Aldeia Nagô
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E se Obama fosse africano por Mia Couto

6 - 8 minutos de leituraModo Leitura

Os
africanos rejubilaram com a vitória de Obama. Eu fui um deles. Depois
de uma noite em claro, na irrealidade da penumbra da madrugada, as
lágrimas corriam-me quando ele pronunciou o discurso de vencedor. Nesse
momento, eu era também um vencedor.


A mesma felicidade me atravessara
quando Nelson Mandela foi libertado e o novo estadista sul-africano
consolidava um caminho de dignificação de África.

Na
noite de 5 de Novembro, o novo presidente norte-americano não era
apenas um homem que falava. Era a sufocada voz da esperança que se
reerguia, liberta, dentro de nós. Meu coração tinha votado, mesmo sem
permissão: habituado a pedir pouco, eu festejava uma vitória sem
dimensões. Ao sair à rua, a minha cidade se havia deslocado para
Chicago, negros e brancos respirando comungando de uma mesma surpresa
feliz. Porque a vitória de Obama não foi a de uma raça sobre outra: sem
a participação massiva dos americanos de todas as raças (incluindo a da
maioria branca) os Estados Unidos da América não nos entregariam motivo
para festejarmos.

Nos dias seguintes, fui colhendo
as reacções eufóricas dos mais diversos recantos do nosso continente.
Pessoas anónimas, cidadãos comuns querem testemunhar a sua felicidade.
Ao mesmo tempo fui tomando nota, com algumas reservas, das mensagens
solidárias de dirigentes africanos. Quase todos chamavam Obama de
"nosso irmão". E pensei: estarão todos esses dirigentes sendo sinceros?
Será Barack Obama familiar de tanta gente politicamente tão diversa?
Tenho dúvidas. Na pressa de ver preconceitos somente nos outros, não
somos capazes de ver os nossos próprios racismos e xenofobias. Na
pressa de condenar o Ocidente, esquecemo-nos de aceitar as lições que
nos chegam desse outro lado do mundo.

Foi então que
me chegou às mãos um texto de um escritor camaronês, Patrice Nganang,
intitulado: " E se Obama fosse camaronês?". As questões que o meu
colega dos Camarões levantava sugeriram-me perguntas diversas,
formuladas agora em redor da seguinte hipótese: e se Obama fosse
africano e concorresse à presidência num país africano? São estas
perguntas que gostaria de explorar neste texto.

E se Obama fosse africano e candidato a uma presidência africana?

1.
Se Obama fosse africano, um seu concorrente (um qualquer George Bush
das Áfricas) inventaria mudanças na Constituição para prolongar o seu
mandato para além do previsto. E o nosso Obama teria que esperar mais
uns anos para voltar a candidatar-se. A espera poderia ser longa, se
tomarmos em conta a permanência de um mesmo presidente no poder em
África. Uns 41 anos no Gabão, 39 na Líbia, 28 no Zimbabwe, 28 na Guiné
Equatorial, 28 em Angola, 27 no Egipto, 26 nos Camarões. E por aí fora,
perfazendo uma quinzena de presidentes que governam há mais de 20 anos
consecutivos no continente. Mugabe terá 90 anos quando terminar o
mandato para o qual se impôs acima do veredicto popular.

2.
Se Obama fosse africano, o mais provável era que, sendo um candidato do
partido da oposição, não teria espaço para fazer campanha. Far-Ihe-iam
como, por exemplo, no Zimbabwe ou nos Camarões: seria agredido
fisicamente, seria preso consecutivamente, ser-Ihe-ia retirado o
passaporte. Os Bushs de África não toleram opositores, não toleram a
democracia.

