligava para uma secretária de Valério para fazer os pagamentos. Tudo isso acontecia em 2003. Só que o tempo foi passando; em poucos meses, haveria outra eleição. Novas dívidas começaram a surgir…
Artigo publicado originalmente em http://www.ocafezinho.com