Aldeia Nagô
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Dilma Lá: breve história de uma candidatura por Antonio Lassance *

10 - 14 minutos de leituraModo Leitura

Dilma
é uma nova personagem que entra em cena na história brasileira. Consagrada por
quase 56 milhões de votos, 12 milhões a mais que seu adversário, é uma figura
distinta, em todos os sentidos; uma novidade e, ao mesmo tempo, uma velha
conhecida.


Dilma
vem de uma imensa legião de brasileiros muito bem retratados no livro clássico
de Éder Sader, "Quando novos personagens entraram em cena". Ela representa um
novo momento em que um sujeito coletivo ganha o rosto de uma personagem. Foi
assim com Lula, rosto do sujeito coletivo das greves do ABC e das mobilizações
contra a ditadura; rosto que adquiriu outras feições quando deputado
constituinte em 1986; depois quando candidato em 1989, sua primeira campanha
presidencial; e quando finalmente foi eleito e reeleito (2002 e 2006).
Representa ainda uma longa trajetória de lutas sociais e a ainda breve
trajetória de grandes mudanças proporcionadas pelo atual governo.

Boa parte do que se tem veiculado sobre a presidente eleita na mídia
tradicional desconhece quem é a Dilma, sua capacidade e seu estilo de trabalho.
O que até não seria tão grave, se não viesse acompanhado por um profundo
desconhecimento sobre o que são o presidencialismo e a Presidência no Brasil.
Há um misto de desinformação, má informação e deformação contra alguém que, em
plena democracia, continua sendo acusada, como ocorria na ditadura, pelo que
fez e pelo que não fez, pelo que é e pelo que não é.

Dilma vem de uma imensa legião de brasileiros muito bem retratados no livro
clássico de Éder Sader, "Quando novos personagens entraram em cena" (de
1988). Ela representa um novo momento em que um sujeito coletivo ganha o rosto
de uma personagem. Foi assim com Lula, rosto do sujeito coletivo das greves do
ABC e das mobilizações contra a ditadura; rosto que adquiriu outras feições
quando deputado constituinte em 1986; depois quando candidato em 1989, sua
primeira campanha presidencial; e quando finalmente foi eleito e reeleito (2002
e 2006).

Dilma é de uma das três matrizes identificadas por Sader como representativas
do pensamento de esquerda no país. Nem da matriz sindicalista, nem das
comunidades eclesiais de base da igreja Católica, mas egressa da matriz da
esquerda clandestina, que enfrentou as armas e a tortura dos porões da
ditadura.

A mais nova personagem desse sujeito coletivo representa uma longa trajetória
de lutas sociais e a ainda breve trajetória de grandes mudanças proporcionadas
pelo atual governo. Independentemente de sua matriz original, Dilma foi
transformada por duas experiências cruciais: a do governo Lula e a da campanha
eleitoral. Ambas certamente alteraram profundamente as feições da futura
presidenta, o suficiente para que pudesse enfrentar, sobreviver e sair-se
vitoriosa de ataques do tipo que já abateu figuras supostamente muito mais
experientes do que ela – e que poderiam ter sido as escolhas preferenciais do
PT para 2010.

Dilma é uma novidade em termos de seu perfil. O PT sempre acalentou o sonho de
consumo de realizar a fórmula propugnada há muito por Carlos Matus.
Especialista em planejamento estratégico e com grande ênfase em gestão
presidencial, Matus foi assessor de Salvador Allende (Chile, 1965-1970).
Visitou o Brasil várias vezes, teve livros publicados pelo IPEA (graças ao
empenho de pesquisadores como Ronaldo Garcia) e circulava muito entre o
movimento sindical. Matus enfatizava a importância de se combinar desenvoltura
política com habilidade técnico-gerencial. Sua criatura abstrata era o
dirigente tecnopolítico. Lula, que conheceu Matus pessoalmente, soube usar
desse modelo em seu governo, ao combinar sua maestria política – reconhecida
até por seus oponentes – com escolhas de alto padrão técnico, como foi o caso
de Dilma.

A opção do presidente Lula por Dilma criou a chance de se ter uma presidenta
que fosse um quadro tecnopolítico por excelência. A tarefa que se colocava
então era a de turbinar tal escolha com um treinamento intensivo, para cumprir
um requisito bastante diverso: o da excelência decisória.

