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Debate: Os perigos de um super STF por Miguel do Rosário

6 - 8 minutos de leituraModo Leitura

Montesquieu diz que “várias coisas governam os homens: o clima, a religião, as leis, as máximas do governo, os exemplos das coisas passadas, os costumes, as maneiras”.

Se vivesse hoje, o francês com certeza acrescentaria à lista essa poderosa instituição chamada mídia. Quando os teóricos da democracia escreveram seus clássicos sobre o tema, ela não havia atingido a magnitude atual. Por ser livre das amarras democráticas que regulamentam os outros poderes, todas as forças do arbítrio convergiram para o ambiente “anárquico” da mídia, como quem procura a última praia selvagem.

Em outros países, resolveu-se o problema estrutural da mídia e o desequilíbrio provocado por sua presença ao delicado sistema de pesos e contrapesos do regime democrático através de uma sólida e inteligente regulamentação, criação de respeitados canais públicos independentes (caso da BBC inglesa) e, sobretudo, incentivo à pluralidade.

No Brasil, nada foi feito para regulamentar a mídia, até porque a própria ditadura militar se constituiu no processo, por excelência, de enfraquecimento das instituições democráticas em prol das forças do arbítrio. E também porque, para os interesses imperialistas que sempre agiram no Brasil, a mídia era o único poder que escapava à incômoda influência da soberania popular.

As consequências são parecidas em toda América Latina: após décadas de ditadura, quando as democracias começam, lentamente, a emergir, os países se vêem em face de gigantescos grupos de mídia enraizados profundamente em todos os compartimentos da vida social.

É fundamental a existência de uma imprensa forte e independente. Mas ela também deve ser plural e democrática. Não é o caso do Brasil, onde não há imprensa forte nos municípios e nos estados, além daquelas empresas que redistribuem o sinal da Globo, geralmente dominadas por famílias de políticos. A independência, por sua vez, sempre foi tremendamente relativa num país onde grandes agências norte-americanas sempre ditaram as regras no mercado de publicidade. Quanto à pluralidade, bem, aí temos um quadro de desolação total.

A esse quadro se soma agora a um processo de crescente empoderamento do Supremo Tribunal Federal (STF). Em meio aos debates que temos feito sobre o tema, surgem alguns articulistas lembrando que, historicamente, não é raro que o poder judiciário avance alguns sinais.

O próprio Alexander Hamilton, em The Federalist, grande defensor da instituição da suprema corte e do judiciário, admite que há momentos em que este possa se sentir tentado a usurpar o poder das outras instituições. Mas Hamilton não demonstra receio do judiciário, ao lembrar que ele, de longe, é o poder mais fraco dentre os três da república. O Executivo tem a força física; o Legislativo controla o orçamento e os impostos; à suprema corte caberia apenas vigiar a Constituição.

Entretanto, receio que a tranquilidade de Hamilton seria bastante abalada se testemunhasse o que temos visto na América Latina, sobretudo para o que se deu em Honduras, quando a sua corte suprema ordenou a prisão sumária do presidente da república e sua deportação imediata para outro país. Ou quando presenciasse o que vimos no Brasil durante o julgamento da Ação Penal 470: um STF rasgando os princípios basilares do direito moderno, como a presunção da inocência e a necessidade de provas, no afã de satisfazer a sanha de vendeta de alguns setores influentes da sociedade.

Os superpoderes do nosso STF tem várias raízes: para começar, talvez encontremos inclusive uma origem cultural, na supervalorização da figura do “doutor”. Desde o início das práticas democráticas no país, antes mesmo da república, as elites brasileiras procuravam manter sua hegemonia política sobre a população através da instalação de uma espécie de patriciado acadêmico. Somente os “sábios” formados nas raras e fechadas universidades públicas teriam o direito de seguir carreira política.

Essa visão perdura até hoje. Uma vez, uma inteligente e culta conhecida me perguntou como era possível aos parlamentares elaborarem leis sem formação acadêmica jurídica. Não foi um preconceito consciente, mas por desconhecer que o nosso parlamento abriga alguns dos maiores especialistas em leis no país, que prestam assessoria à Câmara e ao Senado. Aliás, por isso existe a Comissão de Constituição e Justiça, para que os parlamentares possam debater, juntamente com os principais juristas do país, todas as questões referentes à Constituição: seus vícios, brechas, excessos, ausências, virtudes e possibilidades de aprimoramento.

