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Com Dilma, EUA continuarão sem “policial” na América do Sul, diz Tariq Ali por Cláudia Antunes

13 - 18 minutos de leituraModo Leitura

A
América do Sul é hoje a região mais independente do poder americano e a
vitória do PT na eleição presidencial brasileira indica que os EUA
continuarão sem contar com um "policial" que possa agir por eles nesta
parte do mundo, diz o escritor paquistanês Tariq Ali.


Um dos
editores da revista britânica "New Left Review" e colaborador da "London
Review of Books", Ali é conhecido pela militância contra as
intervenções externas americanas e veio ao Rio para participar de
conferência com sindicalistas e ativistas de favelas sobre imprensa
alternativa.

Seu penúltimo livro, "O Duelo", sobre a relação
EUA-Paquistão, acaba de ser publicado no Brasil pela editora Record. No
exterior, ele recém-lançou "Obama Syndrome", em que destaca as
continuidades entre o ocupante da Casa Branca e seu antecessor, George
W. Bush. "Só mudou a música ambiente."

Nesta entrevista à Folha, o
escritor também analisou a situação no Paquistão, a falta de
solidariedade mundial às milhares de vítimas das enchentes deste ano em
seu país de origem e a guerra americana no Afeganistão. Disse que os
EUA, que prometeram se retirar do país centro-asiático até 2014,
gostariam de deixar para trás bases permanentes, como no Iraque, mas que
a China tem feito saber sua oposição à presença da Otan (aliança
militar ocidental) em sua fronteira.

Apesar de aprovar a política
externa do governo Lula, Ali é crítico da política econômica. Se disse
"no mínimo decepcionado" por ver o ex-ministro da Fazenda Antonio
Palocci, "arquiteto de políticas neoliberais", na equipe da presidente
eleita Dilma Rousseff.

Ele diz que, se houve ingenuidade de
Brasil e Turquia quanto tentaram mediar o impasse nuclear iraniano, foi
em relação às intenções do governo americano. "Os dois países
conseguiram fazer com que os iranianos concordassem com um plano que os
EUA haviam proposto antes, e aí Obama recuou."

Apesar das
constantes "reclamações e irritação" em relação a Washington, Ali não
acredita que a hegemonia americana esteja em risco, diz que a China não
pretende desafiar esse poderio no futuro previsível e avalia que o fórum
Bric (Brasil, Rússia, Índia e China) "não é coisa séria". "Os EUA estão
mais fortes agora do que nos anos 60 e 70", afirma. Abaixo, a íntegra
da entrevista.

FOLHA – Os EUA se aproximam da Índia,
cuja candidatura ao Conselho de Segurança da ONU apoiaram. A China, do
seu lado, se aproxima do Paquistão. Isso afeta a guerra no Afeganistão?

TARIQ ALI
– Os EUA sabem que têm que se retirar do Afeganistão. Gostariam de
sair, mas manter bases militares lá. Isso não vai ser possível. Os
chineses, nos bastidores, disseram aos militares paquistaneses que não
querem bases permanentes da Otan na sua fronteira. Para resolver esse
problema, os EUA precisam dos militares paquistaneses.

Simultaneamente,
os EUA estão jogando a Índia contra a China. A Índia é o país mais
importante para os EUA na Ásia. Sempre foi, mesmo quando a Índia tinha
uma política externa de neutralidade. Mas hoje há uma elite indiana que
se ajoelha diante dos EUA, o que para Washington é uma grande
oportunidade. Claro que nunca poderão tratar a Índia como um pequeno
país que controlam, mas precisam dela como anteparo ao crescimento
econômico chinês, que ninguém sabe aonde vai levar.

Mas o apoio à
candidatura ao Conselho de Segurança não é grande coisa. O conselho não
é mais um organismo muito interessante, tampouco a ONU. Se os
americanos não conseguem usar a ONU para implementar sua hegemonia, eles
usam a Otan [aliança militar ocidental] ou vão sozinhos.

O sr. crê que os EUA se retirarão do Afeganistão até 2014, como prometido?
A
ideia de que em 2014 eles terão criado condições para a retirada não
faz sentido. Houve total fracasso em criar qualquer Estado no
Afeganistão. Os americanos não confiam nem nas pessoas que estão
treinando [para o Exército afegão]. Houve casos em que essas pessoas
mudaram de lado.

