Aldeia Nagô
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Defendendo a Música com unhas e dentes. Por Pena Schmidt

9 - 13 minutos de leituraModo Leitura

…"E agora queria
passar a palavra para o Pena e para o Daniel. " Trinta pessoas olhando
em minha
direção. Quase uma hora da manhã, numa caverna urbana em Brasilia, uma
passagem
entre dois prédios, uma assembléia reunida sentada no chão olha para mim
e
espera. Em alguns segundos retornei da viagem que estava tendo, olhando
aqueles
rapazes e moças se articulando, distribuindo tarefas, relatando cada um
sua
parte na experiencia. Emocionados e decididos, uma cena que pode ter se
repetido
em muitos momentos da História. Minha viagem naquele momento era
descobrir o que
seria mais parecido com aquele momento ali em Brasilia.


 Jovens reunidos
na
madrugada, com um plano de ação se desenrolando e se encaixando em
outros planos
que tambem se desenrolavam ali ao lado. Que grande poder tem estas vidas
se
preparando para uma jornada comum. Eles podem chegar até a Lua! Marte! A
conquista do universo, tudo é viavel quando se tem a vontade e a vida
pela
frente. E eu tinha que dizer alguma coisa ali, naquele momento. Amarelei
e pedi
para sair. – "Eu escrevo no meu blog, leiam lá". Daniel Zen, um jovem
como eles,
Secretario de Estado da Cultura do Acre, tomou a palavra, eloquente e
elegante,
mostrou sua satisfação com o esforço de todos e disse algo importante.
Que mesmo
sendo uma assembleia discutindo a construção da Música, na verdade todos
eles
estavam ali de preparando para outros papeis, tão importantes, que
teriam de
desempenhar como cidadãos. Fui dormir tranquilo porque o que precisava
ser dito
havia sido dito.

Por isso, e por que fui cobrado de minha
promessa, vou
ter que caprichar aqui para as testemunhas oculares deste rascunho ao
vivo.

Brasilia não perdoa os amadores, e só com muita
concentração é
possivel escapar do calor, do ar seco, do concreto, da falta de caminhos
para
pedestres. Estavamos trabalhando num parque de tendas, próximos do chão
vermelho, com a chuva batendo forte na lona e interrompendo. Uma centena
de
pessoas representando os estados todos e quase todos os setores da
música, em
debate permanente e sem trégua. Varias histórias retrançadas em alguns
anos de
associativismo, militancia em sindicatos e cooperativas e essa coisa
nova, os
coletivos, meio trabalho solidario, meio clube, meio célula
revolucionaria.
Todos ali, por varias razões, estavam praticando politica
representativa,
democracia participativa. Os trabalhos se desenrolariam em tres tarefas:
uma
eleição de delegados para a Conferencia Nacional de Cultura, uma
discussão e
escolha de 5 diretrizes da Música para serem incorporadas á pauta da CNC
e uma
eleição de um Colegiado de 15 delegados e seus suplentes, que irá
participar nos
trabalhos do Conselho Nacional de Politica Cultural. Era uma
Pré-Conferencia
Setorial da Música. Odeio a falta de poesia dos títulos, mas é trabalho
necessario, cidadão, e o momento me fazia acreditar na veracidade das
intenções.
O povo estava ali para dar um jeito nas coisas da Música como modo de
vida.

Pode levar um tempo para se recuperar de uma interrupção,
fui ali.
Dias depois retomo esta conversa indo na mesma direção, num avião de
volta a
Brasilia. Corta para algum dia em 2004. Junto com Natale estava viajando
por
todas as capitais do Brasil, um titulo raro, que requer muitas horas de
voo e
muitas passagens por Brasilia, conexão obrigatória. Nessa época faziamos
uma
tourne do projeto Rumos, mapeando a música, indo ao encontro dos músicos
e
produtores. Natale já tinha um traquejo, estava voltando aos lugares e
já tinha
desenvolvido uma rede de contatos. Eu era presidente da ABMI e meu papel
era
fazer uma palestra sobre o movimento associativo. A ABMI nasceu dentro
do
Itaucultural, num encontro de produtores de discos do Brasil todo, em
2000.
Fazia minha palestra, basicamente explicando que vinha uma nova ordem
fonografica pela frente e seria necessario se reorganizar a partir de
coletivos,
associacões de pequenos produtores, que só assim poderiam sobreviver ao
caos
prenunciado pelo desmanche da industria. Só se organizando em coletivos
seria
possivel negociar com o Municipio, o Estado e a União e ir buscar
melhores
condições para a Música Brasileira. Acenava com as facilidades
incipientes da
internet, as possibilidades da telefonia celular chegando a todos os
brasileiros
e com o futuro digital, mais simples e barato que o passado analógico da
indústria fonografica.

