Cotas: uma nova consciência acadêmica por José Jorge de Carvalho
"A África do Sul, ainda nos dias do apartheid, já tinha mais
professores universitários negros do que nós temos hoje"
Enquanto cresce o número de universidades que aprovam autonomamente as cotas, a
reação a esse movimento de dimensão nacional pela inclusão de negros e
indígenas vai se tornando cada vez mais ideológica, exasperada e descolada da
realidade concreta do ensino superior brasileiro.
Em um artigo recente ("O dom de iludir",
"Tendências/Debates", 9/9), Demétrio Magnoli citou fragmento de um
parágrafo de conferência que proferi na Universidade Federal de Goiás em 2001.
Mas ele suprimiu a frase seguinte às que citou – justamente o que daria sentido
ao meu argumento, que, da forma como foi utilizado, pareceu absurdo.
Sua transcrição truncada fez desaparecer a crítica irônica que eu fazia ao tipo
de ação afirmativa de uma faculdade do Estado de Maine, nos EUA. O tema da
conferência era acusar a carência, naquele ano de 2001, de políticas de
inclusão no ensino superior brasileiro, fossem de corte liberal ou socialista.
Magnoli ocultou dos leitores o que eu disse em seguida: "Quero contrastar
isso com o que acontece no Brasil. Como estamos nós? A Universidade de Brasília
tem 1.400 professores e apenas 14 são negros". É 1% de professores negros
na UnB.
E quantos são os docentes negros da USP? Dados recentes indicam que, de 5.434
docentes, os negros não passam de 40. Pelo censo de identificação que fiz em
2005, a porcentagem média de docentes negros no conjunto das seis mais
poderosas universidades públicas brasileiras (USP, Unicamp, UFRJ, UFRGS, UFMG,
UnB) é 0,6%.
Essa porcentagem pode ser considerada insignificante do ponto de vista
estatístico e não deverá mudar muito, pois é crônica e menor que a flutuação
probabilística da composição racial dos que entram e saem no interior do
contingente de 18 mil docentes dessas instituições.
Para contrastar, a África do Sul, ainda nos dias do apartheid, já tinha mais
professores universitários negros do que nós temos hoje. Se não interviermos
nos mecanismos de ingresso, nossas universidades mais importantes poderão
atravessar todo o século 21 praticando um apartheid racial na docência
praticamente irreversível.
É esta a questão central das cotas no ensino superior: a desigualdade racial
existente na graduação, na pós-graduação, na docência e na pesquisa. Pensar na
docência descortina um horizonte para a luta atual pelas cotas na graduação.
Enquanto lutamos para mudar essa realidade, um grupo de acadêmicos e
jornalistas brancos, concentrado no eixo Rio-São Paulo, reage contra esse
movimento apontando para cenários catastróficos, como se, por causa das cotas,
as universidades brasileiras pudessem ser palco de genocídios como o do nazismo
e o de Ruanda!
Como não podem negar a necessidade de alguma política de inclusão racial,
passam a repetir tediosamente aquilo que todos sabem e do que ninguém discorda:
não existem raças no sentido biológico do termo.
E, contrariando inclusive todos os dados oficiais sobre a desigualdade racial
produzidos pelo IBGE e pelo Ipea, começam a negar a própria existência de
racismo no Brasil.
Fugindo do debate substantivo, os anticotas optam pela desinformação e pelo
negacionismo: raça não existe, logo, não há negros no Brasil; se existem por
causa das cotas, não há como identificá-los; logo, não pode haver cotas.
Raças não existem, mas os negros existem, sofrem racismo e a maioria deles está
excluída do ensino superior. Felizmente, a consciência de que é preciso
incluir, ainda que emergencialmente, só vem crescendo -por isso, a presente
década pode ser descrita como a década das cotas no ensino superior no Brasil.
Começando com três universidades em 2002, em 2009 já são 94 universidades com ações
afirmativas, em 68 das quais com recorte étnico-racial.
Vivemos um rico e criativo processo histórico, resultado de grande mobilização
nacional de negros, indígenas e brancos, gerando juntos intensos debates,
dentro e fora de universidades. Os modelos aprovados são inúmeros, cada um
deles tentando refletir realidades regionais e dinâmicas específicas de cada
universidade.
Essa nova consciência acadêmica refletiu positivamente no CNPq, que acaba de
reservar 600 bolsas de iniciação científica para cotistas. Se o século 20 no
Brasil foi o século da desigualdade racial, surge uma nova consciência de que o
século 21 será o século da igualdade étnica e racial no ensino superior e na
pesquisa.
José Jorge de Carvalho é professor da UnB (Universidade de Brasília) e
coordenador do INCT de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa. Artigo
publicado na "Folha de SP":
Artigo publicado na Folha de São Paulo em 17/9/2009