Aldeia Nagô
Facebook Facebook Instagram WhatsApp

Carta do cineasta Silvio Tendler ao ministro Nelson Jobim

9 - 12 minutos de leituraModo Leitura

O
cineasta Silvio Tendler enviou carta ao ministro da Defesa, Nelson
Jobim, defendendo que os envolvidos em crimes de tortura em nome do
Estado Brasileiro devem ser julgados e punidos por seus atos. Tendler
critica a posição do ministro, contrária à punição aos torturadores.
"Este gesto, na prática, resulta em dar proteção a bandidos que
desonraram a farda que vestiam ao torturar, estuprar, roubar,
enriquecer ilicitamente sempre agindo em nome das instituições que
juraram defender. É incompreensível que o nosso futuro democrático seja
posto em risco para acobertar crimes praticados por bandidos", escreve
o cineasta.


Carta encaminhada pelo cineasta Silvio Tendler ao ministro da Defesa, Nelson Jobim:

Ao Ministro da Defesa Exmo. Dr. Nelson Jobim

Invado
sua caixa de mensagem pedindo atenção para um tema que trata do futuro,
não do passado. O Sr. me conhece pessoalmente e lembra-se de que quando
fui Secretário de Cultura de Brasília, no ano de 1996, o Sr. era
Ministro da Justiça e instituiu e deu no Festival de Cinema Brasília um
prêmio para o filme que melhor abordasse a questão dos Direitos
Humanos. Era uma preocupação comum a nossa.

Por que me dirijo agora ao senhor? Um punhado de cidadãos -̶ hoje somos mais de dez mil -̶ assinamos um manifesto afirmando que os envolvidos em crimes de tortura em nome do Estado Brasileiro devem ser julgados
e punidos por seus atos, contrários aos mais elementares sentimentos da
nacionalidade. Agimos em nome da intransigente defesa dos direitos
humanos. O Sr., Ministro da Defesa, homem comprometido com a ordem
democrática, eminente advogado constitucionalista, um dos redatores e
subscritores da Constituição de 1988, hoje em ação concertada com os
comandantes das forças armadas, condena a iniciativa de punir
torturadores pelos crimes que cometeram.

Este gesto, na
prática, resulta em dar proteção a bandidos que desonraram a farda que
vestiam ao torturar, estuprar, roubar, enriquecer ilicitamente sempre
agindo em nome das instituições que juraram defender. É incompreensível
que o nosso futuro democrático seja posto em risco para acobertar
crimes praticados por bandidos o que reforça a sensação de impunidade.
Ao contrário do que afirmam os defensores da impunidade dos
torturadores. O que está em juízo não é o julgamento das forças
armadas, como afirmam os que as querem arrastar para o lodo moral que
mergulharam. Agora pretendem proteger sua impunidade, camuflados
corporativamente em nome da honra da instituição.

Um pouco de
história não faz mal a ninguém. Não está em questão que para consumar o
golpe de 64, os chefes militares de então tiveram que expurgar das
forças armadas milhares de homens entre oficiais, sub-oficiais e praças
cujo único crime foi defender o regime constitucional do país.
Afastaram da vida política brasileira expressivas lideranças, cassando
direitos políticos e mandatos parlamentares ou sindicais. Empurraram
milhares de cidadãos, na imensa maioria jovens, para a ação clandestina
que desembocou na luta armada.

De qualquer maneira os
golpistas de 64 protegidos pela lei de anistia não serão anistiados
pela história. Fecharam e cercaram o Congresso Nacional. Inventaram a
excrescência chamada de Senador Biônico para não perder, pelo voto, o
controle do Senado em plena ditadura militar. Os chefes militares podem
ficar tranqüilos que seus antecessores não irão para a cadeia pelos
crimes que cometeram contra um país, contra uma geração inteira, a
minha, que desaprendeu a falar e pensar em liberdade. Nada disso está
em juízo. Vinte e cinco anos depois de iniciada a transição
democrática, o que está em juízo não é o processo de anistia política.

