Entre a Constituição e o sangue. Por Paulo Moreira Leite
Há um ano, questionava-se o abuso de prisões preventivas na Lava Jato – contra empresários, doleiros, operadores, lobistas. Em várias ocasiões, vozes respeitadas dos meios jurídicos chegaram a falar em tortura.
Refletindo um questionamento que ganhou aliados importantes e respeitáveis nos meios jurídicos de lá para cá, em outubro de 2015, o juiz João Batista Gonçalves, da 6a. Vara de Justiça Federal de São Paulo, fez uma condenação enfática das prisões preventivas:
“Que diferença tem a tortura de alguém que ia para o pau de arara para fazer confissões e a tortura de alguém que é preso e só é solto com uma tornozeleira, depois que aceita a delação premiada?”
“Como pode o juiz recolher alguém no cárcere, forçá-lo a fazer a cooperação premiada que depois ele vai julgar. Com que serenidade?”
“Acho que( a delação) deve ser um instrumento à disposição dos imputados. Ela não pode ser extorquida, não pode ser obtida mediante coação, mediante violência.”
O magistrado ainda acrescentou um episódio recente, que ocorrido num seminário de magistrados, que ajuda a entender o que se passa no Judiciário:
“Daí os mais antigos (juízes, presentes a um seminário, que o ouviram falar que a delação não era mero instrumento de condenação) riram e falaram: ‘não, a juventude quer sangue’. O mesmo sangue que se queria no Coliseu. O mesmo sangue que se queria quando um romano enfrentava um leão.”
Gonçalves não é uma voz qualquer. Após o desmembramento da Lava Jato, coube-lhe assumir, pelas regras do Juiz Natural, garantia democratica presente em todas as constituições brasileiras desde a de 1824 — a exceção é a polaca do Estado Novo — coube-lhe a tarefa de julgar os casos ocorridos em sua jurisdição.
Na quarta-feira da semana passada, Delcídio do Amaral, senador eleito em 2010 com 826 000 votos, foi colocado na prisão por tempo indeterminado. No mesmo dia, à noite, seus colegas do Senado tiveram a oportunidade de retirar Delcídio da cadeia, permitindo que, mesmo enfrentando acusações vergonhosas e incriminadoras, que devem ser investigadas em todos os seus aspectos, pudesse defender-se em liberdade.
Nada mais fariam do que assumir o papel de defender a Constituição – obrigação elementar pela condição parlamentar – que diz no artigo 53, parágrafo segundo, que os membros do Congresso “não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável.”
O curioso é que, caso o Senado resolvesse tirar Delcídio da cadeia, não seria a primeira vez que um parlamentar aprisionado é defendido por seus pares.
Durante a sessão extraordinária na qual cinco ministros da Segunda Turma do Supremo transformaram a prisão preventiva de Delcídio numa medida coletiva, impedindo que Teori Zavascki ficasse solidário em sua decisão, o decano Celso Mello recordou um antecedente muito instrutivo. Lembrou o sucedido com um deputado do Maranhão, que saiu de um avião para a cadeia. O motivo: ele havia cometido um crime inafiançável e imprescritível durante o voo, ao ofender uma passageira com termos racistas. Era um caso claro, cristalino, para justificar que fosse mantido na prisão. Não havia nada para se discutir. O destino do deputado foi resolvido pela Câmara.
O parlamentar foi solto, recordou Celso Mello.
A decisão anterior, da Câmara, confirmou – de modo flagrante – o desprezo de nossos poderes de Estado para garantir o respeito à legislação que defende os mais humildes, começar pelos brasileiros negros.
Já o massacre de 59 votos a 13 no Senado mostrou outra situação. Deixou claro que é fácil agradar aos poderes engajados no combate seletivo ao governo Dilma, na herança da liderança de Luiz Inácio Lula da Silva e do Partido dos Trabalhadores, que inclui a captura e condenação de aliados do bloco que governou o país a partir de 2003, inclusive altos empresários.
Acrescente-se também que estamos falando de um plenário que convive com um seguinte placar judicial: entre os 81 senadores, 28 tem problemas com os tribunais.
Nas eleições de 2014, mais quatro investigados engrossaram o lote.
Não é, portanto, difícil entender a motivação real para os discursos gaguejantes de senadores experimentados, e até ex-ministros, que foram ao microfone para ajudar no massacre. Após uma década de escândalos midiáticos, a população mudou de agenda, descobre-se pelo DataFolha, hoje. Pela primeira vez na história, o item “corrupção” ocupa o primeiro lugar na lista de principais problemas nacionais. Mais do que o emprego, a inflação, a educação e a saúde.
O massacre também permite uma constatação preocupante no plano das ideias, sensibilidades e comportamentos.
O senado mostrou que uma parcela de brasileiros começa a aceitar a noção de que o combate necessário à corrupção e aos corruptos ganha prioridade em relação aos direitos democráticos.
Ao justificar o pedido de prisão de Delcídio, o PGR Rodrigo Janot sustenta os argumentos a respeito. Sua base é a conjuntura política.
