Consolidar a ruptura histórica operada pelo PT por Leonardo Boff
Para mim o significado maior desta eleição é
consolidar a ruptura que Lula e o PT instauraram na história política
brasileira. Derrotaram as elites econômico-financeiras e seu braço ideológico a
grande imprensa comercial.
Notoriamente, elas sempre mantiveram o povo à margem
da cidadania, feito, na dura linguagem de nosso maior historiador mulato,
Capistrano de Abreu,"capado e recapado, sangrado e ressangrado". Elas estiveram
montadas no poder por quase 500 anos. Organizaram o Estado de tal forma que
seus privilégios ficassem sempre salvaguradados. Por isso, segundo dados
do Banco Mundial, são aquelas que, proporcionalmente, mais acumulam no mundo e
se contam, política e socialmente, entre as mais atrasadas e insensíveis. São
vinte mil famílias que, mais ou menos, controlam 46% de toda a riqueza
nacional, sendo que 1% delas possui 44% de todas as terras. Não admira que
estejamos entre os paises mais desiguais do mundo, o que equivale dizer, um dos
mais injustos e perversos do planeta.
Até a vitória de um filho da pobreza, Lula, a casa grande e a senzala
constituíam os gonzos que sustentavam o mundo social das elites. A casa grande
não permitia que a senzala descobrisse que a riqueza das elites fôra construida
com seu trabalho superexplorado, com seu sangue e suas vidas, feitas carvão no
processo produtivo. Com alianças espertas, embaralhavam diferentemente as
cartas para manter sempre o mesmo jogo e, gozadores, repetiam:"façamos nós a
revolução antes que o povo a faça". E a revolução consistia em mudar um pouco
para ficar tudo como antes. Destarte, abortavam a emergência de um outro
sujeito histórico de poder, capaz de ocupar a cena e inaugurar um tempo moderno
e menos excludente. Entretanto, contra sua vontade, irromperam redes de movimentos
sociais de resistência e de autonomia. Esse poder social se canalizou em poder
político até conquistar o poder de Estado.
Escândalo dos escândalos para as mentes súcubas e alinhadas aos poderes
mundiais: um operário, sobrevivente da grande tribulação, representante da
cultura popular, um não educado academicamente na escola dos faraós, chegar ao
poder central e devolver ao povo o sentimento de dignidade, de força histórica
e de ser sujeito de uma democracia republicana, onde "a coisa pública", o
social, a vida lascada do povo ganhasse centralidade. Na linha de Gandhi, Lula
anunciou: "não vim para administrar, vim para cuidar; empresa eu administro, um
povo vivo e sofrido eu cuido". Linguagem inaudita e instauradora de um novo
tempo na política brasileira. A "Fome Zero", depois a "Bolsa Família", o
"Crédito consignado", o "Luz para todos", a "Minha Casa, minha Vida, a
"Agricultura familiar, o "Prouni", as "Escolas profissionais", entre outras
iniciativas sociais permitiram que a sociedade dos lascados conhecesse o que
nunca as elites econômico-financeiras lhes permitiram: um salto de qualidade.
Milhões passaram da miséria sofrida à pobreza digna e laboriosa e da
pobreza para a classe média. Toda sociedade se mobilizou para melhor.
Mas essa derrota inflingida às elites excludentes e anti-povo, deve ser
consolidada nesta eleição por uma vitória convincente para que se configure um
"não retorno definitivo" e elas percam a vergonha de se sentirem povo
brasileiro assim como é e não como gostariam que fosse. Terminou o longo
amanhecer.
Houve três olhares sobre o Brasil. Primeiro, foi visto a partir da praia: os
índios assistindo a invasão de suas terras. Segundo, foi visto a partir das
caravelas: os portugueses "descobrindo/encobrindo" o Brasil. O terceiro, o Brasil
ousou ver-se a si mesmo e aí começou a invenção de uma república mestiça étnica
e culturalmente que hoje somos. O Brasil enfrentou ainda quatro duras invasões:
a colonização que dizimou os indígenas e introduziu a escravidão; a vinda dos
povos novos, os emigrantes europeus que substituirem índios e escravos; a
industrialização conservadora de substituição dos anos 30 do século passado
mas que criou um vigoroso mercado interno e, por fim, a globalização
econômico-financeira, inserindo-nos como sócios menores.
Face a esta história tortuosa, o Brasil se mostrou resiliente, quer dizer,
enfrentou estas visões e intromissões, conseguindo dar a volta por cima e
aprender de suas desgraças. Agora está colhendo os frutos.
Urge derrotar aquelas forças reacionárias que se escondem atrás do candidato da
oposição. Não julgo a pessoa, coisa de Deus, mas o que representa como ator
social. Ceslo Furtado, nosso melhor pensador em economia, morreu deixando uma
advertência, título de seu livro A construção interrompida(1993):"Trata-se
de saber se temos um futuro como nação que conta no devir humano. Ou se
prevalecerão as forças que se empenham em interromer o nosso processo histórico
de formação de um Estado-nação"(p.35). Estas não podem prevalecer. Temos
condições de completar a construção do Brasil, derrotando-as com Lula e as
forças que realizarão o sonho de Celso Furtado e o nosso.
Leonardo Boff autor de Depois de 500 anos:
que Brasil queremos, Vozes (2000).