Assad: A derrota dos terroristas é a derrota dos países que os apoiam. Por Maria Finóshchna
Em entrevista à jornalista Maria Finóshchna, da emissora Russia Today, o presidente sírio Bachar al-Assad explica os acontecimentos em Alepo, onde o Exército Árabe Sírio, com a ajuda da Rússia, acaba de infligir uma contundente derrota aos terroristas apoiados por potências imperialistas ocidentais e países da região.
Exército Árabe Sírio em um dos bairros de AlepoExército Árabe Sírio em um dos bairros de AlepoLeia a seguir a íntegra da entrevista, traduzida pelo Resistência:
Rússia Today: Senhor presidente, obrigado por nos receber.
Presidente Bachar al-Assad: Sejam bem-vindos a Damasco.
Comecemos com Alepo, claro. Alepo passa hoje por combates que talvez sejam os mais ferozes desde o início da guerra há seis anos aqui na Síria. Mas políticos e jornalistas ocidentais insistem em posições de forte oposição, com olhar muito negativo sobre os avanços do exército sírio. Por que acontece assim, na sua avaliação? Será que veem a derrota dos inimigos da Síria como derrota deles mesmos?
Faz sentido, depois de terem fracassado em Damasco, porque o discurso dos três primeiros anos da guerra era “libertar Damasco das mãos do Estado”. Quando fracassaram, foram para Homs; fracassaram em Homs e concentraram-se contra Alepo durante os três últimos anos. E para eles, seria a grande cartada no campo de batalha sírio.
Claro, sim, sempre houve terroristas nas várias regiões da Síria, mas não como em Alepo que é a segunda maior cidade do país, com dimensão política muito especial, militar, econômica e até moral, depois que os terroristas foram derrotados.
Assim, para políticos e jornalistas ‘ocidentais’, a derrota dos terroristas é a derrota das forças que o próprio ocidente mantém ‘por procuração’ na Síria, para dizer claramente. São forças do ‘Ocidente’, mantidas aqui por procuração e, para essas forças, a derrota dos terroristas é a derrota dos países que supervisionam e abastecem os terroristas, sejam países regionais ou países ‘ocidentais’ como EUA, em primeiro lugar, a França e o Reino Unido.
Para o senhor, então, eles veem o que está acontecendo como derrota direta deles?
Exatamente, é exatamente o que quero dizer. A derrota dos terroristas é a derrota desses países, porque os terroristas são o verdadeiro exército daqueles países, em luta aqui na Síria. Esses países não intervieram diretamente na Síria: mas, sim, a intervenção aconteceu mediante essas forças ‘por procuração’. As coisas têm de ser vistas desse modo, se se quer fazer análise realista. E, claro, as declarações dos terroristas nada mudam nesses fatos.
Palmira é agora mais uma zona problemática, tomada pelo Isis (sigla em inglês do chamado Estado Islâmico). Mas não se ouve tanta indignação ‘ocidental’ no caso de Palmira. O motivo é esse que o senhor já expôs?
Exatamente. Se Palmira tivesse sido invadida pelo Exército Árabe Sírio, lá estaria em todos os jornais o discurso sobre danos ao patrimônio histórico. Imediatamente depois que expulsamos os terroristas que ocupavam Alepo e a cidade foi libertada, autoridades ‘ocidentais’ e jornalistas dos veículos das grandes empresas de mídia põem-se a manifestar preocupação com os civis… Mas não se incomodam desde que os terroristas estejam no comando, matando civis, massacrando populações inteiras ou atacando Palmira e destruindo patrimônio cultural da humanidade, e não só na Síria.
Sua avaliação é correta. Se você considera o momento escolhido para atacarem Palmira, vê-se claramente que está ligado ao que acontece em Alepo. É a resposta dos terroristas ao que acontece em Alepo, ao avanço do Exército Árabe Sírio. Quiseram minar a vitória em Alepo e, ao mesmo tempo, distrair a atenção do Exército Árabe Sírio, afastando-o de Alepo e atraindo-o para Palmira para, assim, interromper o avanço em Alepo. Não funcionou como os terroristas esperavam.
