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Carnaval e apartheid cultural. Por Zuggi Almeida

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Zuggi_Almeida

O divisor de águas do carnaval baiano foi a invenção de Osmar Macedo e Dodô Nascimento, o trio elétrico criado no início da década de 50. A inovação decretou a democratização do espaço da folia na capital baiana.

A tradição do carnaval de Salvador nas áreas do centro da cidade eram os desfiles dos clubes sociais, Fantoches da Euterpe, Inocentes em Progresso e Cruz Vermelha frequentados pela classe alta, que desfilava em corsos com bandas de sopro, carros alegóricos e automóveis importados, ostentando o poder das elites. As camadas populares ficavam restritas aos espaços periféricos da folia, como o Terreiro de Jesus, Baixa dos Sapateiros, Barroquinha, Tororó, Garcia e bairros populares da Liberdade, Uruguai, Fazenda Grande, Cosme de Farias e Itapagipe.

O evento do trio elétrico oportunizou aos populares acompanhar o grupo musical que sobre um Ford 1929 executava sucessos do frevo pernambucano, desafiando o desfile oficial e ocupando o espaço “privado” das entidades tradicionais, reafirmando o carnaval como manifestação cultural advinda do povo.

A força do carnaval baiano foi ampliada com a incorporação da imagem do trio elétrico nos repertórios de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Os Novos Baianos, que assumiram as funções de porta-vozes da folia da Bahia e da característica especial dessa festa – a de maior participação popular no mundo.

Computador X tambor

Tambores afrobaianos dão novo tom ao carnaval de rua.

O renascimento do afoxé Filhos de Gandhyi somado ao surgimento dos blocos afros ( Ilê Aiyê, Olodum, Malê, Muzenza, etc) fizeram contraponto a dicotomia estabelecida pelas entidades carnavalescas da burguesia local, Corujas, Bloco do Barão, Internacionais. Aliando forças à participação do povo nos festejos carnavalescos foram gestados os blocos de índios – Apaches, Comanches, Tupys, Guaranis-, que chegaram a ocupar o território do Carnaval com a média de 5000 integrantes por agremiação. No caldeirão do carnaval, mais um ingrediente foi acrescido pela cozinha dos blocos afros, o samba reggae, esse, logo colocado em cima do trio elétrico e ficou estabelecido um novo conflito: o computador versus o tambor.

O carnaval da Bahia tratado como produto turístico atrativo de divisas despertou o interesse dos blocos carnavalescos direcionados para as classes altas e seguindo as regras do mercado estabeleceu-se critérios de satisfação do cliente, adaptando-se o espaço, horários do desfile, fantasias e público circulante entre os cordões de isolamento dessas entidades a custos exorbitantes. Mas, um item fundamental no sucesso financeiro dessas sociedades de entretenimento foi apropriado dos blocos afros: a sua música.

Embalados no samba-reggae, as empresas carnavalescas criaram suas bandas, suas atrações, exportaram o modelo de carnaval privado para outros estados do país e fincaram as novas diretrizes da participação no carnaval baiano. Junto, trouxeram as grandes marcas associadas a um público consumidor elitista e alheio ao verdadeiro espírito do carnaval do povo baiano.

Camarote X rua

Cordas levam pras ruas a segregação do carnaval da Bahia.

Quem hoje sobe a ladeira rumo aos grandes patrocínios, aos horários privilegiados em aparição na mídia continuam sendo os blocos carnavalescos e suas extensões denominadas “camarotes privé ou inclusive all direcionados para um público distante da manifestação espontânea do verdadeiro carnaval de rua da Bahia. Nessas estruturas, o cliente come, dança, vê filmes, namora e até dorme, bem protegido e alheio ao desfile que passa ao longo da avenida. A elitização do carnaval baiano define o espaço do folião “pipoca” entre as cordas dos blocos e os tapumes dos camarotes, numa ridícula faixa azul criada pela prefeitura que estabelece o limite surreal entre a felicidade do trio e a cotovelada do cordeiro da segurança. Uma grande rede de lojas de departamentos, cujo “garoto propaganda” é um ator negro preferiu patrocinar uma entidade carnavalesca direcionada para classe média alta, em detrimento da maioria dos seus consumidores presentes nas camadas populares e associados de blocos afros e afoxés.

Os símbolos da cultura negra estão presentes em quase todos os investimentos realizados que antecedem o carnaval da Bahia- vide, o Festival de Verão (um bonequinho rasta e seu berimbau). Porém, não constam na programação o emblemático Edson Gomes, nem Lazzo, nem Dão e sua Caravana Black, nem Ilê Aiyê, nem Olodum, nem o samba-de-roda, muito menos, a capoeira. Presentes, sim, todas as atrações dos blocos das centrais carnavalescas. Uma grande prévia da folia para poucos.

O carnaval da Bahia urge passar por uma retomada do seu verdadeiro significado, da participação popular e democratização do espaço da folia. O poder público deve assumir a verdadeira função de gestor do evento e não de sócio, como o configurado na troca de uma praça pelo direito de uso privado por particulares para exploração comercial.

A sociedade civil tem que inserir o carnaval na pauta das suas discussões, afinal, o evento interfere de modos diversos no cotidiano do cidadão. Seja no direito de ir e vir, na acessibilidade, no uso da verba pública para apoio às entidades carnavalescas de menor porte, na ampliação da folia para os bairros populares com boas atrações musicais, na qualidade dos serviços de saúde, transporte e segurança.

As barreiras desse apartheid cultural certamente que ainda devem tremer, ou não, quando soam os versos seguintes: “Branco se você soubesse/ o valor que preto tem/ tu tomavas banho de piche, branco/ e ficava preto, também”, como nos ensina, cantando, Paulinho Camafeu.

Zuggi Almeida é Produtor Cultural

Artigo publicado originalmente em https://outrabahia.com.br/colunas/carnaval-e-apartheid-cultural/

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