Então uma situação extremamente perigosa se instalou. A fratura social produziu, nas camadas superiores da sociedade, um medo patológico do povo, que se traduz no ódio ao parlamento. Em seus livros, Wanderley Guilherme dos Santos insiste sempre na questão do aumento exponencial da participação popular no total de votantes. Este fator corresponde não apenas ao fortalecimento do congresso enquanto representante dos variados interesses econômicos e sociais, mas também no surgimento, no seio do parlamento, de todos os vícios da massa. O Congresso de repente passa a espelhar também o conservadorismo latente do povo brasileiro.

É aí que vemos emergir, na onda de repúdio à PEC 33, que impõe limites aos superpoderes do STF, uma curiosa aliança entre alguns setores progressistas e a franja mais odiosamente reacionária da sociede. Entendo perfeitamente os setores que vêem o STF como um órgão aliado das minorias e dos direitos humanos. Onde mais poderíamos ter apoio ao casamento gay senão no STF? Onde poderíamos aprovar a legalização da maconha? Onde mais poderíamos vencer o obscurantismo religioso e aprovar pesquisas com células-tronco?

Nessas coisas, testemunhamos uma comovente aliança supra-ideológica das elites brasileiras. O conservadorismo do andar de cima é liberal nos costumes. Seus filhos ou netos fumam um baseado. Eles mesmos fumam um. Alguns são gays ou tem amigos homossexuais. A alta cultura a que tiveram acesso abriu suas mentes quando se trata de costumes. Isso é ótimo.

Nesse sentido, é positivo que tenhamos um STF contramajoritário, que espelhe não a vontade da maioria, mas a aspiração das camadas mais esclarecidas.

Só que tudo tem um preço. Este STF paternalista, nos protegendo do conservadorismo e ignorância da massa ignara, embriaga-se com tantas mesuras que recebe da alta sociedade que de repente passa a ver a si mesmo como a força mais importante da república. A principal característica do poder, lembra Hamilton, é o “encrouchment”: ele tende a crescer indefinidamente, sempre que se não lhe antepõe freios.

Por isso mesmo não deixa de ser interessante que as forças que agora questionam os superpoderes do judiciário também conformam uma intrigante mestiçagem. De um lado, setores reacionários, ligados à religião, descobriram no STF um poder contrário à força que vem ganhando junto ao povo, na medida em que aumentam sua bancada nos parlamentos. De outro, setores da classe trabalhadora, que vêem na suprema corte um aliado da mídia patronal e inimigo dos partidos que os representam. Por fim, intelectuais e blogueiros que, estarrecidos com a atuação ultrapartidária do STF no julgamento do mensalão, temem a emergência, aqui em nossa cordata terra do sabiá, de uma força golpista. Teme-se, como bem afirmou o deputado Nazareno Fonteles, que o STF se torne não apenas o “tapetão dos derrotados”, mas um instrumento de força para burlar a soberania popular.

É preciso admitir, todavia, que por trás desse problema, voltamos como sempre à nossa mídia, inchada, oligopolizada, organizada na forma de um cartel ideológico, que viu no STF uma instância vulnerável à campanhas de pressão, através da vaidade, ou ameaças e chantagens. Ancelmo Gois quase todo dia divulga notinhas mencionando, por exemplo, que Joaquim Barbosa foi “aplaudido de pé” em determinada tertúlia cultural da classe média. Afinal, é sempre mais fácil fazer a cabeça de cinco ou seis ministros que transitam no estreito mundinho da elite, e são carentes, como todo ser humano, de prestígio junto ao segmento a que pertencem, do que influenciar 513 deputados ou 51 senadores, que precisam prestar contas antes a seus eleitores do que aos assinantes do jornal O Globo.

Não podemos esquecer que o casamento gay foi aprovado há pouco na França por seu parlamento, e a maconha foi liberada em mais uma porção de estados norte-americanos em plebiscito popular. Mudanças chanceladas pelo sufrágio revelam maturidade democrática e são a maneira ideal de evoluir.

O Brasil terá de encontrar uma solução inteligente e democrática para contornar esses dilemas.  É extremamente saudável, de qualquer forma, que este debate esteja acontecendo agora, porque em 2014 não haverá essa oportunidade. Precisamos de um STF forte, independente, progressista e contramajoritário. Mas precisamos, mais ainda, de um STF que respeite a soberania popular, o parlamento, não entre no joguinho partidário, e resista bravamente às pressões obscuras e astutas da nossa mídia.

Artigo publicado originalmente em http://www.ocafezinho.com

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