Também há informações segundo as quais o sítio de Palmira não estaria conectado só à batalha de Alepo, mas também ao que se passava no Iraque. A coalizão dirigida pelos EUA, com cerca de 70 países, teria permitido que os terroristas do Isis que combatiam em Mossul partissem, o que teria reforçado o Isis aqui na Síria. O senhor acredita que tenha acontecido desse modo?
É possível, mas exclusivamente para limpar as pegadas das autoridades norte-americanas e livrá-las da responsabilidade no ataque contra Palmira. Fingem que o exército iraquiano estaria atacando Mossul e que o Isis trocou Mossul pela Síria, e estaria explicado. Mas a explicação absolutamente não é essa.
Por quê? Porque os terroristas atacaram Palmira com poder de fogo e quantidade de soldados sem precedentes, em proporções que o Isis nunca teve antes dessa guerra. Atacaram num front muito extenso, de dezenas de quilômetros, o que pode corresponder a vários exércitos. O Isis jamais conseguiria isso se não contasse com apoio de vários Estados, não de apenas um, mas de vários Estados. Vieram com metralhadoras, canhões, artilharia diferente.
Não conseguiriam avançar nesse deserto, sem a ajuda e supervisão da aliança norte-americana que deveria atacar os terroristas, não ajudá-los, em Raqqa, Mossul e Deir-Ezzor. Mas não aconteceu assim. Fecharam os olhos para tudo o que o Isis fizesse – ou mesmo, e é minha avaliação – a aliança norte-americana empurrou os terroristas na direção de Palmira.
Mas a questão não é Mossul, e não cairemos nessa armadilha. A questão é Raqqa e Deir-Ezzor, próximas, a apenas alguns quilômetros. Não chegariam até aqui sem ajuda de satélites e drones norte-americanos e sem apoio dos norte-americanos.
Qual o estado atual das forças do Isis?
A força dos terroristas equivale à ajuda que obtêm do ocidente e de potências regionais. Na verdade, se os consideramos isoladamente, não são fortes, porque não contam com estruturas naturais de inserção social. Sem isso, os terroristas jamais têm força suficiente.
A força deles é o apoio que recebem (dinheiro, investimentos no petróleo, apoio de forças aéreas da aliança norte-americana…). Toda a força dos terroristas vem daí. Por isso lhe digo que a força dos terroristas equivale à força dos seus apoiadores e guias.
Ouvimos em Alepo que o senhor permitiu que alguns daqueles terroristas deixassem o campo de batalha, se quisessem. Por que o senhor fez isso? É claro que podem reaparecer em Idlib, por exemplo, se rearmar e se preparar para outros ataques, voltar para atacar os que libertam Alepo.
É verdade, e acontece assim já há vários anos. Mas é sempre uma questão de calcular vantagens e inconvenientes. Se os ganhos são maiores que as perdas, vale a pena fazer. Nesse caso, nossa prioridade é preservar a região, impedir que seja destruída; proteger civis que vivem lá há séculos; abrir vias para evacuar os civis por corredores humanitários e guiá-los para áreas controladas pelo governo sírio; e dar uma chance aos próprios terroristas para que mudem de ideia, reaproximem-se dos seus conterrâneos, voltem à vida normal e possam ser anistiados.
Se não aceitam, deixamos que partam com as armas – apesar de todos os inconvenientes, mas o que nos importa é afastá-los das áreas históricas. Sendo o caso, podemos dar-lhes combate longe dos setores construídos, fora da cidade, onde haverá menor número de mortos e menor destruição de monumentos e áreas construídas. Por isso estamos agindo desse modo.
O senhor os chama de terroristas, mas os trata como seres humanos. O senhor fala em dar a eles uma chance “para que voltem à vida normal”.
Raciocinamos exatamente desse modo. São terroristas porque lhes puseram armas nas mãos e lhes pagam salários para matar, destruir, praticar atos de vandalismo. É terrorismo. Em todo o mundo o que eles fazem é classificado como atos de terrorismo.
Mas ao mesmo tempo, são seres humanos. Praticam terrorismo, mas poderia não ser assim. São pessoas que se uniram ao terrorismo por incontáveis razões, por medo, por dinheiro, em alguns casos por razões ideológicas. Todos os que possam ser reabilitados e voltar à vida normal, que voltem a ser cidadãos respeitáveis. É nosso dever dar-lhes uma chance justa. É nosso trabalho de governo.
