Aldeia Nagô
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Ecos do porão por Emiliano José

4 - 6 minutos de leituraModo Leitura

Quem
desembarcasse no Brasil nos últimos dias e não soubesse nada de nossa história,
certamente começaria a assimilar a idéia de que não houve ditadura. Que ela não
matou, não seqüestrou, não torturou barbaramente homens, mulheres, crianças,
religiosos, religiosas. Que não empalou pessoas, que não fez desaparecer seres
humanos, que não cortou cabeças, que não queimou corpos. Que não cultivou o pau
de arara, o choque elétrico, o afogamento, a cadeira do dragão, que não
patrocinou monstros como Carlos Alberto Brilhante Ustra ou Sérgio Paranhos
Fleury.





Vídeo:
Trailer do filme "Cidadão Boilensen", um registro da associação
corrupta entre grupos empresariais e a Operação Bandeirante, entre o aparato
repressivo e as finanças, entre a ditadura militar e o grande negócio no
Brasil.

Fico pensando no que foi o nazismo. No Tribunal de Nuremberg. Na justiça que se
procurou fazer diante daquele genocídio. Julgou-se os assassinos, e ponto. Não
os que a ele resistiram. E só o faço como alusão à situação brasileira.

Fico pensando na decisão argentina de abrir todos os arquivos confidenciais das
Forças Armadas referentes ao período da ditadura militar, ocorrida entre
1976-1983. Essa abertura foi feita para subsidiar a apuração de violações aos
direitos humanos durante aquele período.

E penso novamente no Brasil, no barulho que se está fazendo diante da
possibilidade da criação da Comissão Nacional da Verdade, que já aconteceu na
maioria dos países da América Latina que viveram também a tenebrosa experiência
de ditaduras. Nesses países encara-se com naturalidade que criminosos,
torturadores, assassinos sejam julgados, e muitos deles foram julgados,
condenados e presos.

Quem desembarcasse no Brasil nos últimos dias e não soubesse nada de nossa
história, certamente começaria a assimilar a idéia de que não houve ditadura.
Que ela não matou, não seqüestrou, não torturou barbaramente homens, mulheres,
crianças, religiosos, religiosas. Que não empalou pessoas, que não fez
desaparecer seres humanos, que não cortou cabeças, que não queimou corpos. Que
não cultivou o pau de arara, o choque elétrico, o afogamento, a cadeira do
dragão, que não patrocinou monstros como Carlos Alberto Brilhante Ustra ou
Sérgio Paranhos Fleury, este morto, o primeiro ainda exibindo sua arrogância,
cinismo e ainda certeza da impunidade.

De repente, se não insistirmos na luta para afirmar a verdade da história,
gente do nosso povo pode até acreditar na versão que querem passar de que houve
apenas uma luta entre um regime legal e os que a ele se opunham.

É falso, mentiroso dizer que a Comissão Nacional da Verdade que se pretende
implantar queira eliminar a Lei de Anistia. Ela pretende, se instalada, apurar
todas as violações de direitos humanos ocorridas no âmbito da repressão
política durante os 21 anos de ditadura.

É a forma de legalmente desencadear o processo histórico, político, ético,
criminal, como disse o ministro Vannuchi, de todos os episódios de tortura,
assassinatos e desaparecimentos de opositores políticos registrados naquele
período.

O que se sustenta, aqui e em todo o mundo democrático, é que a tortura é crime
imprescritível, e que esse crime não pode permanecer impune. Não é à toa que o
ex-ditador Pinochet, um assassino, foi detido em Londres e depois julgado em
seu país.

Não se queira fazer acreditar que a Comissão Nacional da Verdade pretenda
desmoralizar as Forças Armadas. Ao contrário. Pretende-se que quaisquer que
sejam os cidadãos que tenham cometido o crime da tortura ou que tenham
assassinado pessoas por razões políticas ou tenham feito com que desaparecessem
sejam julgados por seus crimes de lesa-humanidade.

E julgamento é atribuição do Judiciário, com sua soberania e com os ritos
próprios da democracia. Diz-se isso para que se diferencie dos mais de 20 anos
da ditadura, onde não havia qualquer legalidade. Muitos dos nossos companheiros
não chegaram a ser julgados: foram mortos de forma covarde, insista-se na
palavra, covarde, na tortura brutal, cruel, e os registros históricos são
vastíssimos. Não cabem neste artigo.

Assistam o filme Cidadão Boilensen. É interessante como registro da associação
corrupta entre grupos empresariais e a Operação Bandeirante, entre o aparato
repressivo e as finanças, entre a ditadura e o grande negócio. Puro banditismo,
acobertado pelo silêncio imposto à época. E para compreender, também, parte,
apenas parte, da impressionante crueldade desse aparato.

Não sei como se movimentará a sociedade brasileira nesse caso. Sei que mais de
10 mil cidadãos assinaram um manifesto, inclusive eu, defendendo que os
envolvidos em crimes de tortura em nome do Estado brasileiro devem ser julgados
e punidos pelos seus atos.

Estamos defendendo a civilização, a humanidade, a democracia. Não dá para
acobertar crimes como o da tortura ou assassinatos e desaparecimentos de
opositores políticos. Esta é a posição de quem não esquece o terrorismo da
ditadura. A posição de quem defende intransigentemente a democracia. E que
grita: ditadura, nunca mais!

*Jornalista, escritor, deputado federal (PT/BA)

Artigo publicado originalmente no www.cartamaior.com.br

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