Berimbaus, boicotes e avaliação por Naomar de Almeida Filho
NOSSA FACULDADE de Medicina, no ano do seu bicentenário, fracassou na
avaliação do Enade. O coordenador do curso, ao explicar o fiasco,culpou
as cotas e a inferioridade intelectual dos estudantes. Para ilustrar
seu argumento, alegou que o berimbau, símbolo da musicalidade baiana,
tem só uma corda, o que comprovaria a suposta deficiênciacognitiva dos
baianos.
Considerei suas declarações discriminatórias, eivadas
de insensibilidade cultural e ignorância antropológica. Infelizmente,
o episódio contribuiu para ofuscar um tema chave para o futuro
da universidade brasileira: avaliação. Agora que a notícia saiu
do foco da mídia, podemos refletir melhor sobre o caso. De pronto,
descarto a hipótese de "contaminação pelas cotas". Mesmo porque a turma
reprovada entrara na universidade em 2001, quatro anos antes do advento
do programa de ações afirmativas. Também não se vê falta de recursos
docentes e pedagógicos.
O curso de medicina da UFBA tem três alunos por
docente e conta com 609 leitos em hospitais de ensino. Harvard, a melhor
escola do mundo, não exibe tão vantajosa relação aluno/professor; nem a
medicina da USP, com o complexo do Hospital das Clínicas, oferece
possibilidades de prática docente-assistencial em tal proporção. Seria o
caso, portanto, de gestão acadêmica incompetente. Entretanto, há
evidências de que essa reprovação no Enade se deve, em grande parte, a
boicote. Vários órgãos de imprensa publicaram depoimentos de formandos
que, protegidos pelo anonimato, reconheceram-se apressados em viajar
para submeter-se a exames de seleção para residência médica ou concursos
públicos. Recuperamos a lista dos sorteados para o exame. São 86
graduados. Todos obtiveram excelentes resultados nos processos seletivos
a que se submeteram. Não lhes faltam talento e capacidade: o coeficiente
de rendimento médio do grupo é 85%.
A atitude deles revela
egoísmo, descompromisso e deslealdade para com a instituição que os
acolheu. Antes das cotas, por causa da perversidade do vestibular, o
curso de medicina da UFBA era quase monopólio da elite. É inaceitável
que um jovem oriundo de classes privilegiadas, ao receber formação
profissional em carreira de alta valorização social e financeira -sem
pagar um centavo, numa instituição pública mantida com o dinheiro dos
contribuintes, seja incapaz de retribuir, de modo decente, para uma
justa avaliação institucional.
Além disso, o diretório acadêmico
admite ter fomentado boicote à prova, atendendo a uma diretiva da sua
entidade nacional. Essa possibilidade me revolta profundamente não só
como gestor público, mas sobretudo enquanto cidadão que tem uma história
de luta política, no movimento estudantil e nos movimentos da renovação
médica e da reforma sanitária. Todos nós que arriscamos as
carreiras (alguns, a vida) atuando clandestinamente para reativar
diretórios estudantis declarados proscritos pelo regime militar -e todos
aqueles que, geração após geração, mantiveram acesa a chama do movimento
estudantil na universidade- nunca imaginamos ver tal situação:
agremiaçõe estudantis aparelhadas para boicotar processos avaliativos
públicos, contribuindo para depreciar o legado político da
universidade brasileira. Sinto-me frustrado como educador. Sei
que não há inocentes.
Os sabotadores são pessoas adultas e devem saber
os danos que causaram a si próprios e à instituição. Mas não
acredito ser justo identificá-los como os únicos culpados. Também
culpados são gestores e docentes, cúmplices de sabotagem da avaliação da
universidade pública, que permitem que nossos cursos formem sujeitos
que, mesmo tecnicamente competentes, mostram-se individualistas,
alienados, arrogantes, capazes do mais vil desapreço para com sua
instituição formadora. Esse episódio atinge todos os estudantes e
profissionais formados em escolas médicas públicas. Há uma mácula,
indelével, para os que se graduarem em escolas reprovadas em avaliação
oficial do MEC.
E o que dizer da decepção para muitas gerações que se
formaram nessas escolas? Orgulho-me do meu curso de medicina, ainda no
belo prédio do Terreiro de Jesus. Servi 15 anos de minha carreira na
Faculdade de Medicina como professor de epidemiologia. Os professores
atuais foram, em maioria, colegas e, muitos deles, alunos. Esses
são os motivos que me levam a expor, neste comentário, sentimentos de
indignação, repúdio, frustração e vergonha, para além de minhas
atribuições como reitor de uma universidade pública de tão rica história
e tradição como a UFBA.