Não basta dizer “Vamos combater os terroristas”. A luta contra terroristas é como nos jogos de vídeo. Pode-se matar o inimigo, mas o próprio jogo gera e regenera milhares de novos inimigos. O que não se pode fazer é tratá-los como os norte-americanos os tratam: matar uma vez, duas vezes, três vezes, matar sempre e sempre, e quanto mais terroristas surjam para serem mortos, melhor! Não. Não somos assim. Nosso objetivo não é esse, não fizemos essa escolha. Se se pode mudar o próprio jogo, melhor para todos.
E tem funcionado. Temos tido bons resultados e um grande número desses terroristas, sim, mudam de perspectiva, vários retomam à vida de antes, vários unem-se ao exército sírio e passam a combater contra os terroristas que permanecem lá. Do nosso ponto de vista, é um programa bem-sucedido.
Senhor presidente, o senhor acaba de reconhecer que se ganha e se perde. Na sua avaliação, seu governo fez o suficiente para minimizar as perdas civis durante essa guerra?
Fazemos o melhor que podemos. A Síria foi atacada, essa guerra não foi decidida por nós. Fazemos o que podemos fazer. Se é suficiente? Que cada um avalie. De fato, “suficiente” é sempre tudo o que você consiga fazer em esforço máximo. É a minha capacidade pessoal, a capacidade do governo sírio, a capacidade da Síria, que é um país pequeno enfrentando a guerra que lhe fazem dezenas de países, centenas de gigantes da mídia-empresa dominante e outros meios e forças que se ergueram contra nós.
Não tenho dúvidas de que fizemos o melhor possível em situação dificílima. Afinal de contas, nada jamais será suficiente nessas circunstâncias e as ações humanas sempre são a resultante de coisas boas e justas, e de coisas imperfeitas e erradas. As coisas são assim.
Os países ocidentais ‘exigiram’ repetidas vezes que a Rússia e o Irã pressionassem o senhor para que pusesse fim à violência, como eles dizem. Recentemente, seis países ocidentais, em mensagem sem precedentes, requereram novamente à Rússia e ao Irã que pressionassem seu governo, exigindo um cessar-fogo em Alepo.
É verdade.
O senhor aceitará? Querem o cessar-fogo no exato momento em que o Exército Árabe Sírio está avançando.
Exatamente. Na política, é sempre importante ler as entrelinhas, não se deixar prender só nas linhas. O que eles ‘exigem’ não tem importância alguma. A tradução correta daquela declaração é: “Vocês russos, por favor, detenham o avanço do exército sírio contra os terroristas.” Esse é o significado daquela declaração: “Vocês cometeram excessos na vitória contra os terroristas. A derrota deles foi excessiva. Isso não pode ficar assim. Vão lá e digam aos sírios que ponham fim a esse negócio de derrotar terroristas. Os terroristas têm de ser preservados. Têm de ser salvos”. Em resumo, aquele apelo dizia isso. O restante pode esquecer.
Em segundo lugar, a Rússia nunca – nem hoje, nem durante a guerra, nem antes da guerra, nem em momento algum, nem na época da União Soviética – a Rússia nunca, em momento algum tentou intervir nas nossas tomadas de decisão. Até hoje, cada vez que a Rússia teve opiniões ou conselhos a dar, independentemente de se seriam considerados ou não, sempre declarou: “O país é de vocês, vocês sabem qual a melhor decisão a tomar. Expusemos o modo como nós vemos as coisas, mas se vocês veem as coisas de outro modo, vocês, sírios, sempre conhecerão melhor o país de vocês.” Os russos são realistas, além de respeitar nossa soberania e eles sempre defendem a soberania que repousa sobre o Direito Internacional e a Carta das Nações Unidas. Nunca aconteceu de os russos pressionarem os sírios e jamais pressionarão. Simplesmente, os russos não trabalham desse modo.
Em que condições está o Exército Árabe Sírio?
