Aldeia Nagô
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Consumidores, uni-vos! Por Ivana Bentes

7 - 10 minutos de leituraModo Leitura

Custou, mas apareceu, o ‘manifesto’ dos Publicitários, se dizendo ameaçados pela
tentativa de regulamentação da publicidade por parte dos órgãos de defesa do
consumidor e da saúde pública.


A retórica e estratégia são conhecidas:
qualquer tentativa do Estado de regular a mídia, seja a faixa etária indicativa
de programas na TV, seja a veiculação de publicidade de cigarros, bebida
alcoólica, gordura trans ou uma cota de filmes brasileiros na TV, qualquer
movimento social que ameace os lucros exorbitantes da publicidade e a liberdade
de empresa, são considerados ‘censura’ e ‘ataque a liberdade de expressão’.

Em nova embalagem, a velha retórica. De forma grosseira, as emissoras de
TV já tinham veiculado anúncio dizendo que o governo queria ‘tirar o direito do
telespectador de escolher seus programas’, diante da proposta em votação no
Congresso de uma cota para conteúdo brasileiro nas TVs a cabo.

Como se
os pacotes com enlatados e programas comprados pelas emissoras tivessem algum
grau de ‘escolha’ e participação do espectador, obrigado ainda a levar no
pacotão que compra uma porcentagem de lixo cultural adicional.

Mas o
manifesto dos publicitários vai mais longe. Faz uma inversão ainda mais
espetacular ao esvaziar totalmente o lugar de poder que está nas mãos (o zapping
é um deles) da audiência e do público. O verdadeiro ‘produto’ que é ‘vendido’
para os anunciantes a peso de ouro e que sequer é mencionado no texto.

O
manifesto tenta nos convencer do contrário. Não, não é a audiência e o
espectador, o público, e a sociedade, nós, que sustentamos o mercado e a mídia e
sim ‘a publicidade’ em si. São eles, os mediadores, os publicitários, diz o
manifesto, os verdadeiros protagonistas dessa história.

Transformados em
arautos da democracia e da ‘livre expressão’, os publicitários defendem no seu
manifesto que ‘é a publicidade que viabiliza do ponto de vista financeiro a
liberdade de imprensa e a difusão de cultura e entretenimento para toda a
população. É a publicidade que torna possível a existência de milhares de
jornais, revistas, emissoras de rádio e televisão, assim como de outras
expressões da mídia.’ (!!!)

Ou seja, para os publicitários estamos num
cenário em que os mediadores são os protagonistas todo-poderosos da sociedade!
Para eles, é a publicidade o esteio da democracia e não o contrário, a
radicalização da democracia que vai democratizar inclusive a publicidade
corporativa! Que vende quase qualquer coisa, que cria necessidades, fidelidades,
hábitos e valores, estilos mais ou menos predadores…É essa publicidade que
quer se ‘auto-regulamentar’?

Os publicitários escamoteiam que é o
espectador, a audiência, o público, a sociedade que produz valor simbólico e
real, conteúdos, opiniões, produtos, mídia, inclusive de graça e de forma
colaborativa, hoje, com as novas formas de produção e difusão da cultura livre
pós-internet, produtos que podem ser acessados diretamente, sem a mediação da
publicidade tradicional, inclusive!

O manifesto dos publicitários não
discute o que poderia ser uma publicidade democrática ou com objetivos
‘públicos’ e não simplesmente predadora ou visando o lucro imediato.

Também sequer cogitam a emergência de uma série de movimentos e
ativistas que batalham no campo do consumo. Exigindo rótulos explicativos e
indicativos dos venenos que ingerimos e que a publicidade vende sob um lindo
design e letras miúdas.

Movimentos que exigem saber a origem da mão de
obra de certos produtos, a forma de produção, a origem natural ou modificada,
transgênica ou não, com ou sem agrotóxicos, etc. Ou seja, a liberdade de
sabermos o que afinal ingerimos, calçamos, vestimos, lemos, vemos, consumimos.

Movimentos que mostram que o preço embutido da publicidade encarece os
produtos de forma exorbitante! O que também não é dito no manifesto, ou seja,
que somos nós que pagamos a própria publicidade que consumimos.

Incutindo o medo. Com décadas de atraso em relação a outros países, e
apesar do lobby poderoso, a propaganda de cigarros foi proibida na mídia
brasileira. O que não levou a falência nem as emissoras de TV e jornais nem as
fábricas de cigarros (que passaram a apoiar Festivas de música e produtos
culturais).

O fim da propaganda de cigarro também não levou a uma
diminuição da ‘liberdade de expressão’ de ninguém, quem quer fuma, mas
diminuiu-se sim os riscos de câncer de pulmão em nível planetário.

Agora
a batalha é proibir a publicidade de bebidas alcoólicas, sendo o alcoolismo uma
epidemia no Brasil de ricos e pobres. Ninguém deixará de tomar sua cerveja,
cachaça, vinho, whisky, o que for, mas sem dúvida o consumo será balizado por
outras forças que não simplesmente o bombardeamento diário da publicidade
ostensiva e reiterativa.