Fazia minha palestra, participava da mesa e
dos
debates durante o dia todo. Saiamos para comer com o pessoal local,
fazendo
amigos. Na maioria dos lugares encontravamos um ambiente de insatisfação
e
impotencia, pela falta de informações ou de recursos. O máximo que o
governo se
aproximava da Música era em editais de patrocinios a gravações de
discos, depois
disso era problema seu. O que havia de organização eram alguns selos,
pequenas
empresas fonograficas fora do Rio e SP, alguns com decadas, alguns
movimentos de
resistencia, algumas produtoras de bandas de rock, alguns selos de
música
instrumental e era isso. Quase nada de coletivos, sindicatos,
associações.

Em Cuiabá, fizemos nossa palestra, um nivel de
participação
surpreendente, mais atento. Vamos sair e visitar um lugar recomendado, o
Espaço
Cubo, uma produtora comunitaria. Uma comitiva, pessoas do pedaço e nós.
Uma casa
num bairro classe média, sem sinais por fora. Na sala, logo na entrada,
estantes
com livros, uma parede cheia deles. Uma biblioteca para empréstimos.
Mudei a
marcha mental, admirei aquela biblioteca e pensei em todas as estantes
de livro
que fizeram a minha juventude enxergar o mundo lá fora. Este lugar já se
colocava em outro patamar, já não me parecia mais uma produtora de
bandas de
rock, havia ali uma proposta de dividir com quem chega, partilhar uma
estante de
livros, que coisa mais simbólica. Dai para a frente, a visita foi se
tornando um
espanto atrás de outro. Um nucleo de produção, um núcleo de artes, um
nucleo de
informatica, tudo muito simples, mal acomodado mesmo, mas operacional.
Aqui as
bandas se produzem, preparam seus espetáculos, fazemos festivais, já
temos
conexões e apoio da prefeitura, estamos melhorando nossa sala de ensaio,
e temos
nossa moeda, o CuboCard, que circula entre as bandas e o comercio local.
Em
algum momento desta fala de apresentação que o dirigente Pablo Capilé
fazia, me
perdi dos detalhes e fiquei saboreando aquele modelo especial de
empreendimento.
Uma proposta utopica, de construção de realidade alternativa, movida a
café e
dias de 25 horas, jovens com uma erudição surpreendente, economistas na
jogada,
pés firmes no chão. Pode dar certo, pode contaminar outras pessoas e se
expandir, levei dali um registro apontando para o futuro.

Nossa
caravana
seguiu em frente, vimos o tamanho deste continente, passei a ter uma
visão mais
completa da cena musical, fiz amigos por ai tudo. No ar, a certeza que
era
preciso organizar a música de novo, a partir das novas possibilidades,
mas
principalmente das novas cabeças. Oxigenio para uma industria
anacronica.

Durante estes anos que se passaram, foram se formando
grupos,
os foruns de músicos, houve uma tentativa de organizar uma Camara
Setorial da
Música, onde reencontrei colegas da jornada, como Fabricio Nobre, de
Goiania,
que a partir de um selo de rock criou festivais e partiu para juntar os
festivais numa associação nacional, a Abrafim.

Eles estavam ali
nessa
caverna em Brasilia, agora ali na minha frente, os mesmos Fabricio e
Capilé,
agora puxando a fila do Fora do Eixo, um coletivo de coletivos, um nó
convergente, um empreendimento que continua juntando forças, por
principio.
Nos dois dias da Pré-Conferencia Setorial da Música, vi
dois
grandes blocos interagindo. O povo dos Foruns de Músicos e o povo dos
Fora do
Eixo. Havia a necessidade de se extrair 15 representantes de um lote de
100
participantes, de todos os estados e de varios setores: músicos,
produtores,
entidades, associações, praticamente um recorte da música toda. Os dois
blocos
principais juntos formavam a maioria e restavam alguns representantes
que ainda
não haviam tomado partido entre os dois blocos. Nos dois dias,
presenciei uma
batalha politica no melhor sentido, quando ambos os lados se alinharam
na
primeira noite, cada um no seu canto, cada grupo fazendo sua contagem de
votos e
avaliando quantos delegados conseguiria nomear se houvesse uma votação,
traçando
estratégias, o povo do fora do eixo com um discurso de que seria
importante
conseguir o consenso de todos, evitar o confronto final e que para isso
era
preciso conversar e extrair o consenso. Num momento mirabolante, algumas
dezenas
de foras do eixo decidem ir falar com o povo dos foruns, que eram em
maior
numero e as duas delegações se fundem num verdadeiro quebrapau verbal,
tirando
diferenças uma a uma, recolocando frases no contexto, passando a limpo.
Ali se
iniciou um processo que iria durar dois dias e que terminou muito bem,
quando se
conseguiu acomodar nos 15 delegados e seus suplentes todas as vertentes,
todos
os estados, de forma prática e pragmática. Vamos aterrisar neste avião e
ainda
falta um paragrafo ou dois.