É preciso avaliar em relação a duas coisas: primeiro, no que tenha a ver com a guerra propriamente dita; segundo, em relação às dimensões territoriais da Síria. A Síria não é um país de grande extensão territorial, portanto não pode manter um exército gigante, em termos quantitativos. O apoio dos nossos aliados é muito importante, especialmente da Rússia e do Irã. Depois de seis anos, ou quase seis anos, de guerra – a guerra na Síria já ultrapassou em duração a 1ª Guerra e a 2ª Guerra Mundiais –, é claro e evidente que o exército sírio já não pode ter as dimensões que tinha antes dessa guerra.
Mas o que nunca nos faltou foi a determinação de defender nosso país. É a decisão mais importante. Nosso exército perdeu muitas vidas, nossos muitos mártires e nossos soldados hoje inválidos. São muitos, sofremos perdas materiais enormes. Do ponto de vista dos números, perdemos muito, mas nossa determinação nunca faltou. Hoje, essa determinação é ainda maior que antes da guerra. Mas, sim, não se pode deixar de considerar o apoio que recebemos da Rússia, do Irã, que acrescentaram eficácia e concretude à nossa determinação.
O presidente Obama suspendeu recentemente a proibição de fornecer armas a rebeldes sírios.
Sim.
Como essa decisão pode traduzir-se em efeitos no terreno? Como o senhor avalia a medida? Será que reforçará direta ou indiretamente os terroristas?
Não estamos acreditando que ele só agora tenha posto fim à suspensão do fornecimento de armas. Acreditamos que o fornecimento já pode ter sido reiniciado bem antes, e só está anunciando para dar ao gesto algum tipo, digamos, de legitimidade política. Isso, em primeiro lugar.
Em segundo lugar, um ponto também muito importante: a data do anúncio e o ataque a Palmira coincidem. Há uma relação direta entre esses dois eventos, e a questão portanto é: quem, afinal, recebe essas armas? Em que mãos se encontram? Sabemos a resposta: nas mãos do Isis e da Frente al-Nusra, que são grupos que agem coordenadamente.
O anúncio do fim da proibição de enviar armas a terroristas está, portanto, diretamente associado ao ataque contra Palmira e à manutenção de outros terroristas dentro da cidade de Alepo, porque, depois que foram derrotados em Alepo, os EUA e o Ocidente têm de manter as suas forças nesses locais, para isso mantêm seus terroristas por procuração: porque absolutamente não têm interesse algum em resolver o conflito na Síria.
Assim sendo, o objetivo crucial do anúncio é criar ainda mais caos, porque os EUA criam o caos para administrá-lo a seu modo; e quando estão no comando do caos, procuram usar todos os diferentes fatores daquele caos para explorar partes diferentes do conflito, sejam internas ou externas.
Senhor presidente, como o senhor se sente, presidente de um país pequeno, no centro dessa onda gigantesca de outros países que não têm qualquer interesse em pôr fim a essa guerra?
Exatamente. É algo que conhecemos desde sempre, mesmo antes dessa guerra, mas hoje sentimos mais fortemente, claro, porque os países pequenos sempre estão mais seguros em tempos de paz no mundo, de equilíbrio internacional. Sentimos bem isso a que a senhora se refere, depois do desmonte da URSS, quando só passou a haver a hegemonia dos EUA, e os EUA se dedicavam a fazer as coisas a seu modo, sempre ditando a política deles ao resto do mundo. Nessas circunstâncias, os países pequenos são os que mais padecem.
Sentimos também hoje, mas ao mesmo tempo há hoje mais equilíbrio, porque a Rússia assumiu um papel no processo. Por isso entendemos que quanto mais forte for a Rússia – e não falo só da Síria, falo de todos os países pequenos em todo o mundo –, quanto mais a China crescer e emergir, mais seguros os pequenos nos sentiremos.
A situação em que vivemos hoje é muito dolorosa, em todos os níveis: no plano humanitário, dos sentimentos, das perdas, em todos os níveis. Mas no fim das contas, a questão não é perder ou ganhar algum objeto de baixo valor: trata-se de perder ou ganhar o nosso próprio país. A Síria enfrenta uma ameaça existencial. Não se trata de um governo que seja derrotado por outro, um exército que seja derrotado por outro. Trata-se de um país que, se for derrotado, deixará de existir. As coisas para nós estão postas nesses termos. Por isso temos pouco tempo para sofrer ou chorar nossas dores e perdas; os sírios só temos tempo para lutar, para nos defender e para fazer o que seja preciso fazer que a luta nos imponha.
