Dias que condensam décadas por Emiliano José
O ódio deles tem razão de ser. E seus métodos, é lamentável dizer,
tinham de ser esperados por nós. Era previsível que agissem assim.
Esperamos uma direita civilizada, ao contrário de tudo que nos diz nossa
história.
Se tivéssemos compreendido isso no primeiro turno, deveríamos
ter nos mobilizado e nos preparado para a hipótese do 2º turno. Estamos
vivendo aqueles dias que condensam décadas. Dias que decidem o destino
da Nação e do povo brasileiro. Os militantes têm que ganhar as ruas. As
pesquisas têm indicado uma consolidação da preferência do povo
brasileiro. Isso, no entanto, não nos autoriza a descansar um minuto que
seja. O artigo é de Emiliano José.
A
ilusão na política é uma péssima companhia. De modo geral, esse pecado é
cometido não só pela incapacidade de an alisar a correlação de forças
como também da ausência de conhecimento histórico. Há muito que comentar
sobre essa campanha. Como o Serra conseguiu, de longe, ultrapassar o
Collor no jogo baixo, sujo, próximo do gangsterismo, do banditismo,
envolvendo não só o que o professor Giuseppe Cocco chamou de leilão das
paixões tristes (machismo, sexismo, racismo), como também a montagem de
um impressionante aparato clandestino de comunicação, um esquema
nacional de telemarketing destinado a caluniar, mentir, difamar, tudo
dirigido contra uma mulher, Dilma Rousseff.
Cito esses poucos
exemplos, para não fazer uma longa lista, que não cabe aqui. Depois da
volta das eleições diretas, é a campanha em que a direita joga mais
sujo, e talvez nossas ilusões não permitissem antecipar essa
possibilidade. Quem sabe confiássemos num jogo democrático, quem sabe de
alto nível. Quem sabe imaginássemos um Serra ainda envolto por sua
herança pré-64, verde presidente da UNE. Quem sabe o quiséssemos pronto
para o debate limpo, ele defendendo o projeto de Brasil que de fato
advoga, o Brasil neoliberal, livre das amarras da presença do Estado,
que deve ser, nesse projeto, cada vez mais mínimo, que me desculpem a
expressão pleonástica. Um Estado voltado a reprimir, o Estado do uso da
força, aliás uma de suas propostas mais caras e claras.
Nossas
ilusões, talvez, incluíssem, sem que o quiséssemos, a abolição da luta
de classes. Esquecemo-nos de lições antigas. Aquelas que aprendemos no
passado, e que a vida democrática, tão prezada por nós e que devemos
prezar sempre, pode nos levar a esquecer. Vem de Marx, o velho e sempre
atual Marx, a lição de que toda a história da humanidade é a história da
luta de classes. E nós podemos dizer, com tranqüilidade, que ela está
mais viva do que nunca. E o Brasil dessas eleições é uma evidência
disso. Os campos se definem claramente, e agora o que antes poderia
parecer um jogo civilizado, deixou de sê-lo, e isso desde o primeiro
turno, sem que acordássemos devidamente para isso. Descambou para o que
sem medo de errar podemos chamar, como o fazíamos antes, de ódio de
classe. Um ódio que faz questão de mostrar a cara.
A campanha do
Serra mergulhou atrás do ódio. Tentou plantar na sociedade brasileira
pelos métodos mais sórdidos a semente do ódio. Até o bordão de que
comunista come criancinha voltou quase que literalmente, para sacrificar
a mulher no altar hediondo de um moralismo medieval, como disse num
texto para o Terra Magazine. Não importa que tantas mulheres, milhares
delas, morram por ano no País devido à falta de atendimento por conta de
abortos feitos em condições miseráveis, aviltantes, que atentam contra a
dignidade humana. Não importa que ele mesmo, Serra, tenha, como
ministro da Saúde, determinado o atendimento a essas mulheres. Ele
mente, ele nega, e ele não cora ao mentir. É só lembrar o caso de Paulo
Preto, que ele nega hoje, e amanhã o acolhe, temeroso da ameaça pública
que o seu auxiliar lhe fez. O senso comum o compararia a Pedro, que
negou Cristo três vezes, ou a Judas, que traiu Cristo, como diz a
tradição bíblica. Talvez mais, muito mais Judas, do que Pedro.