O sr. defende que a solução para o
Afeganistão teria que ser regional, com o envolvimento de todos os
vizinhos –Rússia, Irã, Paquistão, Índia, China– que têm influência
sobre grupos no país. A disputa Índia-Paquistão pode dificultar isso?

Acho
que a Índia será parte da solução. Os indianos vão fazer o que os
americanos querem no Afeganistão. Eles têm muitas outras coisas para se
preocupar, incluindo o grande problema da Caxemira ocupada, onde a
população é tratada como um povo colonizado pelos indianos. Para
resolver esse problema, a Índia precisará da ajuda do Paquistão e dos
EUA, e está usando sua presença no Afeganistão como barganha.

Desde que o senhor escreveu "O Duelo", em 2008, a situação no Paquistão piorou, não?
Muito.
O livro tem quatro argumentos principais: que o Paquistão esteve na
rota de voo do poder americano desde os anos 50; que os americanos têm
mostrado que preferem lidar com os militares a qualquer outra força no
país; que os políticos que estão no poder no Paquistão, incluindo o
viúvo de Benazir Bhutto [o presidente Asif Ali Zardari] são corruptos,
criminosos, assassinos e todo o país sabe disso; que o governo e a elite
paquistaneses são incapazes de fazer qualquer coisa pelo povo, o que
ficou demonstrado mais uma vez nas enchentes deste ano [que afetaram 10%
da população de 200 milhões].

Foi o pior desastre natural que o
país já sofreu, e dois eventos simbolizam os problemas do Paquistão. Uma
cidade média, Jacobabad, foi tomada pelas águas, e o governo pediu à
Força Aérea, que tem uma base perto, que mandasse helicópteros para
salvar as pessoas. Disseram que não podiam porque o base estava sendo
usada pelos americanos para os bombardeios com aviões não tripulados em
outra parte do país. O segundo incidente foi quando a enchente chegou à
província de Sind, onde há uma grande concentração de latifúndios. Havia
a alternativa de construir uma barreira que salvaria as aldeias onde
vivem os mais pobres ou uma que salvaria as fazendas. Escolheram a
segunda opção. O governo foi incapaz de responder à enchente.

O sr. não acha que a resposta internacional à enchente também foi fraca?
Totalmente.
Eu acho que a mídia global vem se concentrando em pintar o Paquistão
como um país governado por jihadistas [combatentes islâmicos], pessoas
barbadas que estão à beira de tomar conta do arsenal nuclear. Essa é a
mitologia, e mostrar pessoas comuns sofrendo não é parte do quadro. Não
há a intenção de se criar simpatia por esse país e por sua população.

A
mídia global normalmente ama desastres naturais, que são transformados
em novelas, como no caso dos mineiros chilenos. No Paquistão havia
milhares de pessoas sofrendo com as enchentes, em condições desumanas,
crianças morrendo por falta de remédios, mas o Ocidente fez muito pouco.
A chamada ajuda humanitária não chegou.

O Paquistão tem sido
apontado na imprensa americana como responsável pelo fracasso em conter o
Taleban no Afeganistão. Como isso se reflete dentro do país?

Setenta
por cento dos paquistaneses veem os EUA como seu principal inimigo,
segundo pesquisa de instituto americano. Esse número não reflete
extremismo religioso, mas revolta política em relação aos EUA e com a
elite que colabora com os EUA.

Quando os americanos têm problemas
com um país, nunca gostam de admitir que a culpa é sua. Estão perdendo
no Afeganistão e dizem que é porque os afegãos atravessam para o
Paquistão. Isso é verdade, mas não é razão da derrota. A guerra é um
desastre militar, político, social e ideológico.

O sr. diz que o fundamentalismo islâmico não é um problema de fato no Paquistão. Por quê?
É
uma força marginal, que cresceu sobretudo por ter sido apoiada pelo
Estado. A inclinação natural da maioria dos paquistaneses é mostrada nos
resultados eleitorais –menos de 5% dos eleitores votam em partidos
religiosos. Os grupos de jihadistas fanáticos são pequenos no Paquistão.
Eles parecem mais poderosos porque têm armas e praticam atentados. Mas o
apoio da população é pequeno.