Falemos do papel dos veículos de informação de massa, nesse conflito.
Muito bem.
Todos os lados em luta nessa guerra foram acusados de ter feito vítimas civis, mas os veículos de mídia em todo o ocidente mantiveram-se em silêncio quase total sobre as atrocidades cometidas pelos rebeldes. Que papel têm os veículos e as empresas da mídia de massa, nesse conflito?
Em primeiro lugar, as mídias-empresas dominantes, e seus confrades dentro dos partidos políticos sofrem todos eles já há décadas, um processo acentuado de corrupção moral. São empresas e profissionais absolutamente imorais. Não importa a causa da qual falem, evoquem ou usem como máscara (direitos humanos, civis, crianças…), essas questões são tomadas exclusivamente pela utilidade que tenham para promover a agenda política das mídia-empresas, de jornalistas e outros empregados daquelas mídias-empresas, para influenciar a opinião pública a favor daquela agenda, e, nesta nossa região, para induzir as massas a apoiarem a intervenção de países estrangeiros, seja intervenção militar ou política. Quanto a isso, os veículos e profissionais das mídias-empresas já não têm qualquer credibilidade.
Basta ver o que se passa nos EUA, onde está em curso uma verdadeira rebelião contra as mídias-empresas e veículos dominantes, porque mentiram e continuam a mentir aos seus próprios consumidores leitores e telespectadores. Podemos dizer que a opinião pública ou as populações no Ocidente absolutamente ignoram o que verdadeiramente se passa aqui em nossa região, mas sabem, pelo menos, que os veículos e empresas de mídia e os políticos cooptados por elas mentem aos cidadãos para promover a agenda pessoal individual deles mesmos e seus interesses exclusivos.
Por isso não acredito que os veículos da mídia dominante ainda consigam que o público acredite no que vê noticiado. Por isso também é que aqueles veículos estão tendo de lutar para sobreviver no Ocidente, por maior que sejam a experiência deles e os meios e o dinheiro com que sempre contaram. Mas não têm mais qualquer credibilidade. Nenhuma empresa de mídia sobrevive se tiver credibilidade zero. E as empresas de mídia no Ocidente não são transparentes. E já ninguém acredita nelas.
Por isso aquelas empresas estão sendo empurradas para as atitudes mais acovardadas, por exemplo, de censura. Uma rede como a sua [RT] inspira medo às concorrentes, porque pode expor a verdade e a notícia verdadeira acaba por desmascarar as manipulações de que são vítimas os cidadãos. Daí as reações destemperadas que temos visto.
Por exemplo, a agência de notícias Reuters citou “Amaq”, que é o órgão de propaganda dos terroristas do Isis, no ‘noticiário’ sobre o cerco de Palmira.
Isso mesmo.
O senhor acredita que contribuam para dar legitimidade aos terroristas, citando os veículos deles?
Mesmo que não citem as agências de notícias dos grupos terroristas, os veículos ocidentais adotam sempre a retórica dos terroristas. Mas se a senhora analisar o aspecto técnico do modo como o Isis se apresenta e se autopromove desde o início, em seus vídeos, atualidades, nos noticiários regulares deles em geral e nas suas ‘relações públicas’, as técnicas são apuradíssimas, são técnicas ocidentais. Vale a pena observar. São muito sofisticados.
Como se compreenderia que alguém que seja caçado, sitiado, desprezado em todos os cantos do mundo, atacado por aviões e bombas, que o mundo inteiro quer expulsar para bem longe de cada vila à qual o terrorista chegue, como é possível que grupos desse tipo de pessoas possam ter comunicação tão altamente sofisticada… a menos que contem com o máximo apoio disponível, das tecnologias mais modernas. O fato crucial, em minha opinião, nem é que o Ocidente use como fonte a agência de notícias dos terroristas, mas o fato de que o Ocidente adote o ponto de vista dos terroristas para observar o mundo; às vezes diretamente, às vezes indiretamente.