Alega que há 27 anos, quando a Constituição estabeleceu a mais ampla plataforma de direitos democráticos de nossa história, “fazia sentido, na alvorada da Nova República, conferir proteção constitucional extremamente densa aos congressistas, pois o risco de retorno ao regime autoritário era ainda presente. ” Nos dias de hoje, um quarto de século depois, prossegue o PGR, “com a consolidação da normalidade democrática”, o risco de “abrir hiato de impunidade e criar casta hiperprivilegiada sobrepujou largamente o risco de retorno ao regime autoritário.”
Então fica combinado.
Já que o PGR está convencido de que o retorno “ao regime autoritário” deixou de ser um risco ainda presente”, vamos aceitar uma proposição fundamental: no Brasil de 2015, a prioridade às garantias democráticas deve diminuir para dar passagem à caravana do combate à roubalheira. Será mesmo?
Em primeiro lugar, é preciso esclarecer o que vem a ser “casta hiperprivilegiada.” Também sou a favor de combater a “casta hiperprivilegiada” que domina a história brasileira desde que as caravelas de Pedro Alvares Cabral apareceram ao mar da Bahia.
Ela vive num universo de privilégio absoluto. Enquanto a maioria paga impostos injustos, a “casta” não paga tributos sobre lucros e dividendos, e, mesmo representando 0,05% da população, possui 12% do PIB, conforme mostram dados oficiais, da Receita Federal. Domina os meios de comunicação e, mesmo derrotada pelo corajoso projeto de Direito de Resposta do senador Roberto Requião, aprovado pelo Congresso e referendado pela presidente da República, procura caminhos para impedir que saia do papel para a vida real.
Nesse ambiente seletivo do ponto de vista político, o que se assiste no país de hoje é uma caça a lideranças do Partido dos Trabalhadores e aliados do governo Lula-Dilma, inclusive grandes empresários que deram sustentação a um projeto de criação de um mercado de consumo de massas.
E é só – lamento dizer.
A “casta” continua operando nos bastidores, mantém interesses intocados, trabalhando para criar a oportunidade mais adequada para virar de vez uma situação que se tornou insustentável, em larga medida, por sua própria atuação.
Ao recusar um apoio efetivo a Dilma no segundo mandato, quando o governo instalou até um ministro da Fazenda que tem direito a confiança absoluta da parcela socialmente mais reacionária do empresariado, a “casta” deixou claro que a pressa política tem prioridade sobre dificuldades econômicas, que são reais mas sempre exageradas para manter o caldeirão da crise em altas temperaturas
A experiência demonstra que é pura ingenuidade imaginar que os valores que “faziam sentido na alvorada da Nova República” deixaram de ser indispensáveis no país de hoje.
Ao contrário do que escreve Janot, é justamente em 2015, quando a democracia brasileira passa por sua mais difícil prova da verdade, que a Constituição deve ser respeitada em seus valores e fundamentos.
Após a quarta vitória eleitoral de Lula-Dilma, o país foi colocado, pela primeira vez em décadas, numa situação de conflito político aberto, entre forças que, através de filtros, mediações e distorções variadas, representam interesses e pontos de vista de classe. É um momento histórico, que inclui situações difíceis e politicamente incertos – como se vê hoje.
Nessas horas emergem conspirações que articulam movimentos sociais, grandes financistas e lideranças políticas inconformadas, que abandonaram todo e qualquer escrúpulo democrático para tentar recuperar o poder de Estado de qualquer maneira.
Ensaiam, agora, um repetição da opção que foi feita por seus antepassados políticos em 1964, que preferiram abandonar os princípios da carta de 1946 para não enfrentar um calendário eleitoral – e uma derrota mais do que provável – em 1965.
É justamente em situações como essa que uma democracia deve ser protegida e respeitada. Toda tentativa de reinterpretar a Constituição e mudar o sentido de suas garantias, deve começar pela pergunta: quem faz isso? Em nome de quem? Tem votos?
Apenas através de uma Constituição, os diversos interesses opostos e, muitas vezes, inconciliáveis, podem conviver em harmonia, divergência e até conflito – como é natural nas comunidades humanas.
Isso acontece porque um regime democrático não é uma pirâmide do Egito que, depois de erguida pelos escravos do Faraó, resiste solidamente há milhares de anos às invasões bárbaras e ao clima inclemente do deserto.
É uma arquitetura delicada, sempre em risco. Pode ser renovada, emendada, completada – por aqueles que expressam a soberania popular, categoria que exclui os procuradores, que exercem seu poder após prestar concurso público, sem passar pela deliberação do povo.
A constituição precisa acima de tudo ser defendida – justamente – das várias castas e de aventureiros que ameaçam seu funcionamento, sua transparência e seus valores, que nada tem a ver com sangue, o mesmo sangue que se queria quando um romano enfrentava um leão.”
Este é o ponto.
Artigo publicado originalmente em http://www.brasil247.com/pt/blog/paulomoreiraleite/207214/Entre-a-Constituição-e-o-sangue.htm