A possibilidade de uma solução negociada para a questão nuclear no Irã parece muito pequena. Como analisa a situação?
A
situação no Irã é determinada essencialmente pelo interesse de Israel,
não tanto dos EUA. Para as israelenses, o mais importante na região,
devido à própria má consciência pelo que fizeram com os palestinos, é
não haver qualquer poder militar alternativo. No caso do Irã, temem
perder o monopólio nuclear regional.

É daí que a pressão está
vindo, porque os americanos poderiam fazer um acordo com este regime [do
Irã] se quisessem. [O presidente iraniano Mahmoud] Ahmadinejad não é
muito inteligente. Mas a noção de que ele seja mais autoritário do que o
rei da Arábia Saudita [Abdullah] e o presidente do Egito [Hosni
Mubarak] é uma brincadeira. Há mais democracia no Irã do que nestes dois
países.

Os EUA estão preocupados com dois coisas. Uma é a
pressão israelense, e a outra é que, ao ocupar o Iraque e destruir o
Exército iraquiano, eles criaram um novo poder no Iraque, xiita, que é
muito próximo ao Irã. Os xiitas iraquianos colaboram com os EUA que os
colocou no poder, mas, quando há uma crise, toda a liderança xiita, da
direita à esquerda, voa para Teerã, se reúne com a liderança local e os
aiotolás decidem.

Isso preocupa os EUA, que temem a consolidação
do Irã como um centro de poder na região. Se o Irã tiver armas
nucleares, se torna intocável. São essas contradições que entram nos
cálculos agora. O fato é que tratar o Irã como um pária é uma política
sem sentido, porque a cultura política iraniana é muito forte, e muitos
iranianos que não apoiam o clero são a favor de o país ter armas
nucleares, já que tantos vizinhos as têm e submarinos nucleares
americanos patrulham a costa iraniana.

Parte dos analistas
avaliou que a tentativa de Brasil e Turquia de negociar a questão
nuclear iraniana foi ingênua, por não levar em consideração os fatores
internos nos EUA e no Irã. O sr. concorda?

Acho que foram
ingênuos porque acreditaram em Obama, já tanto Lula quanto os líderes
turcos foram encorajados pelos EUA a mediar. Por isso considero um pouco
injusto atacar Lula. Ele não queria um conflito entre Irã e EUA, e
Obama lhe disse ao telefone para tentar.

Turquia e Brasil
conseguiram fazer com que os iranianos concordassem com um plano que os
EUA haviam proposto antes, e aí Obama recuou. Em vez de atacar Obama, a
mídia de direita ataca Lula e os turcos. Acho que eles fizeram o melhor
que podiam, a ingenuidade foi pensar que poderiam fazer algo que os EUA
não queriam, imaginando que queriam. Muitas pessoas tinham ilusões sobre
Obama. Eu não.

Qual é o cerne de seu livro sobre Obama?
O
subtítulo do livro é "Rendição em Casa, Guerra no Exterior". Ele se
rendeu a interesses corporativos –Wall Street, os lobbies de seguros e
farmacêutico. Ele se rendeu ao pensamento do complexo
industrial-militar. Disse que ia fechar Guantánamo e a prisão ainda está
aberta. Disse que os direitos civis seriam protegidos e nada mudou. Que
não haveria sequestros [de estrangeiros] e tortura e nada mudou. Em
essência, há mais mais continuidades com o regime de [George W.] Bush do
que outra coisa. Só mudou a música de fundo. E agora os próprios
apoiadores de Obama estão desapontados.

Com a crise nos EUA e
na Europa, fala-se muito do poder dos emergentes, do Bric (Brasil,
Rússia, Índia e China). A hegemonia dos EUA está em risco?

Não.
Acho que os EUA continuam sendo o poder hegemônico global, e no momento
não há quem possa mudar isso. Talvez no fim deste século as coisas
possam ficar mais claras. Há reclamações, irritação. Mas sempre foi
assim. Os EUA, ironicamente, estão mais fortes agora do que nos anos
1960 e 70.

