Ditadura de 1964/85: uma síntese do fracasso e da ignomínia. Por Celso Lungaretti
31 de março: Infeliz Aniversário
Ao completarem-se 44 anos da quebra da normalidade
institucional no Brasil, mergulhando o País nas trevas e na barbárie durante
duas décadas, é oportuno evocarmos o que realmente foi essa ditadura, defendida
hoje com tamanha desfaçatez pelos culpados inúteis e com tanta ingenuidade pelos
inocentes úteis.
Como frisou a bela canção de Milton Nascimento e
Fernando Brant, cabe a nós, sobreviventes do pesadelo, o papel de sentinelas do
corpo e do sacrifício dos nossos irmãos que já se foram, assegurando-nos de que
a memória não morra – mas, pelo contrário, sirva de vacina contra novos surtos
da infestação virulenta do totalitarismo.
Nessa efeméride negativa, o primeiro ponto a
destacar é que a quartelada de 1964 foi o coroamento de uma longa série de
articulações e tentativas golpistas, nada tendo de espontâneo nem sendo
decorrente de situações conjunturais; estas foram apenas pretextos, não causa.
Há controvérsias sobre se a articulação da UDN com
setores das Forças Armadas para derrubar o presidente Getúlio em 1954
desembocaria numa ditadura, caso o suicídio e a carta de Vargas não tivessem
virado o jogo. Mas, é incontestável que a ultra-direita vinha há muito tempo
tentando usurpar o poder.
Em novembro/1955, uma conspiração de políticos
udenistas e militares extremistas tentou contestar o triunfo eleitoral de
Juscelino Kubitscheck, mas foi derrotada graças, principalmente, à posição
legalista que Teixeira Lott, o ministro da Guerra, assumiu. Um dos golpistas
presos: o então tenente-coronel Golbery do Couto e Silva, que viria a ser o
formulador da doutrina de Segurança Nacional e eminência parda do ditador
Geisel.
Em fevereiro de 1956, duas semanas após a posse de
JK, os militares já se insubordinavam contra o governo constitucional, na
revolta de Jacareacanga.
Os oficiais da FAB repetiram a dose em outubro de
1959, com a também fracassada revolta de Aragarças.
E, em agosto de 1961, quando da renúncia de Jânio
Quadros, as Forças Armadas vetaram a posse do vice-presidente João Goulart, só
voltando atrás diante da resistência do governador Leonel Brizola (RS) e do
apoio por ele recebido do comandante do III Exército, gerando a ameaça de uma
guerra civil.
Apesar das bravatas de Luiz Carlos Prestes e dos
chamados grupos dos 11 brizolistas, inexistia em 1964 uma possibilidade real de
revolução socialista. Não houve o alegado "contragolpe preventivo", mas, pura e
simplesmente, um golpe para usurpação do poder, meticulosamente tramado e
executado com apoio dos EUA. Derrubou-se um governo democraticamente
constituído, fechou-se o Congresso Nacional, cassaram-se mandatos legítimos,
extinguiram-se entidades da sociedade civil, prenderam-se e barbarizaram-se
cidadãos.
A esquerda só voltou para valer às ruas em 1968,
mas as manifestações de massa foram respondidas com o uso cada vez mais brutal
da força, por parte de instâncias da ditadura e dos efetivos paramilitares que
atuavam sem freios de nenhuma espécie, promovendo atentados e
intimidações.
Até que, com a edição do dantesco AI-5 (que fez do
Legislativo e o Judiciário Poderes-fantoches do Executivo, suprimindo os mais
elementares direitos dos cidadãos), em dezembro de 1968, a resistência pacífica
se tornou inviável. Foi quando a vanguarda armada, insignificante até então,
ascendeu ao primeiro plano, acolhendo os militantes que antes se dedicavam aos
movimentos de massa.
As organizações guerrilheiras conseguiram
surpreender a ditadura no 1º semestre de 1969, mas já no 2º semestre as Forças
Armadas começaram a levar vantagem no plano militar, introduzindo novos métodos
repressivos e maximizando a prática da tortura, a partir de lições recebidas de
oficiais estadunidenses.
Em 1970 os militares assumiram a dianteira também
no plano político, aproveitando o boom econômico e a euforia da conquista do
tricampeonato mundial de futebol, que lhes trouxeram o apoio da classe
média.
Nos anos seguintes, com a guerrilha nos
estertores, as Forças Armadas partiram para o extermínio sistemático dos
militantes, que, mesmo quando capturados com vida, eram friamente
executados.
A Casa da Morte de Petrópolis (RJ) e o assassinato
sistemático dos combatentes do Araguaia estão entre as páginas mais vergonhosas
da História brasileira – daí a obstinação dos carrascos envergonhados em darem
sumiço nos restos mortais de suas vítimas, acrescentando ao genocídio a
ocultação de cadáveres.
O milagre brasileiro, fruto da reorganização
econômica empreendida pelos ministros Roberto Campos e Octávio Gouveia de
Bulhões, bem como de uma enxurrada de investimentos estadunidenses em 1970
(quando aqui entraram tantos dólares quanto nos 10 anos anteriores somados),
teve vida curta e em 1974 a maré já virou, ficando muitas contas para as
gerações seguintes pagarem.
As ciências, as artes e o pensamento eram
cerceados por meio de censura, perseguições policiais e administrativas,
pressões políticas e econômicas, bem como dos atentados e espancamentos
praticados pelos grupos paramilitares consentidos pela ditadura;
Corrupção: havia tanta quanto agora, mas a
imprensa era impedida de noticiar o que acontecia, p. ex., nos projetos
faraônicos como a Transamazônica, Ferrovia do Aço, Itaipu e Paulipetro (muitos
dos quais malograram).
A arrogância e impunidade com que agiam as forças
de segurança causaram muitas vítimas inocentes, como o motorista baleado em 1969
apenas por estar passando em alta velocidade diante de um quartel, na madrugada
paulistana (o comandante da unidade ainda elogiou o recruta assassino, por ter
cumprido fielmente as ordens recebidas!).
Longe de garantirem a segurança da população, os
integrantes dos efetivos policiais chegavam até a acumpliciar-se com
traficantes, executando seus rivais a pretexto de justiçar bandidos (Esquadrões
da Morte).
O aparato repressivo criado para combater a
guerrilha propiciava a seus integrantes uma situação privilegiadíssima. Não só
recebiam dos empresários extremistas vultosas recompensas por cada
revolucionário preso ou morto, como se apossavam de tudo que encontravam de
valor com os militantes. Acostumaram-se a um padrão de vida muito superior ao
que sua remuneração normal lhes proporcionaria.
Daí terem resistido encarniçadamente à disposição
do ditador Geisel, de desmontar essa engrenagem de terrorismo de Estado, no
momento em que ela se tornou desnecessária. Mataram pessoas inofensivas como
Vladimir Herzog, promoveram atentados contra pessoas e instituições (inclusive o
do Riocentro, que, se não tivesse falhado, provocaria um morticínio em larga
escala) e chegaram a conspirar contra o próprio Geisel, que foi obrigado a
destituir sucessivamente o comandante do II Exército e o ministro do
Exército.
A ditadura terminou melancolicamente em 1985, com
a economia marcando passo e os cidadãos cada vez mais avessos ao autoritarismo
sufocante. Seu último espasmo foi frustrar a vontade popular, negando aos
brasileiros o direito de elegerem livremente o presidente da República, ao
conseguir evitar a aprovação da emenda das
diretas-já.
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Jornalista e escritor. Mais artigos em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com