Carta de ex-presa política a Revista Carta Capital sobre Romeu Tuma por Márcia Bassetto Paes
Antes de entrar no
assunto que me motivou a escrever, quero parabenizar a toda a equipe da Carta
Capital e ao senhor pelo excelente trabalho jornalístico ao longo desses anos e
agradecer, particularmente, a postura séria e transparente adotada na cobertura
das eleições.
Acompanhei, estarrecida, os atos persecutórios da
vice-procuradora-geral eleitoral Sandra Coureau e, com admiração, a forma como
o senhor enfrentou e provou o quão absurdas eram as acusações.
Faço questão de
frisar, ainda, que Carta Capital é a única publicação impressa que assinamos em
minha casa e recomendamos, eu e meu marido, aos amigos e todos aqueles que
prezam o jornalismo de qualidade.
No entanto, me
chama atenção a matéria "Servidor do Estado – Romeu Tuma, exemplar
responsável e muito competente" publicada na edição de 03 de novembro
em referência ao falecimento desse senhor. Sinto na obrigação de expressar o
meu espanto com o equívoco de algumas informações e omissão de outras.
A matéria se
refere a esse senhor como tendo "atuado no DOPS ainda sob as ordens de Sérgio
Paranhos Fleury, na qualidade de "analista de informações" (com aspas na
publicação), em plenos anos de chumbo, Romeu Tuma participou do combate às
organizações de esquerda".
O artigo, mais à
frente, afirma ainda que "sempre se declarou contra a violência, e
expressamente a proibiu desde sua nomeação à chefia do DOPS em 1977".
Ao longo destes
anos, tenho lido em vários veículos de comunicação referências equivocadas ao
período que Romeu Tuma esteve no comando do DOPS. Porém, o fato da Carta
Capital incorrer nos mesmos equívocos, me obriga a testemunhar a respeito.
Fui presa, junto
com Celso Giovanetti Brambilla e José Maria de Almeida, na madrugada de 28 de
abril de 1977. Na época éramos militantes de uma organização clandestina,
trabalhávamos em indústrias metalúrgicas e morávamos em São Bernardo do
Campo. Estávamos em plena ditadura e a falta de liberdades democráticas e
a supressão do Estado de Direito eram o combustível que nos impelia a fazer
parte de uma organização que lutava pelo restabelecimento da
democracia. Tínhamos eu, 20, Zé Maria, 19, e Celso, 22 anos.
No momento da
prisão distribuíamos panfletos que aludiam ao 1 de maio, data histórica
de conquistas sociais pelos trabalhadores, e chamávamos a atenção ao fato do
Brasil estar vivendo sob total falta de liberdades democráticas.
A prisão aconteceu
por volta da 01 da manhã (distribuíamos panfletos para o turno da noite) quando
fomos abordados e presos por policiais militares que nos encaminharam
para uma delegacia em Ribeirão Pires. Depois de sumariamente interrogados,
fomos algemados e colocados na "gaiola" de um camburão. Os mesmos policiais
militares rodaram conosco por muitas horas, dando a entender que não sabiam
onde nos levar. Percebemos que havia um conflito nas orientações recebidas pelo
rádio, ora nos encaminhavam ao DOPS ora ao DOI CODI. Finalmente fomos, por
volda das 06h00 da manhã, deixados no DOPS. Após rápida identificação
fomos levados às salas de torturas e barbaramente torturados por vários dias.
Tivemos a
incomunicabilidade decretada por dez dias e depois prorrogada por mais dez e o
enquadramento na Lei de Segurança Nacional. Nos últimos dias de
incomunicabilidade foram administrados tratamentos médicos para que lesões,
hematomas, feridas e outras marcas de tortura fossem amenizadas e assim
pudéssemos ser apresentados aos advogados e familiares. Procedimentos que pouco
valeram a Celso Brambilla que sofreu perda da audição total em um ouvido e
parcial em outro, em conseqüência das torturas e maus tratos.
A indecisão da
polícia militar em saber qual seria nosso destino, se devia à uma disputa de
poder que se dava naquele momento entre os dois órgãos de repressão. Tal
fato levou à que o então Diretor da Divisão de Ordem Social Sérgio Paranhos Fleury
enviasse memorando de esclarecimento, com data de 30 de abril, ao "ILMO. Sr.
Dr. Diretor do Departamento Estadual de Ordem Política e Social Romeu Tuma"
(sic no documento em questão), relatando as atrapalhadas das polícias
Militar, Civil e Exército. Anexado ao memorando constava um relatório do
então Delegado Adjunto da Divisão da Ordem Social Luiz Walter Longo (os
memorandos hoje constam do Arquivo do Estado e referem-se às cópias em anexo
01, 02 e 03). O mesmo memorando culpa a confusão entre esses poderes pelo
vazamento da notícia à imprensa. Fato que não é verdade, pois a denúncia à
imprensa foi empreendida pelos meus companheiros de organização que denunciaram
as prisões ao DCE da USP e convocaram uma mobilização contra as prisões.
A hierarquia do
DOPS naquele ano de 1977 e no caso da equipe que investigou meu caso, como
atestam os documentos em anexo, era a seguinte:
1.
Na base: Sr. Luiz Walter Longo – chefiava a equipe de investigadores que
torturaram a mim, ao Celso Brambilla e ao Zé Maria, tendo, inclusive
participado de várias seções; que se reportava ao
2.
Intermediário: Sr. Sérgio Paranhos Fleury: desceu várias vezes aos porões para
ver in loco como iam os "interrogatórios" e, inclusive, ia chegar no período de
tratamento, as condições para sermos apresentados em público, que se reportava
ao
3.