O que faço eu nesta conversa com o
governo,
no meio do governo? Observo e sou observado, eu acho. Fui convidado a
participar, sem direito a voto, ok. Minha carreira é do mercado, tenho
uns
ventos idealistas que às vezes parecem socialistas, mas não entendo nada
disso.
Na verdade, para mim foi uma verdadeira aula de Politica, aprendi sobre
questões
de ordem, incisos, e o jargão. Algumas pessoas ali tinham formação
teorica,
erudita, sociólogos disfarçados de roqueiros e filósofos sociais com
prática de
balcão. Cresci e me formei na hierarquia da industria, uns mandando e
todos
obedecendo, mas passei a vida observando o socialismo musical das bandas
de rock
contrastando com a aristocracia musical da orquestra sinfonica. E lá
estão eles,
horizontalmente procurando o consenso, como eu vi os Titãs praticarem,
não havia
7 x 1, era todos ou nada. Democracia radical, eu acho.

O governo
entra na
história por uma causa simples, tudo isto acontece como uma tentativa de
se
trazer ordem, organização, algum tipo de estrutura a um setor que sofre
com as
consequencias do já falado anacronismo que virou a industria e o mercado
da
Música, e acho que isso tambem acontece pelo resto das industrias
criativas. Só
o governo, começando pelo federal, tem condições de ir buscar algum tipo
de
atenção para todos se disporem a conversar juntos. Inclua embaixo da
mesma lona
as majors, os editores, os independentes, os festivais de rock, a
universidade,
a imprensa especializada, os operarios da música, os criadores, os
sindicalistas
e os coletivos solidarios, as casas. Diga para eles que terão de
conversar sobre
direitos de propriedade, pisos minimos, remuneração digital, legislação
trabalhista, incentivos fiscais e verbas para projetos. Nem uma palavra
sobre as
musas. O pior é que não há saida simples nem um partido de idéias.
Chamar de
setor da economia da música talvez ajude a descrever o que seja este
ente
embaixo da lona lá em Brasilia. Pois este conjunto de diferentes iguais
precisa
superar o monólogo paroquial, a conversa conhecida e precisa se
embrenhar numa
busca de ideario comum, vai precisar virar um Partido da Música, uma ala
do
Partido da Cultura, se quiser participar deste enorme pais que planta
soja,
extrai petroleo e constroi aviões. A Música mais rica do mundo aqui
mendiga
patrocinios porque não existe mercado, só lá fora. Sem subsidios,
editais e
burocracia não se produzem espetáculos, não se gravam discos, não se faz
rock
nem mpb. Esta não é a melhor relação entre artistas e seu público e
assim o
processo se autodevora pelo rabo. Enfim, é preciso ir lá dentro do
governo para
tentar uma alternativa de recriação, de reconstrução depois da guerra
perdida
com o mercado de massa sem investimento na diferença, um equivoco
histórico.
Participo porque não vejo alternativa sem que se mudem leis, sem que se
busque
recursos fora do mercado como está, mal arrumado. É melhor que se
converse e
procure alternativas, juntos.

Os meninos e meninas ali sentados
em roda
no chão não teriam paciencia para me esperar juntar estes estilhaços de
pensamentos num discurso, numa fala como eles dizem. Não sou do ramo.
Mas sei
ver quando uma idéia carrega sua ferramenta de realização. Cada um deles
representava um nucleo de produção movido a entusiasmo, avido por
encontrar um
público que existe e irá se maravilhar, pela capacidade de trocar
experiencias,
de organizar conhecimento, pela pratica do quem tem põe e quem precisa
tira. Um
organiza um site comum, outro cria o modelo de documentação, outro
explica como
registrar um evento e transforma-lo em cinema. Eu vi, com estes olhos
miopes,
uma reunião com o poder de fogo dos melhores momentos numa empresa
multinacional
global. Eram mais de meia noite, eles eram mais de trinta e com um
batalhão
destes se ganha qualquer campeonato.

 

Artigo publicado originalmente em http://penas.blogspot.com

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