Nós
não tínhamos o direito de nos iludir. Não tínhamos o direito de ignorar
as leis da luta de classes, que aprendemos com tanto rigor
anteriormente. Será que ao nos convertermos à democracia, e digo nos
convertermos porque durante algum tempo muitos de nós, da esquerda, a
víamos como algo tático, será que então pensamos nela como um solene
baile de valsa? Como um teatro onde todos se respeitam? Uma democracia
onde as regras são aceitas e cumpridas? Onde os projetos são tratados
habermasianamente? Todas essas ilusões se firmaram, talvez, porque nem
nós mesmos ainda alcançamos a dimensão, o significado do projeto
político que estamos encabeçando no Brasil, a importância que ele tem
para o povo brasileiro e para o mundo, especialmente para os povos dos
países mais pobres, os povos do Sul da humanidade.
Seria possível
imaginar que esse projeto era do agrado de todos? Será que não
compreendemos que esse era um governo de esquerda para as condições do
Brasil e do mundo? E por isso suscetível de gerar tanto ódio? Será que
não tínhamos a dimensão de que forças internacionais torcem, e queiramos
que seja só torcida, para que esse projeto seja derrotado? Será que não
sabíamos que o projeto político que estamos levando à frente criou uma
impressionante rede de solidariedade entre nós e a América do Sul, o
Caribe, a África, a Ásia? E que isso não pode agradar aos EUA? Será que
um projeto que distribui renda como nós o fizemos, a maior distribuição
de renda de toda a nossa história, ia ser tratado com punhos de renda
pela direita brasileira?
O ódio deles tem razão de ser. E os
métodos deles, é lamentável dizer isso, tinham de ser esperados por nós.
Era previsto que eles agissem assim. Esperamos uma direita civilizada,
ao contrário de tudo o que nos diz a nossa história. E digo isso não
para afirmar qualquer coisa na linha de que deveríamos responder na
mesma moeda. Se já tivéssemos compreendido isso desde o primeiro turno,
deveríamos ter nos mobilizado, estimulado muito mais a nossa militância,
deveríamos ter nos preparado para a hipótese do segundo turno,
deveríamos também chamar para nós algumas teses caras à nossa juventude,
tratado melhor os sonhos de tanta gente, que ainda quer ir além do que
estamos fazendo, e ainda bem que há essa gente.
Temos poucos
dias. Eles são decisivos. Estamos vivendo aqueles dias que condensam
décadas. Aqueles dias que decidem o destino da Nação. O destino do povo
brasileiro. Nossa inserção no mundo. Decide-se se o Brasil irá continuar
a ser um protagonista central no mundo, um aliado fundamental dos
países mais pobres, ou se voltará a ser vassalo dos grandes centros do
capitalismo mundial, tal e qual o foi o governo demo-tucano, sob o
professor Fernando Henrique Cardoso. Os militantes do PT, com sua
vitalidade, seus sonhos de sempre, têm que ganhar as ruas, como estão
fazendo mais e mais nas últimas horas. E têm que chamar a todos os que
têm compromissos com esse projeto, da esquerda ao centro, para que não
descansem até a vitória. As pesquisas têm indicado uma consolidação da
preferência do povo brasileiro, que tem amadurecido muito nos últimos
anos. Isso, no entanto, não nos autoriza a descansar um minuto que seja.
Afirmar a democracia no Brasil é lutar para que esse País continue a
distribuir renda e a crescer, e isso só é possível com a vitória de
Dilma. O povo brasileiro vencerá.
(*) Jornalista, escritor.
Artigo publicado na Carta Maior (21/10/2010)