Sr. Romeu Tuma.
Portanto, é falsa
a afirmação que Romeu Tuma "atuou no DOPS sob as ordens de Sérgio Paranhos
Fleury, na qualidade de ‘analista de informações’ ". Ele era o Diretor Geral,
superior a Sergio Paranhos Fleury.
É possível, ainda,
resgatar nos Arquivo do Estado, a relação de presos emitida no dia 29 de abril
de 1977 (documento também em anexo). São exatamente 20 presos, sendo 13
estrangeiros acusados de estarem ilegais no País, os outros 7, presos para
"averiguações", dentre os quais figurávamos eu, Celso Brambilla e Zé Maria.
Este documento fora assinado pelo sr. Amadeu Marastoni, então Guarda das
Prisões (carceireiro) que presenciou, inúmeras vezes, o traslado dos presos das
celas para as salas de tortura (saíamos mais ou menos andando e voltávamos, a
maioria das vezes desacordados, ensangüentados e arrastados).
Pergunto:
1.
Que tipo de Diretor "muito competente" é esse que recebe de um subordinado um
memorando relatando uma enorme confusão envolvendo o departamento da Secretaria
de Segurança Pública ao qual dirige, o Destacamento de Operações de Informações
– Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) órgão subordinado ao
Exército e a Polícia Militar do Estado e não procura saber de quem e do que se
trata (quando foi formalizado esse memorando, em 30 de abril, estávamos há 2
dias sendo torturados quase que ininterruptamente)? Obs: Romeu Tuma
sempre afirmou que não sabia das torturas.
2.
Como pudemos ficar 3 meses presos no DOPS até sair a ordem de transferência
para o presídio especial, sob regime de prisão preventiva, torturados por mais
de dez dias, sendo que um dos presos ficou surdo e precisava de atendimento
médico especializado, sem que este "Servidor do Estado, exemplar responsável"
tomasse conhecimento?
3.
Que competência é esta que desconhece o que se passava em um estabelecimento
não muito grande, como eram as dependências do DOPS, sem revestimento acústico
nas salas de tortura, com apenas 20 presos sob sua guarda, sendo 3 acusados de
"ligações subversivas internacionais com o intuito de tomar o poder" – acusação
bastante séria e passou batido pelo Diretor Geral?
4.
E, ainda, se fosse verdade que Romeu Tuma era contra a violência e
"expressamente a proibiu desde a sua nomeação à chefia do DOPS em 1977"
então ele não passava de um incompetente na Direção daquele Departamento, pois
suas ordens de nada valiam, pois a tortura era praticada sob seu bigode.
Acrescento,
inclusive, que meu advogado Idibal Piveta (esse sim competentíssimo), moveu
processo quando estávamos sob regime de prisão preventiva contra 4
investigadores e o delegado Luiz Walter Longo, identificados por mim e Celso
Brambilla, por prática de torturas, e como esse "exemplar cidadão" desconhecia
esse processo contra subordinados?
Estas prisões
tiveram enorme repercussão na sociedade como um todo. Aconteceram inúmeras
passeatas e manifestações de estudantes em todo Brasil, com repercussão
internacional. Artistas promoveram uma jornada pela anistia e fim da tortura,
em São Paulo, em maio daquele ano, quando todos os teatros abriram
gratuitamente suas portas. Um curta produzido por estudantes da Faculdade
Medicina e Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – O Apito da Panela de Pressão
– documentou as manifestações da chamada ‘geração 77′.
Graças a
essas mobilizações estou aqui hoje para contar essa história. Se eu e meus
companheiros dependêssemos desse "Servidor do Estado", estaríamos fazendo parte
das estatísticas dos mortos pelas torturas.
Estas ponderações
deduzem que, no mínimo, o sr. Romeu Tuma deveria ser acusado de omissão.
Por isso se
faz tão necessário o levantamento dos responsáveis pelas torturas e
mortes que aconteceram nos anos da ditadura militar, bem como a revisão
da Lei da Anistia. Igualmente necessário avaliar seriamente a proposta do juiz
Baltasar Garzón de criação da Comissão da Verdade, para investigar crimes
da ditadura militar e a abertura dos arquivos de torturas e
desaparecimentos.
Concordo
também com a idéia de que é à sociedade e ao Judiciário que competem dar
impulso maior para que o Legislativo crie a Comissão da Verdade e assim
assente a primeira pedra numa reconciliação nacional verdadeira.
Muitos relutam e
relutarão em abrir essa discussão, afirmando que é questão fechada. No entanto
ela está viva e respira . Foi colocada, despudoradamente, pela campanha
de José Serra, na mesa do jogo eleitoral, nas acusações contra Dilma
Rousseff. Milhares de e-mails e mensagens acusando a candidata de terrorista
foram replicados nas redes sociais. Acusações que há um ano atrás jamais
poderíamos supor que tivesse o aval do candidato Serra. Muitos jovens de
17, 18, 20 anos passaram a argumentar que não votariam em terrorista sem ter
idéia do que estavam falando e a que período da história do País se referiam.
Estes jovens já demonstram o quão é absolutamente necessário ler essa página da
nossa história para entendê-la e passá-la a limpo.
Peço desculpas por
ter me alongado tanto nas digressões a respeito desse caso. Se o artigo
em questão tivesse sido publicado em qualquer outro veículo da grande mídia não
teria me estendido em tantos pormenores. Como se trata da Carta Capital,
me senti na obrigação moral de fazê-lo.
Atenciosamente,
Márcia
Bassetto Paes