Tranqüilize
seus colegas militares, ministro. O regime militar não está sendo
julgado pela quebra do sistema público de saúde ou pela quebra do
sistema educacional. Estamos pedindo a punição contra criminosos comuns
por crimes de lesa humanidade. Queremos o julgamento e condenação da
prática de crimes hediondos. Só isso. Assusta a quem? Em nome do quê o
Brasil será eternamente refém de bandidos? O que justifica acobertar
crimes condenados por todos os códigos, normas e tribunais
internacionais em matéria de direitos humanos? O Sr. deve estar se
perguntando o porquê do meu empenho nesta causa. Vou lhe contar.

Despontei
pra a vida adulta baixo a ditadura militar. Em 1964, tinha 14 anos e
cresci sob o signo do medo. Sou de uma família de judeus liberais, meu
pai advogado e minha mãe médica. Invoco as raízes judaicas porque meus
pais eram muito marcados pelo holocausto, pelos crimes nazistas
cometidos contra a humanidade. Tínhamos muito medo das soluções
autoritárias. Eu queria viver num país livre e tinha sentimentos de
profunda repugnância a ditaduras. Meus amigos também eram assim.
Participei de passeatas, diretórios estudantis e cineclubes. Queria
derrubar a ditadura fazendo filmes. Acreditava que era possível. Em
1969, um companheiro de Cineclubismo seqüestrou um avião para Cuba. Não
tive nada a ver com isso. Desconhecia as intenções e a organização do
seqüestro. Meu crime foi ser amigo – sim, meu crime foi o de ser amigo
de um seqüestrador. Quase fui preso e morreria na tortura sem falar,
não por ato de bravura, mas por absoluto desconhecimento de causa. Não
pertencia a nenhuma organização revolucionária. Não sabia nada sobre o
seqüestro.

Escapei dessa situação pela coragem pessoal de
minha mãe que driblou os imbecis fardados que foram me prender e
consegui fugir de casa nas barbas da turma do Ministério da Aeronáutica
que, naquele momento, ao invés de dedicar-se a cumprir sua missão
constitucional de proteger nossas fronteiras, prendiam, torturavam e
matavam estudantes. Tive também a ajuda do Coronel Aviador Afrânio
Aguiar que empenhou-se até a medula para que não fosse preso e
massacrado na Aeronáutica. A ele dedico meu filme mais recente "Utopia
e Barbárie". Sem ele, dificilmente estaria contando essa história hoje
aqui. Outras pessoas também me ajudaram a sair vivo dessa história mas
como não tenho autorização para citá-los e estão vivos, guardo nomes e
lembranças no coração.

Em 1970 fui viver no Chile por livre e
espontânea vontade. Saí do Brasil legalmente com passaporte, ainda que
tenha ido ao DOPS explicar por que saía do Brasil. Eles sabiam as
razões pelas quais saía (como é cantado na música, "Não queria morrer
de susto, bala ou vício"). Em Janeiro de 1971,do Chile, mandei uma
carta para minha mãe, trazida por uma portadora, senhora de boa cepa,
que fora visitar o filho no exílio em um gesto humanitário se ofereceu,
ingenuamente, para trazer correspondência para os familiares dos
exilados. O gesto lhe custou prisão e "maus tratos" nas dependências da
aeronáutica. Na carta pedia a minha mãe que me enviasse livros e minha
máquina de escrever. A carta foi entregue em Copacabana por militares
do Doi-Codi que arrombaram minha casa, arrombaram móveis a procura de
metralhadora (Assim entenderam "máquina de escrever"). Minha mãe foi
levada para o quartel da PE na Barão de Mesquita, onde foi humilhada e
um dos "patriotas"que a conduziu assumiu de forma permanente a guarda
do relógio que entrou com ela na PE e não voltou para casa. Amigos
ocultos numa rede de gente decente ajudaram a tirar minha mãe daquela
filial verde oliva do inferno.