Advindo da própria intuição do presidente, os argumentos em torno da excelência
decisória foram reforçados, desde 2003, com a visita, ao Brasil e ao Palácio do
Planalto, de um especialista em presidências, Richard Neustadt. O autor de "Poder
presidencial e os presidentes modernos" estava visivelmente empolgado com o
governo Lula, que mal tinha começado e enfrentava sérias dificuldades em seu
primeiro ano. Neustadt, do alto de seus 84 anos e com a experiência de quem
acompanhou de perto os governos Roosevelt, Truman e Kennedy, acreditava
profeticamente que Lula poderia ter para o Brasil a importância que Franklin
Roosevelt teve para os Estados Unidos. Contudo, sua audiência palaciana, grata
com tal simpatia, mas cética de suas reais possibilidades (que ainda não podiam
ser de fato vislumbras), apreciou particularmente uma das teses clássicas de
Neustadt: a de que um presidente não precisa ser especialista em nenhuma área,
especificamente. Mais do que qualquer outra coisa, ele precisa ser um
especialista em presidência da República. Um exímio operador do poder
presidencial.

Neste aspecto, Dilma passou por um treinamento intensivo, ou laboratório, se
preferirem, que não poderia ocorrer em lugar melhor a não ser na Casa Civil da
Presidência da República, ou seja, na estrutura responsável por demandar,
digerir e encaminhar os atos presidenciais para deliberação. Por trás das
assinaturas de um presidente se escondem processos de decisão política com
meandros que Dilma conhece em detalhes.

A experiência na Casa Civil dá a exata dimensão entre o que um presidente quer
e o que ele pode; a medida sobre até onde vai o seu poder, que não é imperial,
e o que depende de se contar com maioria disciplinada no Congresso – uma das
regras do presidencialismo de coalizão. Enquanto isso, uma das comentaristas
que transformaram o comentário político no Brasil numa espécie de colunismo
social dos Três Poderes avalia que um dos problemas da presidenta eleita é o de
que ela tem uma base congressual maior que a do presidente Lula (!)

Aprende-se na Casa Civil que a capacidade e a velocidade de implementação de
políticas públicas dependem da natureza de nosso federalismo e do padrão de
nossa burocracia. Dilma conhece cada milímetro da Esplanada e esquadrinhou, com
o PAC, cada milímetro do País. Na Casa Civil, se é treinado o tempo todo para
saber que nenhuma decisão é correta se for tomada da forma errada e em hora
certa incerta.

Um presidente deve saber exatamente em que ponto da estrada deve pisar no freio
e quando pode afundar o pé no acelerador. No final de 2003, foram apresentados
a Lula resultados de uma pesquisa de opinião que atestava: as pessoas entendiam
o momento de arrumar a casa e estavam pacientes com relação às mudanças
prometidas. A conclusão oferecida pelos analistas da pesquisa era: o povo não
está com pressa. O presidente, que pisou no freio por todo o ano de 2003,
retrucou, simples e direto : "o povo não tá com pressa, mas eu tô". Dilma
qualificou-se dentro da Casa Civil para ser uma especialista em presidência ao
tornar-se também uma especialista em "timing".

Dilma, "pela primeira vez na história do País", permitirá que o
Brasil tenha uma sequência democrática de governos que cumprem o ciclo de
construtores de regimes e gerenciadores de regime, uma noção comum na
literatura sobre presidências.

Há presidentes que são construtores de regimes e outros que são seus gestores.
Uns constróem uma maneira particular de fazer política e uma orientação diversa
da ação do Estado, representando uma coalizão majoritária que desaloja uma
antiga coalizão, em decadência. Por sua vez, os gestores de regimes têm como
tarefa manter sua coalizão unida, avançar na realização das políticas públicas
que cimentam a coesão de suas bases e oferecer respostas a seus eleitores, na
forma de ações governamentais. São os gestores de regime que desvelam o legado
do presidente anterior e desdobram suas realizações.

No Brasil, se pode dizer que esse ciclo foi cumprido apenas em três épocas: no
início da República, entre Campos Sales (verdadeiro construtor do regime da
República Velha) e Rodrigues Alves; na Era Vargas, quando Getúlio foi, primeiro
(1930-1945) construtor de um novo regime e, depois, ele próprio, continuador de
sua construção pregressa, começando em 1950, tragicamente interrompida em 1954.
Finalmente, no período dos governos da ditadura militar (1964-1984). Na
República Velha, o Brasil tinha um regime pouco representativo (oligárquico e
não democrático). A construção do regime varguista ocorreu sobretudo a partir
de uma ditadura, a do Estado Novo. O mesmo vale para os 20 anos da ditadura de
64.

Dilma é a primeira experiência democrática brasileira de gestão de um novo
regime político e de suas políticas públicas. Todas as demais fracassaram sem
deixar sucessores: Juscelino, Jango, Sarney, FHC.

