Chilique de Dallagnol é a prova do crime. Por Miguel do Rosário
Dallagnol, pastor da Lava jato, expert em Power Point e feliz proprietário de dois apartamentos do Minha Casa Minha Vida, passou esta quarta-feira 30 protagonizando chiliques contra o avanço de lei, na Câmara, que pune juízes e procuradores que abusam de seu poder.
A lei é boa, apesar da procedência mal cheirosa. É boa sobretudo porque nasce de um embate entre os poderes. Os autores de Federalist Papers, obra seminal da democracia representativa moderna, explicavam que as principais vantagens de uma democracia derivam do fato de que ela não depende tanto assim da boa vontade dos homens públicos. Se o sistema é democrático, se há separação e independência entre os poderes, é natural que se dê um embate entre eles, e isso não tem nada a ver com a qualidade moral dos representantes de cada um desses poderes.
O avanço do judiciário sobre o legislativo foi necessário para levar adiante o golpe de Estado. Entretanto, ele agora esbarrou nas contradições internas dos setores médios da própria elite, como são os deputados.
O golpismo nos mostrou que o Brasil é cheio de poderosos de segunda, terceira e quarta linha, que o sistema sacrifica sem dó em prol de mais concentração de poder em mãos dos verdadeiros donos do Brasil: alguns bilionários de São Paulo, a casta judicial (que, unida e coesa ideologicamente, como um partido político, se tornou um poder descomunal, perigoso, antidemocrático) e meia dúzia de barões da mídia. Pronto, esses são os que mandam.
Geddel Vieira Lima? Um infeliz que mobiliza a cúpula do governo federal para pressionar um órgão técnico a aprovar seu apartamento? Michel Temer, que entra nesse joguinho incrivelmente sujo e medíocre de Geddel, e fica a seu lado contra Marcelo Calero, ex-ministro da Cultura?
São marionetes.
Os próprios agentes da Lava Jato são peças menores de um xadrez incrivelmente sofisticado para um país que não se deu conta de que, desde que descobriu o pré-sal e se tornou, por alguns anos, a quinta economia do mundo, havia entrado para o mundo dos adultos e, portanto, deveria ter uma classe política mais preparada.
Dallagnol disse que a “força-tarefa” vai renunciar, caso a lei seja aprovada. Na verdade, por trás do chilique vemos uma chantagem criminosa, um verdadeiro abuso de poder, bem típico de servidores completamente embriagados pelo poder político que a mídia lhes deu. Um servidor público tem uma função a cumprir, pela qual, no caso de um procurador, é regiamente pago. Não pode abandonar sua função por “pirraça”, porque o congresso aprova uma lei da qual ele não gosta.
Tenho que falar da situação em tom irônico, porque para mim a força-tarefa deveria ter renunciado há muito tempo.
E aquele Power Point, Dallagnol, motivo de chacota mundial?
A atitude de Dallagnol é a revelação de que a Lava Jato foi instrumentalizada politicamente, para se tentar legitimar uma juristocracia autoritária, truculenta, que faz da luta contra a corrupção uma cruzada moral que mata qualquer vida econômica e política no país.
O partido da Lava Jato convive melhor com o governo profundamente corrupto de Michel Temer do que com Dilma porque entendia que sua agenda juristocrática tem mais chances de prosperar diante de um gestão fraca, cujo único apoio social é a Globo.
As prisões de Cabral e Garotinho foram um movimento calculado para intimidar a classe política, mas acabou tendo efeito contrário. As cenas chocantes de Garotinho sendo retirado do leito de hospital e levado de volta à prisão, sob as ordens de um juiz sem escrúpulos, provocaram um sentimento difuso de autodefesa entre os parlamentares. Eles pressentiram que podem ser todos vítimas do mesmo autoritarismo.
Se a força-tarefa ameaça “renunciar” por causa de uma votação no congresso, isso prova que eles sempre estiveram conscientes de que a Lava Jato se tornou um partido político. Ela tem uma força própria, coonestada pelo próprio procurador-geral da república, Janot, e possui direção e objetivos políticos.
Cabe assinalar que os membros da Lava Jato devem estar se sentindo terrivelmente humilhados pela maneira como se desdobrou o golpe que eles mesmo ajudaram a acontecer, visto que vários ministros estão indiciados pela força-tarefa.
Por outro lado, o power point de Dallagnol, acusando Lula de ser o “comandante máximo” dos esquemas de corrupção na Petrobrás, ajuda a explicar a atitude desesperada e criminosa de Sergio Moro, ao vazar os áudios de Lula e Dilma para a Globo.
Enquanto isso, a presidenta do STF e do CNJ, Carmen Lucia, subsidia as manchetes dos jornais chapa-branca, cúmplices da juristocracia que se tenta implementar no país, com seu irritante arsenal de lugares-comum e frases de efeito.
Como presidente do CNJ, Carmen Lucia é uma ótima sindicalista, esquecendo, porém, que o CNJ não é uma corporação sindical, e sim um órgão previsto constitucionalmente para servir como fiscalizador do trabalho judicial conduzido no país. E que, no entanto, tem agido apenas como uma corporação especializada em transferir grandes somas do bolso do contribuinte diretamente para o bolso dos juízes, a começar pelos próprios membros do CNJ.
Lucia, num de seus arroubos de iluminada mediocridade, diz que toda ditadura “começa rasgando a Constituição”, uma frase que soa profundamente irônica no momento em que vivemos, de fato, uma ditadura judicial, com o braço armado do Estado hoje sob controle de juízes.
As falas de Lucia são cuidadosamente escolhidas para preencher a cabeça vazia dos zumbis midiáticos. As ditaduras nem sempre rasgam a Constituição, mas a distorcem a seu bel prazer, sempre com a alegre ajuda dos juízes.
Em quase todos os momentos da história mundial, as castas judiciais sempre se posicionaram contra avanços democráticos, nunca a favor. O judiciário é um setor historicamente conservador e essencialmente antidemocrático.
Os próprios ministros do STF, como Lewandowski e Barroso, propagam teorias sinistras de boteco, como a de que entramos no “século do judicário”, como se fosse uma coisa muito legal o que esteja acontecendo, ao invés de ser mais uma dessas terríveis armadilhas da qual a humanidade só costuma tomar consciência após algumas décadas de trágica experiência.
Lucia abusa da ignorância popular acerca do poder dos juízes, que sempre foi um problema e um excesso, inclusive apontado por um de seus maiores teóricos, como Hans Kelsen, que alerta para o perigo do juiz como produtor de leis. Afinal, o juiz, ao interpretar a lei, ele praticamente cria uma outra lei.
Kelsen dá ainda um recado importante para os fanáticos da Lava Jato e para todos os operadores do Direito que se vêem como missionários morais. Ele diz que o Direito não pode jamais pressupor, como fazem os justiceiros midiáticos do Brasil, que exista uma Moral absoluta da qual eles sejam os representantes. Toda vez que a jurisprudência se baseia numa Moral absoluta, diz Kelsen, ela produz uma “legitimação acrítica da ordem coercitiva do Estado”. Ou seja, toda a vez que o operadores do direito se vêem como guardiões da moral, eles violam a doutrina democrática, que pressupõe constante autocrítica, contenção do poder e respeito aos que pensam diferente.
A ditadura de que Carmen Lucia tem medo, portanto, já está implementada no Brasil, por mãos do próprio judiciário.
Artigo publicado originalmente em http://www.brasil247.com/pt/colunistas/migueldorosario/268237/Chilique-de-Dallagnol-%C3%A9-a-prova-do-crime.htm