Aldeia Nagô
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Comissão da Verdade: não é hora de transigir por Gilson Caroni Filho

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É
fundamental que o capuz que protegeu o arbítrio seja rasgado pela
democracia. Há um espaço social que se abre. Deixar de ocupá-lo, sob
qualquer pretexto, não é apenas um erro tático, mas uma injustificável
apologia da inércia.


São
conhecidos os setores da sociedade brasileira que reagiram
negativamente às propostas contidas no 3º Programa Nacional de Direitos
Humanos, divulgado há três semanas pelo governo. A gritaria engloba a
grande imprensa corporativa, segmentos conservadores da Igreja
Católica, além de ilustres representantes do latifúndio. Todas essas
forças e personalidades compreenderam lucidamente, de acordo com seus
interesses, que o objetivo do texto não era o alardeado revanchismo
contra os militares, mas a fixação de diretrizes que consolidam avanços
democráticos. E é contra isso que se debatem, através de suas entidades
representativas e de uma imprensa que vê no jornalismo decente o
anátema mais temido.

A criação da Comissão de Verdade e
Reconciliação para investigar os crimes da ditadura militar no Brasil
não pode ser entendida como precipitação de uma "esquerda
radicalizada". Sem se intimidar com pressões estreladas, a proposta tem
como principal mérito estabelecer, no papel, a diferença entre combate
e covardia, entre a verdade e a mentira. Com uma transparência antes
inalcançada a questão democrática revela-se inextricavelmente
entrelaçada ao resgate da memória histórica.

Longe de
representar uma rachadura no núcleo progressista do governo, a postura
da secretaria dos Direitos Humanos configura uma linha de comportamento
político-ideológico coerente, corajoso e responsável. Não há por que
recuar por conta de uma possível contaminação eleitoral, pela
associação da iniciativa com a candidatura da ministra Dilma Rousseff.
Não há imagem arranhada quando os procedimentos são nítidos e
cristalinos. Como depende de produção legislativa para ser efetivado, o
Plano, em toda sua larga extensão, não é um pacote jogado sobre as
instituições. Mas um rico apanhado sobre as demandas efetivas da
sociedade civil. Mais democrático, impossível.

Publicamente a
cidadania se confronta com um fato: não se constrói democracia com
"prestativas" notas de clubes militares. Não é possível a eterna
conciliação em uma arquitetura engenhosa e heterogênea como a que foi
montada no governo Lula. Chega a hora da apresentação da fatura e, em
momentos decisivos, é preciso firmeza para ratificar o combate de uma
esquerda que se caracterizou por sua luta no pantanoso terreno dos
direitos cívicos plenos. Se a verdade não é bem-vinda para direita, não
há que se sufocá-la por um perdão decretado como "amplo, geral e
irrestrito" O realismo político não pode prescindir da arte de se
reinventar.

No calor do enfrentamento, duas propostas voltam a
moldar o debate. A primeira defende que o campo democrático-popular
deve escamotear sua busca pela verdade, postergando-a para quando as
"condições o permitirem". Essa é uma proposta capitulacionista. Não
enfrenta o problema real de uma sociedade que se quer ver livre de um
arcabouço legal arbitrário e anacrônico. Além disso, tem um viés
marcadamente golpista, ao procurar manipular e instrumentalizar o
movimento democrático, sugerindo que, passados mais de 26 anos, as
questões centrais da democracia brasileira devem permanecer em uma
obscura clandestinidade.

Como escreveu Mino Carta, "é da
natureza da tortura, portanto, que o torturador e o Estado que acoberta
a tortura sejam levados a mentir". Em janeiro de 2010, em face das
situações concretas colocadas pelo processo político, é fundamental que
o capuz que protegeu o arbítrio seja rasgado pela democracia. Há um
espaço social que se abre. Deixar de ocupá-lo, sob qualquer pretexto,
não é apenas um erro tático, mas uma injustificável apologia da
inércia. Não se constroem instituições democráticas, pluralistas,
livres e participativas cortejando quem pretende destruí-las.

Gilson
Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio
Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e
colaborador do Jornal do Brasil

Artigo publicado orignalmente em http://www.cartamaior.com.br

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