A narrativa corporativa e publicitária sobre as tecnologias da informação sempre foi a da “estrada para o futuro”, uma estrada que supostamente nos conduzirá ao paraíso da comodidade, no qual todo conhecimento que necessitarmos estará ao alcance de um clique ou de um toque na tela.
Mas a série britânica Black Mirror (2011- ) vai na contra mão: sem ser tecnofóbica, mostra futuros próximos, mas estranhamente atuais, onde paradoxalmente a tecnologia evoluiu tanto que atingiu um ponto de inutilidade e disfuncionalidade. Os seis episódios da terceira temporada de 2016 mostram o “vanish point” de gadgets como mídias sociais, realidade aumentada, dispositivos móveis e games: o ponto de viragem tecnológico no qual a racionalidade se converteu em mal estar psíquico, crime, ódio e anomia. A expansão das redes de informação foi muita mais rápida que a produção de conteúdo (conhecimento). E a lacuna foi preenchida por espelhos sombrios de nós mesmos.
A série britânica Black Mirror é certamente a produção mais relevante da atualidade. Relevante porque é estranha: o tom da narrativa de cada episódio é incerto e desconcerta o espectador. A princípio é uma série de ficção científica. Mas não vemos civilizações interestelares, cenários pós-apocalípticos ou astronautas e cientistas em complicadas missões tentando salvar o dia, o planeta, a galáxia.
Lembra de início as atmosferas da clássica série Além da Imaginação, só que mordazmente engraçada, com uma inteligência peculiar que muitas vezes resvala no humor negro.
Diferente do clássico gênero sci-fi sobre mundos distantes no tempo, cada episódio retrata um futuro próximo transformado pelas tecnologias da informação. Cada vez que assistimos à série, temos sempre essa pergunta mente: já estamos vivendo no mundo de alguns desses episódios?
Black Mirror parece com o nosso mundo aqui e agora – só que apenas um pouco pior. Por isso a série é erroneamente descrita como “distópica”. Qualificar
Black Mirror dessa maneira é dizer que ela fala de futuros negativos. Pelo contrário, a série fala sobre o nosso presente sob uma perspectiva estranha: a perspectiva da
hipo-utopia – as tecnologias da informação não criam futuros, mas apenas desdobramentos sobre elas mesmas. Extrapolam de forma hiperbólica condições dadas no presente – sobre esse conceito
clique aqui.
Se pensarmos que os computadores atuais são tecnologias com a mesma arquitetura concebida nos anos 1940 (memória, processador, periféricos, interface etc.), apenas que cada um desses componentes se desdobraram sobre si mesmos em performance, velocidade e capacidade de armazenamento, compreenderemos a proposta de Black Mirror.
Tecnologia como espelho
Os seis episódios da terceira temporada confirmaram esse insight hipo-utópico sobre as tecnologias – a evolução tecnológica não produz distopias sobre Estados autoritários ou máquinas sencientes que se revoltam contra seus criadores, mas mal estar psíquico, anomia, crime, chantagem e ódio. A tecnologia como espelho que reflete as mazelas humanas.
Olhar de
Black Mirror parece sempre buscar na evolução das tecnologias de informação um
vanish point, o ponto de inversão ou entropia de todos os sistemas – aquilo que uma vez o pensador francês Jean Baudrillard chamou de “hipertelia” (de “hiper”, sobre, além, fora das medidas, e “telos”, de resultado final, conclusão): um certo ponto no desenvolvimento que, sendo ultrapassado, torna as tecnologias totalmente disfuncionais. Nesses momento, os efeitos tornam-se “malignos”, perversos e crimenógenos – sobre esse conceito
clique aqui.
Esse ponto de viragem parece aquilo que busca entender cada um dos episódios dessa terceira temporada.
Redes sociais e games: totalitarismo e inconsciente
O tema do primeiro episódio “Nosedive” é bem familiar para nós aqui no presente: acompanhamos uma mulher chamada Lacie que neuroticamente monitora como está sua avaliação nas redes sociais. Uma sociedade na qual os ratings de mídia social têm uma influência totalitária.
Se na atualidade o nosso círculo de amizades em redes sociais se limita a verificar o número de “likes” a cada coisa que postamos, em “Nosedive” a expansão das mídias sociais chegou ao vanish point no qual as amizades se converteram em controle social: cada pessoa luta para aumentar o seu score nas mídias sociais. Não temos mais “likes” mas avaliações que uma pessoa faz do comportamento das outras no dia-a-dia no trabalho e lazer. Um encontro no elevador pode ser uma oportunidade de subir ou cair a nota. Por isso, todos são representam a si mesmas para os demais, na esperança de agradar e a nota subir.
Que a vida social consiste em papéis sociais performados por máscaras públicas, todos nós sabemos. Mas as mídias sociais levam isso ao paroxismo. Da utopia da inteligência coletiva, a Internet acabou criando o mundo solipsista de “likes” e expurgo de tudo que é dissonante para um círculo fechado de amizades.
Porém, Black Mirror extrapola para a sociedade como um todo por meios dos dispositivos móveis: alugar um carro, tomar um avião no aeroporto ou participar de uma simples festa de casamento vai depender do seu score nas mídias sociais – o quanto você agrada ou não as pessoas ao redor.
Totalitarismo light, soft, em tons pastéis. Qual o ponto de viragem aqui? O solipsismo tecnológico da atualidade (o chamado “efeito-bolha) converte-se em totalitarismo capilarizado pelos smartphones.