Gerenciar um regime, em parte, é continuar o que tem sido feito, mas apenas em
parte. Em grande medida, um presidente de continuidade é um desbravador e um
desdobrador. Não é alguém que fará a pintura de uma casa já construída. É quem
pega o leme no meio da viagem e precisa conduzir a embarcação adiante, até
completar-se o ciclo.

O regime estruturado pelo presidente Lula suplantou a montagem minimalista do
tucanato. FHC apostou todos os esforços na estabilidade macroeconômica e supôs
que, daí, os resultados para o crescimento econômico e para a melhoria das
condições sociais viriam naturalmente. Não vieram, e isso explica seu declínio.

A coalizão encabeçada por Lula e seu novo regime basearam-se na combinação de
estabilidade econômica com esforços decididos e simultâneos de aceleração do
crescimento e redução drástica das desigualdades. Duas coisas que, na
mentalidade do regime anterior, estavam fora da governabilidade do Executivo
federal e deveriam ser subproduto da estabilidade.

A campanha possibilitou a todos, em especial à presidenta eleita, a percepção
clara da importância da mobilização e do contato popular. Principalmente a
campanha de segundo turno. Ficou claro que, deixada à sua própria sorte, Dilma
e Lula seriam derrotados pelas forças do atraso.
Os relatos de quem a acompanhou na campanha são repletos de histórias sobre
como o semblante e a disposição da candidata eram energizados pelo contato
popular. Algo que vai na mesma linha do que o presidente Lula não se cansa de
repetir: as viagens pelo país garantem o contato com o povo, e isso revigora um
presidente.

A estrutura de qualquer presidência da República é tradicionalmente montada
para afastar a "autoridade" daqueles que o elegeram. A presidência diariamente
se esforça para assoberbar o presidente com papéis, para manter suas portas
fechadas, para isolá-lo do barulho das ruas.

Diante disso, se o presidente se acomoda, se ele não se insurgir contra uma
rotina ritualizada, se ele não fugir do Palácio, ele se tornará um presidente
cada vez menos popular. É preciso romper os limites do palácio de cristal
(outra imagem muito conhecida criada por Matus), a redoma que tem a boa
intenção de proteger o presidente de tudo, mas que acaba por afastá-lo,
inclusive, daquilo que há de melhor.

As viagens pelas quais o presidente foi tantas vezes criticado, mesmo quando
percorria seu próprio país e visitava as localidades mais pobres, permitiram
que ele visse claramente as mudanças em curso e os problemas que engavetavam
suas decisões. Mas, principalmente, as viagens recarregavam suas baterias com
uma energia que não é gerada em despachos, em reuniões ministeriais e em
negociações com o Congresso – ao contrário, essas a exaurem.

Pelo pouco que se viu das primeira horas após o resultado das eleições, pode-se
antever também outra novidade: ao contrário de presidentes anteriores, Dilma
não contará com aquela fase de "lua de mel", os primeiros 100 dias em que
oposição e imprensa dão um desconto para o presidente que entra, antes de abrir
fogo com todas as suas baterias. Mesmo informado do discurso de paz e da mão
estendida, a oposição fez declaração de guerra. O candidato derrotado – aquele
que sacralizou a baixaria – deu ao conservadorismo mais abominável o
qualificativo de "delimitação de campo". E avisou: "isso não é o fim. Isso é
apenas o começo". A frase queimada no calor da derrota exala uma fumaça com
forte cheiro de terceiro turno.

Neste sentido, mesmo com toda a agressividade, a oposição se coloca em
desvantagem. Ao contrário de Dilma, que aprendeu muito em pouco tempo, a
oposição demonstra que nada aprendeu em 8 anos de sucessivas derrotas. Consegue
considerar-se campeã moral de uma guerra na qual se desmoralizou. Seu
diagnóstico é o de que quem errou foi o povo. "Não foi dessa vez", que se
traduz em "o povo um dia aprende". Suas lideranças se fecharam em copas e se
arvoram bastiões dos velhos tempos; tempos que não voltam mais, principalmente
porque cada vez menos gente sente saudades deles.

Ao longo da campanha, uma das formas mais utilizadas de se manifestar apoio a
Dilma foi estampar sua foto de militante clandestina presa pela ditadura. As
pessoas mostravam sua adesão a um rosto que simbolizava uma identidade
coletiva. Enquanto essa coletividade estiver unida em torno de Dilma, a
oposição estará condenada a repetir: "não foi dessa vez".No que depender de seu
preparo, a presidenta eleita teve, ao longo da vida, as melhores dentre todas
as escolas.

(*) Cientista político, pesquisador do IPEA, foi assessor da Presidência da
República de 2003 a 2010.

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