Sim ministro, havia muita gente
decente nas forças armadas ou que gravitavam em torno dela e que faziam
o que podiam para ajudar pessoas. A maioria, prefere, até hoje, não
revelar seus gestos por medo dos que praticando atos dignos dos piores
momentos da máfia intimidam e atemorizam pessoas de bem. Pior do que o
relógio foi o destino do ex-deputado Rubens Paiva que foi preso no
mesmo dia e nunca mais encontrado. Os senhores fazem muita questão
mesmo de proteger os canalhas que seqüestraram e assassinaram o
ex-deputado pelo crime de ter recebido correspondência pessoal de
exilados no Chile? A quem interessa essa "Omertá"? Ministro, para esses
crimes não há justificativa e menos O que leva a chefes militares e o
Ministro da Defesa a se pronunciarem contra a apuração de crimes?
Tortura, estupro, morte, muitas vezes seguido de roubo, são atos
políticos passíveis de anistia?

Desculpe a franqueza, mas não
consigo entender. Em nome do futuro democrático do Brasil , espero que
a banda podre, montada no Dragão da Maldade, não saia vitoriosa.

Os
chefes militares pronunciam-se a favor do pagamento de reparações às
vitimas do arbítrio como um ato indenizatório. Pagamento este feito com
recursos públicos desviado de finalidades mais nobres para ressarcir
prejuízos causados por canalhas que deveriam ter seus bens confiscados
e pagarem com recursos próprios os crimes que cometeram. Muitas
empresas que se locupletaram durante a ditadura e inclusive financiaram
o aparato repressivo poderiam participar dessas indenizações. No meu
caso, ministro, posso lhe dizer que não há dinheiro que feche essa
conta. Não pedi anistia nem indenização porque acho que não sou
merecedor (nunca fui exilado, nunca me apresentei assim). E vivo bem
com meu trabalho de cineasta há quarenta anos e professor universitário
há 31. Se fosse pago com recursos dos bandidos, aceitaria de bom grado.
Recursos públicos não. Cada centavo que aceitasse, me sentiria roubando
de uma criança ou de um homem ou uma mulher humildes que precisam mais
desse dinheiro numa escola pública, num posto médico, do que eu. Não
recrimino quem, por necessidade ou sentimento de justiça, o faça.

A
reparação que peço é a punição exemplar dos torturadores da minha mãe.
O senhor há de concordar que não estou pedindo muito nem nada
despropositado. E quando digo que penso no futuro e não no passado é
porque a punição exemplar de criminosos desestimulará semelhantes
práticas no futuro e terá uma função pedagógica para os que caiam em
tentação de uso indevido dos poderes do Estado, que entendam que não
vivemos no país da impunidade.Justiça, peço apenas justiça.

Bom 2010 para o sr.

Atenciosamente,
Silvio Tendler

P.S.
Falamos de tanta coisa mas esquecemos de comentar dois crimes cometidos
depois de 1979 que já não estariam cobertos pela lei de anistia: O
assassinato de D. Lyda Monteiro da Silva, secretaria do Presidente da
OAB, a mutilação do jornalista José Ribamar em 1980 e, em 1981, a bomba
que explodiu no Riocentro que causou a morte de um sargento e graves
ferimento no Capitão. Imagino que enquanto advogado, o quanto lhe
repugna o assassinato da secretária do Presidente da OAB e a mutilação
de um jornalista. Tantos anos decorridos, talvez ainda seja possível
descobrir "os comunistas" responsáveis pela bomba do Riocentro, como
concluiu o vexaminoso IPM instaurado na ocasião.

Por falar em
comunistas, movimento que condenava a luta armada, o que dizer do
assassinato do jornalista Wladimir Herzog, do operário Manoel Fiel
Filho e do desaparecimento do dirigente Davi Capistrano? Seus
assassinos terão imagem, nome e sobrenome ou continuarão protegidos por
este exército das sombras?

Silvio Tendler

Compartilhar:

Mais lidas