Comunista e traidor. Por Contardo Calligaris
Cresci militando na esquerda. E sempre escutava o mesmo bordão: “Por que você não vai para a Rússia ou para a Bulgária (que era mais pobre ainda) ver o que é bom para a tosse?”.
Eu sabia que detestaria viver em qualquer país do outro lado da Cortina de Ferro. Já tinha viajado por aquelas bandas, várias vezes. E juntara um catálogo de experiências que era suficiente para preferir a Itália –mesmo com a dita Democracia Cristã, a injustiça e a breguice dos emergentes do “milagre” do pós-guerra.
Melhor aquela Itália do que a Bulgária do começo dos anos 1960, em que uma menina tinha pedido para que eu lhe mostrasse uma coisa que ela não tinha, sonhava em ter e achava que nunca teria –nenhuma alusão ao órgão sexual: o que ela queria ver era meu passaporte.
No dia seguinte, no saguão do hotel, em Sófia, ela foi embora entre dois agentes que pareciam desenhados pela Marvel para assustar. De longe, ela me fez um sinal para não me preocupar. Essa história me dói ainda hoje. Onde está James Bond quando a gente precisa dele?
Em suma, eu queria que a Itália inventasse “seu” socialismo; não tinha a menor vontade de que o país atravessasse a Cortina de Ferro. E, se fosse mesmo para dividir o mundo em dois blocos, cada um com seus países satélites, preferiria que fôssemos um satélite dos Estados Unidos.
Tanto faz. O que importa é que, naquelas primeiras décadas depois da Segunda Guerra, falar sobre projetos de sociedade se tornou quase impossível.
Pensei nisso, intensamente, assistindo a “Trumbo: Lista Negra”, de Jay Roach. Bryan Cranston (o protagonista de “Breaking Bad”) é Dalton Trumbo, talvez o melhor roteirista de Hollywood no fim dos anos 1940.
A história é verdadeira: Trumbo e mais nove (quase todos roteiristas) foram investigados pelo Congresso dos Estados Unidos por terem sido ou serem comunistas ou socialistas. Como eles não cooperaram com a comissão do Congresso (uma espécie de CPI), eles foram presos por um ano.
Durante mais de uma década, a indústria de Hollywood colocou 300 roteiristas, atores, músicos, diretores (Charlie Chaplin e Orson Welles entre eles) numa lista negra de pessoas impedidas de trabalhar: o filme que os empregasse seria boicotado por uma associação de figuras sinistras, entre as quais se destacava John Wayne.
A perseguição acabou quando os “Studios” de Hollywood (começando por um grande ator e um grande diretor) decidiram não aceitar mais a chantagem da denúncia por “antiamericanismo”.
Agora, a força dessa chantagem na opinião pública não tinha muito a ver com algum horror que inspirariam as ideias socialistas (a maioria dos cidadãos as ignorava totalmente).
Acontece que a Guerra Fria tinha conseguido impedir qualquer debate de ideias, porque transformara uma divergência de opinião num crime de traição. Você é comunista? Você é um agente soviético. Você é liberal? Você é um agente dos EUA.
Saí de “Trumbo” pensando três coisas: primeiro, que a coragem é sempre admirável –no caso, a coragem de não se desmentir.
Segundo, que é incrível que, hoje, Bernie Sanders, um candidato viável à presidência dos EUA, possa se declarar socialista, apresentar suas ideias e não ser acusado de traição. O fim da Guerra Fria serviu para alguma coisa.
Terceiro, que talvez Stálin tivesse razão. Essa vou ter que explicar.
Depois da morte de Lênin, em 1924, Trótski pensava que a revolução soviética deveria incentivar outras revoluções socialistas mundo afora (deu, como exemplo, Che Guevara e Régis Debray na Bolívia etc.), porque o comunismo só seria viável se o mundo inteiro fosse comunista. Stálin, ao contrário, achava possível construir o socialismo num só país.
Trótski foi derrotado, exilado e, mais tarde, em 1940, assassinado (sobre essa história, leia o lindo livro de Leonardo Padura, “O Homem que Amava os Cachorros”, lançado pela Boitempo).
Mas, em sua grande maioria, a esquerda internacional pensou que Stálin trocava a esperança revolucionária de todos os povos pela constituição de uma burocracia nacional tacanha.
Claro, Stálin era detestável, mas, sem o espantalho do sonho internacional trotskista, quiçá tivesse sido possível, nas décadas passadas, pelo vasto mundo, ser socialista ou comunista discutindo ideias, sem ser demonizado como traidor da pátria. Aqui no Brasil, por exemplo, sem ouvir: se você não gosta do país, “ame-o ou deixe-o”
Publicado originalmente na Folha de São Paulo