3. Se Obama fosse africano, não seria
sequer elegível em grande parte dos países porque as elites no poder
inventaram leis restritivas que fecham as portas da presidência a
filhos de estrangeiros e a descendentes de imigrantes. O nacionalista
zambiano Kenneth Kaunda está sendo questionado, no seu próprio país,
como filho de malawianos. Convenientemente "descobriram" que o homem
que conduziu a Zâmbia à independência e governou por mais de 25 anos
era, afinal, filho de malawianos e durante todo esse tempo tinha
governado ‘ilegalmente". Preso por alegadas intenções golpistas, o
nosso Kenneth Kaunda (que dá nome a uma das mais nobres avenidas de
Maputo) será interdito de fazer política e assim, o regime vigente, se
verá livre de um opositor.

4. Sejamos claros: Obama
é negro nos Estados Unidos. Em África ele é mulato. Se Obama fosse
africano, veria a sua raça atirada contra o seu próprio rosto. Não que
a cor da pele fosse importante para os povos que esperam ver nos seus
líderes competência e trabalho sério. Mas as elites predadoras fariam
campanha contra alguém que designariam por um "não autêntico africano".
O mesmo irmão negro que hoje é saudado como novo Presidente americano
seria vilipendiado em casa como sendo representante dos "outros", dos
de outra raça, de outra bandeira (ou de nenhuma bandeira?).

5.
Se fosse africano, o nosso "irmão" teria que dar muita explicação aos
moralistas de serviço quando pensasse em incluir no discurso de
agradecimento o apoio que recebeu dos homossexuais. Pecado mortal para
os advogados da chamada "pureza africana". Para estes moralistas –
tantas vezes no poder, tantas vezes com poder – a homossexualidade é um
inaceitável vício mortal que é exterior a África e aos africanos.

6.
Se ganhasse as eleições, Obama teria provavelmente que sentar-se à mesa
de negociações e partilhar o poder com o derrotado, num processo
negocial degradante que mostra que, em certos países africanos, o
perdedor pode negociar aquilo que parece sagrado – a vontade do povo
expressa nos votos. Nesta altura, estaria Barack Obama sentado numa
mesa com um qualquer Bush em infinitas rondas negociais com mediadores
africanos que nos ensinam que nos devemos contentar com as migalhas dos
processos eleitorais que não correm a favor dos ditadores.

Inconclusivas conclusões

Fique
claro: existem excepções neste quadro generalista. Sabemos todos de que
excepções estamos falando e nós mesmos moçambicanos, fomos capazes de
construir uma dessas condições à parte.

Fique
igualmente claro: todos estes entraves a um Obama africano não seriam
impostos pelo povo, mas pelos donos do poder, por elites que fazem da
governação fonte de enriquecimento sem escrúpulos.

A
verdade é que Obama não é africano. A verdade é que os africanos – as
pessoas simples e os trabalhadores anónimos – festejaram com toda a
alma a vitória americana de Obama. Mas não creio que os ditadores e
corruptos de África tenham o direito de se fazerem convidados para esta
festa.

Porque a alegria que milhões de africanos
experimentaram no dia 5 de Novembro nascia de eles investirem em Obama
exactamente o oposto daquilo que conheciam da sua experiência com os
seus próprios dirigentes. Por muito que nos custe admitir, apenas uma
minoria de estados africanos conhecem ou conheceram dirigentes
preocupados com o bem público.

No mesmo dia em que
Obama confirmava a condição de vencedor, os noticiários internacionais
abarrotavam de notícias terríveis sobre África. No mesmo dia da vitória
da maioria norte-americana, África continuava sendo derrotada por
guerras, má gestão, ambição desmesurada de políticos gananciosos.
Depois de terem morto a democracia, esses políticos estão matando a
própria política. Resta a guerra, em alguns casos. Outros, a
desistência e o cinismo.

Só há um modo verdadeiro de celebrar Obama
nos países africanos: é lutar para que mais bandeiras de esperança
possam nascer aqui, no nosso continente. É lutar para que Obamas
africanos possam também vencer. E nós, africanos de todas as etnias e
raças, vencermos com esses Obamas e celebrarmos em nossa casa aquilo
que agora festejamos em casa alheia.

Mia Couto (escritor Moçambicano)

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