Donald Trump assumirá em poucas semanas suas funções de presidente dos EUA. O senhor mencionou os EUA várias vezes nessa entrevista. O que o senhor espera do novo governo norte-americano?
A retórica do candidato durante a campanha foi positiva no que tenha a ver com atacar o terrorismo, que é hoje nossa prioridade. Nenhuma outra coisa tem a mesma prioridade, e, portanto, só comentarei esse aspecto, o resto são questões norte-americanas, digamos, questões internas que não me dizem respeito.
A questão, portanto, é saber se Trump terá o desejo ou a capacidade de pôr em prática o que disse. A senhora sabe que a maioria dos veículos da mídia-empresa dominante e das grandes empresas, os lobbies, o Congresso, até alguns membros do próprio Partido Republicano opõem-se a ele. Querem cada vez mais ampla hegemonia, cada vez mais conflitos com a Rússia, mais ingerência em diferentes países, querem derrubar governos e o que sempre se viu há muito tempo. O presidente eleito Trump disse coisas que andaram noutra direção. Se conseguirá manter a mesma postura depois de tomar posse, mês que vem? Essa é a questão. Não sei.
Se conseguir, creio que o mundo poderá ser diferente, porque a coisa mais importante no mundo hoje, como já disse, é a relação entre a Rússia e os EUA. Se ele caminhar na direção de melhor relação com a Rússia, a maior parte das tensões que hoje dilaceram o mundo serão reduzidas. É muito importante para nós na Síria, mas acho que não se pode adivinhar o que virá. Para começar, o novo presidente não tem história política, e, portanto, não se tem nenhuma referência para julgá-lo. Em segundo lugar, ninguém pode saber como irão as coisas no mês que vem, e dali em diante.
A situação humanitária na Síria é catastrófica e Madame Mogherini, chefe da política externa da União Europeia, nos disse que a União Europeia é a única entidade a fornecer ajuda humanitária à Síria. É verdade?
Na verdade, toda a ajuda enviada por países ocidentais era destinada aos terroristas. A verdade é essa. Estou sendo perfeitamente claro e transparente. Jamais país algum se preocupou com a vida dos sírios, se viviam ou morriam. Ainda hoje há várias vilas na Síria que continuam, até hoje, sitiadas por terroristas. Fizeram as coisas de modo que nada chegue àquelas pessoas, comida, água, seja o que for, todos os itens necessários à vida humana. Claro, os terroristas atacam todos os dias, tiros de morteiro, contra os moradores. E o que, afinal, a União Europeia enviou algum dia a esses sírios? Se se preocupassem tanto com vidas humanas, quando falam do aspecto humanitário, que não discriminassem. Todos os sírios são ‘humanos’. Mas não. É sempre o duplo padrão, a mentira que volta sempre, que recontam sempre, mentira ignóbil na qual já ninguém acredita. Não, não é verdade. O que a senhora ouviu é falso, é mentira.
Há quem sugira que, para a Síria, a melhor solução seria dividir o país, um país para os sunitas, outro para os xiitas, os curdos. É possível?
Essa é a esperança, o sonho do Ocidente e de vários países aqui da região, e não é novidade, nem começou com essa guerra. Já antes da guerra circularam até mapas em que se demarcava essa divisão e essa desintegração. Mas, se se examina a sociedade síria hoje, está mais unificada do que antes da guerra. É a realidade. Não digo para dar coragem a quem quer que seja, nem estou aqui falando ao povo da Síria. Estou falando sobre fatos.
Por causa das lições aprendidas da guerra, a sociedade síria tornou-se mais realista e pragmática e muitos sírios compreenderam os perigos do fanatismo e de todos os tipos de extremismo, não só o extremismo religioso: politicamente, socialmente, culturalmente, a Síria está ainda cercada de perigos. A nossa única possibilidade de sucesso está em nos aceitarmos uns os outros, em respeitarmos uns os outros. É o modo produtivo de vivermos juntos e ter um país.
