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Brasil: vocação natural e vontade de potência por José Luís Fiori

6 - 8 minutos de leituraModo Leitura

Por imposição geográfica, histórica e constitucional, a prioridade número um da política externa brasileira sempre foi a América do Sul. Mas hoje é impossível o Brasil sustentar os seus objetivos e compromissos sul-americanos, sem pensar e atuar simultaneamente em escala global.


Costuma-se falar
de uma "vocação natural" dos países e dos povos, que estaria determinada pela
sua geografia, pela sua história e pelos seus interesses econômicos. Mas ao
mesmo tempo, sempre existiram países ou povos, que se atribuem um "destino
manifesto" com o direito de ultrapassar os seus limites geográficos e
históricos, e projetar o seu poder para além das suas fronteiras, com o objetivo
de converter, civilizar ou governar os demais povos do mundo.

Entretanto,
quando se estuda a história mundial, o que se descobre é que nunca existiram
povos com vocações inapeláveis, nem países com destinos revelados. Descobre-se
também, que todos os países que projetaram seu poder para fora de si mesmos, e
conseguiram se transformar em "grandes potências", foram em algum momento países
periféricos e insignificantes, dentro do sistema mundial. E se constata, alem
disto, que em todos estes casos de sucesso, existiu um momento em que havia uma
distância muito grande entre a capacidade imediata que o país dispunha, e a sua
vontade ou decisão política de mudar o seu lugar dentro da hierarquia
internacional.

Uma distância objetiva, que foi superada sem
voluntarismos extemporaneos, por uma estratégia de poder competente que soube
avaliar em cada momento, o potencial expansivo do país, do ponto de vista
político, econômico e militar. Donde se deva deduzir que existe uma "vontade de
potência" mais universal do que se imagina, e que de fato o que ocorre é que a
própria natureza competitiva e hierárquica do sistema impede que todos tenham o
mesmo sucesso, criando a impressão equivocada de que só alguns possuem o destino
superior de supervisionar o resto do mundo.

Por imposição geográfica,
histórica e constitucional, a prioridade número um da política externa
brasileira sempre foi a América do Sul. Mas hoje é impossível o Brasil sustentar
os seus objetivos e compromissos sul-americanos, sem pensar e atuar
simultaneamente em escala global. Partindo do suposto que acabou o tempo dos
"pequenos países" conquistadores (como Portugal ou Inglaterra, por exemplo), e
que o futuro do sistema mundial dependerá, daqui para frente, de um "jogo de
poder" entre os grandes "países continentais", como é o caso pioneiro dos EUA, e
agora será também, o caso da China, da Russia, da India e do Brasil, excluida a
União Européia enquanto näo for um estado único.

Neste jogo, os EUA já
ocupam o epicentro e lideram a expansäo do sistema mundial, mas os outros quatro
países possuem por si só, cerca de um quarto do território, e quase um terço da
população mundial. E todos os quatro estäo disputando hegemonias regionais, e já
projetam – em alguma medida – seu poder econômico ou diplomático, para fora de
suas próprias regiões.

Pois bem, o que se deve esperar, na próxima
década, é que a Russia se concentre na reconquista do seu antigo território e de
sua zona de influencia imediata; que a expansäo global da China se mantenha no
campo econômico e diplomático; e que a Índia siga envolvida com a construção de
barreiras e alianças que protejam suas fronteiras, ao norte, onde se sente
ameaçada pelo Paquistão e pelo Afeganistão, e ao sul, onde se sente ameaçada
pelo novo poder naval da própria China.

Deste ponto de vista, comparado
com estes três "países continentais", o Brasil tem menor importância econômica
do que a China e muito menor poder militar do que a Rússia, e que a Índia. Mas
ao mesmo tempo, o Brasil é o único destes países que está situado numa região
onde não enfrenta disputas territoriais com seus vizinhos, e por isto, é o país
com maior potencial de expansão pacífica, dentro da sua própria região. Além
disto, é o único destes países que contou – até aqui – com uma dupla vantagem
com relação aos outros três, do ponto de vista de sua presença fora do seu
próprio continente: em primeiro lugar, o Brasil usufruiu da condição de
"potência desarmada", porque está situado na zona de proteção militar
incondicional dos Estados Unidos; e em segundo lugar, o Brasil usufruiu da
condição de "candidato-herdeiro" à potência, porque é o único que pertence
inteiramente à "matriz civilizatória" dos Estados Unidos.

Por isto,
aliás, a expansão da influência brasileira tem seguido até aqui, a trilha que já
foi percorrida pelos Estados Unidos, e pelos seus antepassados europeus. Mas
além disto é fundamental destacar que o Brasil contou neste período recente com
a liderança política de um presidente que transcendeu seu país, e projetou
mundialmente sua imagem e sua influencia carismática. Como passou em outro
momento, e numa outra clave, com a liderança mundial de Nelson Mandela, que foi
muito além do poder real, e da influência internacional, da África do Sul.

Neste sentido, o primeiro que se deve calcular com relação ao futuro
brasileiro, é que o fim do mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
representará, inevitavelmente, uma perda no cenário internacional, como
aconteceu também com a saída de Nelson Mandela. Com a diferença que o Brasil já
está objetivamente muito à frente da África do Sul. Assim mesmo, para seguir
adiante pelo caminho que já foi traçado, o Brasil terá que fazer pelo menos duas
opçöes fundamentais e de longo prazo.

Em primeiro lugar, terá que decidir
se aceita ou não a condição de "aliado estratégico" dos Estados Unidos, da Grã
Bretanha e da França, com direito de acesso à tecnologia de ponta, mas
mantendo-se na zona de influencia, e decisão militar dos Estados Unidos. Caso
contrário, o Brasil terá que decidir se quer ou näo construir uma capacidade
autônoma de sustentar suas posições internacionais, com seu próprio poder
militar. Em seguida, o Brasil terá que definir a sua visão ou utopia, e o seu
projeto de transformaçäo do sistema mundial, sem negar sua "matriz öriginária"
européia, mas sem contar com nenhum "mandato" ou "destino", revelado por Deus ou
quem quer que seja, para converter, civilizar ou conquistar os povos mais fracos
do sistema.

De qualquer forma, uma coisa é certa: o Brasil já se
mobilizou internamente e estabeleceu nexos, dependências e expectativas
internacionais muito extensas, num jogo de poder que näo admite recuos. Neste
altura, qualquer retrocesso terá um custo muito alto para a história
brasileira.

José Luís Fiori,
cientista político, é professor da Universidade Federal do Rio de
Janeiro.

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