O segundo episódio “Playtest” aborda o universo imersivo dos games atuais/futuros. Um turista americano com problemas financeiros para poder voltar à casa da sua mãe nos EUA aceita um trabalho em que testará um novo e revolucionário game. Um jogo que explora a interface neuronal/eletrônica que se mostrará perigosa ao apagar as fronteiras entre o jogo e a realidade.
Mais uma vez temos o vanish point da hipertelia: a atual obsessão pela melhoria da resolução imersiva nos games poderá chegar perigosamente no momento em que o jogo aprenderá com o próprio material inconsciente do jogador. Dessa vez não mais se trata de apagar as fronteiras entre jogo e realidade, mas entre jogo e inconsciente. Os pesadelos e fantasmas do inconsciente absorvem o próprio jogo, transformando-o num contínuo pesadelo sem ter por onde sairmos.
O appeal criminal das tecnologias
“Shut Up and Dance” temos a hipertelia elevada a um outro nível: o criminal. Quando o jovem Kenny cai em uma armadilha on line (através da web cam do laptop, um site pornô o filma se masturbando) ele é chantageado e obrigado a participar de um plano criminoso, auxiliado por outras pessoas que também estão sendo chantageadas on line.
A conclusão do episódio é alarmante: como os nossos pequenos pecados praticados em uma mídia que constantemente confunde o público com o privado, podem ser armadilhas armadas por uma vasta rede de crimes e chantagens em um futuro próximo.
Novamente, o ponto de viragem tecnológico: das esperanças da Internet produzir a “inteligência coletiva” (propagada por pesquisadores como o francês Pierre Levy), sua expansão tecnológica muito maior do que a expansão de conteúdo, criou uma imensa lacuna ocupada por todas mazelas humanas: ódio, perversões, crimes etc. A tecnologia expandida ao ponto de inutilidade e disfuncionalidade.
Parece que a sombria profecia de escritores libertinos do século XVIII (como Marquês de Sade), de que um dia as perversões privadas se converteriam em virtudes públicas, foi realizada com um quê a mais: o crime.
O pós-morte: a festa que nunca termina
“San Junipero” é o mais, por assim dizer, “agridoce” episódio. Estamos em uma pequena cidade no ano de 1987 (a reconstituição musical, moda, estilo e comportamental é primorosa). Uma tímida garota e outra extrovertida e festeira se encontram na balada. Um par improvável mas que construirão uma sólida amizade que desafiara as leis do tempo e do espaço.
Sem querer criar um spoiler, o tema desse episódio são as correlações entre a morte e tecnologia em um viés bem tecnognóstico: mundos virtuais que poderão se tornar as nossas últimas moradas. O céu não mais religioso, místico ou etérico, mas o céu construído por terabytes no qual nosso espírito fará o upload final para a vida eterna.
O ponto de viragem tecnológico é o momento no qual a racionalidade se converte em misticismo. A razão não mais comandará o progresso tecnológico, mas o mítico desejo da imortalidade. Uma imortalidade como uma espécie de sonho lúcido resultante da somatória das nossas referencias culturais-midiáticas – algo parecido com Vanilla Sky, 2001.
Esse é o episódio mais enganador da terceira temporada: por trás de uma emocionante narrativa de amor e amizade, esconde-se algo sinistro – a Razão que abandona a utopia do conhecimento e a espiritualidade que abandona qualquer pretensão transcendente. Quando Razão e Espiritualidade desaparecem, surge o niilismo e solipsismo: a vida pós-morte como uma festa que nunca termina.
O mapa substitui o território
“Men Against Fire” talvez seja o episódio mais próximo de uma distopia clássica: em um futuro totalitário, soldados têm a missão de perseguir e matar perigosos seres mutantes que apavoram uma comunidade. Chamados de “baratas”, são humanos cujo DNA defeituoso o transformou em assustadores seres que podem infectar a todos. Por isso devem ser caçados até o extermínio completo.
O episódio lida com outra tecnologia já presente entre nós: a realidade aumentada – união tecnológica entre o real e o virtual através de gadgets atuais como, por exemplo, o Google Glass ou games no smartphone como Pokémon Go. Nesse episódio, a realidade virtual é produzida por meio de implantes neuronais.
Outro vanish point de Black Mirror: as “máscaras”, como é referida a realidade aumentada no episódio, são tão efetivas e realistas que substituem a percepção real – visão, olfato etc. O mapa substitui o território, o simulacro conquista a realidade criando inimigos virtuais para estimular os soldados a puxar o gatilho das armas. E criar um mundo irreal privado em tons pastéis como prêmio pelos serviços militares prestados.
Julgamento e Castigo
O último episódio “Hated in Nation” é sem dúvida uma conclusão para a terceira temporada: julgamento e castigo por todos os pecados tecnológicos dos protagonistas dos episódios anteriores.
Como sempre em um futuro próximo, uma detetive da polícia londrina e sua aprendiz investigam uma série de mortes que conduz a um sinistro link com as mídias sociais. Em comum, todas as vítimas foram vítimas do ódio em redes sociais: alguém está criando um ranking das pessoas mais odiadas na nação, em uma game chamado “Jogo das Consequências”.
Uma jornalista que ofendeu um cadeirante ativista e um rapper que ridicularizou o vídeo de um fã na Internet são alvos de ódio nas redes sociais, culminando com estranhas e agônicas mortes.
Aqui o leitor perceberá a retomada do tema latente em toda a terceira temporada: as tecnologias de informação se expandem, convertem-se em poderosas redes que integram o cotidiano e nossas vidas privadas. Mas o conteúdo (conhecimento, “inteligência coletiva” etc.) dessas redes não se expandem com a mesma velocidade. Por isso, a lacuna será sempre ocupada com o pior da natureza humana: ódio, crimes, solipsismo, niilismo.