Ao neutralizarem a força do consumidor e se
colocarem na ‘origem’ da liberdade de expressão e como fonte primordial de
sustentação da mídia democrática, os publicitários fazem uma peça de marketing
ruim e corporativa, distorcida.

Esquecem, que o telespectador e a
audiência, o público, o ‘prossumidor’ (o consumidor que se tornou produtor e
publicista) está mobilizado e é a nova forca de transformação no capitalismo
midiático e imaterial.

A Mídia somos nós, a liberdade de expressão não
tem nada a ver com propaganda de cerveja ou de gordura trans! Mesmo parados
diante da TV estamos trabalhando para a audiência. O poder de consumo, de
produção, criação e difusão está em toda a sociedade. É a sociedade que deve ser
emponderada! Ao invés da defesa incondicional da ‘perenidade’ do mercado
publicitário, principalmente num capitalismo da abundância e da emergência da
economia da gratuidade.

O estágio atual é de politização do consumo! Não
precisamos de manifesto de publicitários defendendo sua corporação e propondo
‘adequar’ os Cursos de Comunicação as suas exigências, adestrando os jovens a um
complexo industrial/publicitário em crise. Quando precisamos de uma nova
publicidade, de democratização, colaborativa e feita pelo próprio consumidor.

O que falta são mais movimentos de consumidores, de telespectadores que
pudessem exigir, opinar, protestar e pressionar os fabricantes de produtos e os
publicitários. Algo que o anonimato e a impessoalidade da audiência não
estimulam.

Como dar credibilidade a um manifesto que apaga o consumidor
como fonte de poder e valor e colocar no seu lugar…os publicitários, ou que
demoniza o Estado que quer regular e restringir certas propagandas?

O
Manifesto dos Publicitários se torna uma jogada de marketing ruim, pois:

Para os publicitários, não existe comunicação sem publicidade!
Para
os publicitários, a proibição de anunciar bebida alcoólica vai levar a mídia a
falência!
Para os publicitários, sem a publicidade não existe ‘liberdade de
expressão’!
Para os publicitários, para não ‘desaquecer’ o mercado não se
pode intervir nem restringir certos anúncios, como o de ‘bebidas alcoólicas,
remédios, alimentos, refrigerantes, automóveis, produtos para crianças, entre
outras’.

Seria o equivalente a dizer que para não ‘desaquecer’ o mercado
de drogas não se pode intervir no sistema de venda, de tráfico de armas e de
corrupção existente. Pois esse é um mercado aquecidíssimo e que movimenta
zilhões, sem publicidade!

‘Seria demais pedir a um anunciante que
proponha o desestímulo ao consumo’, nas palavras de Gilberto Leifert, presidente
do Conar, ao vender o texto, ou melhor, a publicidade dos publicitários.
Perfeito, é essa a lógica do Manifesto!

‘O objetivo central é sempre o
fortalecimento da indústria da comunicação’, completa o texto, ou seja, a
manutenção de um mercado publicitário ‘perene’ a qualquer custo. A mesma lógica
‘desenvolvimentista’ que ainda é dominante na política, apesar de ultrapassada e
discutível.

Os publicitários querem criar uma confusão entre as
liberdades individuais, o ‘risco escolhido’ (consumir, viver e morrer, ter
prazer fumando cigarro, ingerindo gordura trans, bebendo ou usando drogas leves
e pesadas, por vontade própria), a ‘liberdade de expressão’ (que tem a ver com a
possibilidade da pluralidade e da autonomia) e capturam a defesa legítima dessas
liberdades com a sua defesa de ‘liberdade comercial’, mesmo que essa liberdade
das empresas afronte a saúde pública e a construção do comum.

É muito
preocupante que os publicitários transformem a Anvisa (Agência Nacional de
Vigilância Sanitária) e o Congresso em inimigos públicos número um dos
publicitários! Ou seja, o que está sendo descartado são as questões de saúde
pública! E a construção do interesse ‘comum’.

Estranhamente os
publicitários não falam em democratizar as verbas públicas destinadas as suas
empresas e que são repartidas entre uns poucos veículos de comunicação. Essa
repartição pouco democrática do bolo nem sequer é mencionada. Ou seja, o Estado
só incomoda quando quer regular para todos, não quando privilegia poucos.

O manifesto dos publicitários que ganhou ampla repercussão na própria
TV, em horário nobre, teve dois garotos propaganda de peso, um Civita e um
Marinho, donos de corporações de mídia e TV, com seus ternos cinzas, voz
monocórdia e rosto descansado, adentraram a nossa casa, pela concessão pública
que lhes demos, para fazer a sua própria publicidade e anunciar essa estranha
contrafação.
Publicado originalmente na Revista Carta Capital

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