Então, no que tenha a ver com a desintegração da Síria, se não se vê sinal de desintegração no seio da sociedade, entre as várias nuances e fatores constituintes da sociedade síria, no próprio tecido da sociedade síria, não se cogita de divisão. Não se trata de riscar uma linha num mapa de papel, quero dizer, ainda que se tratasse de país em desintegração, no qual as pessoas estivessem divididas. Vejam o caso do Iraque: ainda é um só país, mas, na realidade foi desintegrado. Não é o caso da Síria.
Esse assunto na verdade não me preocupa. Os sírios jamais aceitarão qualquer tipo de divisão. E falo da grande maioria dos sírios, porque não é ideia nova, assunto que tenha surgido nas últimas semanas ou meses. Pode-se dizer que é a grande questão que se disputa nessa guerra. E, depois de seis anos de dificuldades terríveis, posso assegurar que a maioria dos sírios jamais aceitariam qualquer tipo de ‘desintegração’ do país. Viveremos sempre como uma Síria una e coesa.
Como mãe, partilho a dor de todas as mães sírias. Falo das crianças na Síria. O que lhes reserva o futuro?
É o aspecto mais perigoso de nosso problema, e não só na Síria, mas em qualquer ponto em que circule essa sombria ideologia wahhabista, porque muitos dos jovens nascidos e criados sob essa ideologia que chegaram à maturidade ao longo da última década, um pouco mais, uniram-se a gangues terroristas, por motivação ideológica, não por falta de família, ou de comida ou de esperanças. Muitos são filhos de famílias de espírito aberto, instruídas, famílias de intelectuais. Pode-se imaginar o poder de atração que o terrorismo tem.
O senhor acredita que o terrorismo arregimenta jovens com tanta facilidade, por causa da propaganda que o precede?
Exatamente. É ideologia extremamente perigosa, que não conhece fronteiras políticas ou nacionais. A Internet ajudou os terroristas com ferramentas de comunicação baratas, rápidas de muito amplo alcance. O terrorismo infiltra-se em qualquer família em qualquer ponto do mundo, seja na Europa, no nosso país, no seu país, onde decidirem infiltrar-se.
E é o que acontece.
A senhora vive em uma sociedade secular, eu vivo em uma sociedade secular, mas nada disso impediu que o terrorismo se infiltrasse. Qual a ideologia com potencial para fazer frente a essa onda? Há uma, só uma. Dado que o terrorismo construiu-se sobre uma leitura distorcida do Islã, é preciso recorrer outra vez ao Islã verdadeiro, ao Islã ancestral, sem distorções, ao Islã da moderação e da paz. Só assim se pode esvaziar a ameaça terrorista que pesa sobre todo o planeta. É a maneira mais rápida, digamos assim.
Se quisermos falar de um médio prazo e de um longo prazo, trata-se de saber em que medida se consegue fazer avançar a sociedade, o modo como as pessoas analisam, raciocinam e pensam, porque a ideologia wahhabista terrorista só funciona se se paralisa a reflexão, se se distorcem as vias do pensamento lógico e moral. Pode-se dizer que se trata de um algoritmo do espírito. Numa comparação com a informática, para ser mais claro: se se tem implantados pela educação e, também, pela religião, para os que creiam, bons sistemas para explorar e analisar o mundo, esses sistemas resistem à invasão por vírus daninhos.
Trata-se, portanto, de educação, das mídias, da ‘comunicação’ e da política, porque se se tem uma causa, uma causa nacional, e as pessoas perdem a esperança, não é difícil empurrar essas pessoas na direção do extremismo, que é influência ativa na nossa região desde os anos 1970, depois da guerra entre árabes e Israel, e o fracasso da paz em todos os aspectos (fracasso na reconquista do território palestino, usurpação da terra e dos direitos dos palestinos), cada vez mais desespero, o que serviu bem aos propósitos dos extremistas. Aí os wahhabistas encontram solo fértil para promover a ideologia deles.
Senhor presidente, agradeço muito por sua atenção e pelo seu tempo, e desejo paz e prosperidade, cada vez mais, ao seu país.
Muito agradecido pela visita.
A situação foi muito difícil, e faço os melhores votos de que tudo isso chegue logo ao fim. Muito obrigada.
Agradeço muito que tenham vindo à Síria. Estou muito feliz por recebê-los”.
Fonte: Resistência, do original no Russia Today