A ilusão que as pessoas têm sobre a China está mal
colocada. Acho que a liderança chinesa, no futuro previsível,
dificilmente vai desafiar a hegemonia americana. De certo modo precisa
dela, a China como a maior potência econômica e os EUA como a maior
potência militar. O Bric não é uma coisa séria.

Os EUA e a Otan vão manter a tendência de intervir fora do territórios de seus países-membros?
Acho
que essa é a única função da Otan, hoje o braço militar do império
americano. Quando ocasionalmente há divergências dentro da Otan, os EUA
atuam sozinhos, como no Iraque.

O que analistas nos EUA dizem é que hoje o país não pode mais agir sozinho, precisa dos aliados.
Isso
é música de fundo. Claro que o ideal para os EUA é ter uma coalizão por
trás deles, como no Afeganistão. Mas quando não conseguem, agem
sozinhos. Não levo essa análise a sério.

O sr. tem um livro, "Piratas do Caribe" (Record), sobre o "eixo da esperança" na América do Sul. Como avalia a região agora?
Acho
que a situação continua positiva. O golpe contra Rafael Correa no
Equador fracassou. Não interpreto as eleições legislativas na Venezuela
[em que o oposição teve metade dos votos] como derrota de [Hugo] Chávez.
Para a mídia ocidental, o governo venezuelano nunca faz nada certo. Evo
Morales, na Bolívia, teve outra grande vitória com ampla porcentagem
dos votos [foi reeleito em dezembro de 2009 com 64%]. O Paraguai está
numa situação mais triste porque [Fernando] Lugo está doente, com
câncer. E, apesar de o Brasil não fazer parte desse eixo, porque a
política econômica não difere muito das de direita, o fato de o PT ter
ganhado as eleições de novo faz uma diferença na política externa,
porque significa que os EUA não poderão contar com o Brasil para agir
por Washington nesta região. A maneira de os EUA exercerem sua hegemonia
é ter em cada região um policial com o qual podem contar. Aqui
costumava ser o Brasil ou a Argentina, mas agora eles só têm a Colômbia.

A Colômbia parece um tanto desiludida, porque o Congresso americano não ratificou o acordo bilateral de livre comércio.
Os
EUA não podem contar totalmente nem com a Colômbia. A América do Sul é a
pior história para o império americano no momento. O único sucesso que
tiveram foi o golpe em Honduras, uma vitória do Departamento de Estado
americano –claro que não podem dizer isso em público. Mas de modo geral
a América do Sul se mantém independente do império.

Mas isso
incomoda os EUA? Porque, excluindo Chávez, cujo poder é bastante
exagerado, a região nunca é mencionada entre as prioridades americanas.

Não,
e a razão disso é que o capitalismo como sistema não foi desafiado na
América do Sul. O que argumento em "Piratas do Caribe" [editora Record] é
que tudo o que esses líderes estão fazendo é usar o poder do Estado
para fazer reformas sociais necessárias. É uma social-democracia, e o
Brasil poderia aprender com isso.

Apesar de se falar muito da
economia brasileira, as condições dos pobres e trabalhadores no Brasil,
em termos de saúde, educação e transporte público continua muito ruim. A
Bolsa Família é um cala-boca. Os ricos neste país não pagam impostos. É
melhor começar a pensar nisso agora do que quando a crise atingir o
país. O Brasil pensa que é imune porque evitou o colapso de 2008, mas o
sistema [econômico] é muito hierárquico.

Segundo a maioria das análises, o que levou à vitória do PT foi o aumento do poder de compra da população.
Não
podemos nos esquecer que foi Fernando Henrique que adotou medidas
anti-inflação e aumentou o poder de compra do real, mas ao custo de
desindustrializar o país. O Brasil foi financeirizado e isso continua
sendo um problema, mesmo dentro do quadro capitalismo. Eu fiquei um
pouco decepcionado, para dizer o mínimo, quando vi Dilma [Rousseff] ao
lado de Palocci, que foi o arquiteto de políticas neoliberais. Eles têm
que entender o que está acontecendo no mundo e adotar medidas
preventivas antes que o Brasil seja atingido.

Entrevista publicada originalmente na Folha de São Paulo

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