Aldeia Nagô
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Entrevista com Apolonio de Carvalho por Alexandre Fortes e Marieta de Moraes Ferreira

22 - 30 minutos de leituraModo Leitura

Antes que a anistia permitisse a volta dos exilados e expulsos
definitivamente do país sob a pressão do regime militar, na Europa
acompanhávamos, com muito carinho, o que se passava no Brasil pelos
meios possíveis.


Em 4 de março passado, realizamos uma entrevista com Apolonio de
Carvalho, para o Projeto de História Oral do PT, resultado de um
convênio estabelecido entre o Centro Sérgio Buarque de Holanda –
Documentação e
Memória Política, da Fundação Perseu Abramo, e o CPDOC da
Fundação Getulio Vargas.

O foco foi a participação de Apolonio na
fundação e construção do PT, e a realização da entrevista teve como pano
de fundo os primeiros sinais de uma crise de identidade petista, sob o
impacto da divisão e da derrota na eleição para a presidência da Câmara
dos Deputados. Nesse sentido, são particularmente relevantes as
reflexões de Apolonio – nosso filiado número um – sobre a trajetória do
partido e sobre a urgência do resgate dos valores e práticas presentes
em seu projeto original. Apolonio faleceu em 23 de setembro.

Quando o
senhor veio para o Brasil em 1979, como foi seu contato com as lideranças do movimento sindical do ABC, que estavam pensando na criação de um novo partido?

Antes que a anistia permitisse a volta dos exilados e expulsos definitivamente do país sob a pressão do regime militar, na Europa acompanhávamos, com muito carinho, o que se passava no Brasil
pelos meios possíveis. As correspondências das famílias e dos amigos
eram controladas. Os jornais no exterior não mencionavam muito o Brasil,
mas, de vez em quando, nós íamos à agência de viagens, onde havia sempre
jornais brasileiros, e procurávamos acompanhar os acontecimentos. Houve
um congresso de anistia em setembro de 1979, em Lisboa. Fui convidado
porque estava ligado aos comitês de anistia da França e de lugares
próximos.

Conheci os parlamentares do MDB, que seriam os primeiros
parlamentares do PT. Lá também tive contato com pessoas da esquerda
brasileira que estavam esparsas, expulsas do país, em outros
países da Europa. Conheci um pouco melhor a situação brasileira. Já nos
empenhávamos em acompanhar algumas coisas novas que vinham dos
movimentos operário, parlamentar e estudantil em resistência à ditadura.
Então, quando chegamos do exílio forçado, pois éramos banidos sob a
imposição de jamais voltarmos para o Brasil – era muito dura a ditadura
militar -, já tínhamos idéia do movimento sindical, dos grandes
sindicatos que procuravam criar forças novas para derrubar a ditadura.
Naturalmente, ao chegarmos, nos beneficiamos do que eram os efeitos
imediatos das grandes greves gerais do ABC paulista, que se tornava,
quase de um momento para o outro, a capital social do Brasil. Busquei
contato com os dirigentes dessas centrais sindicais, em particular com
Lula.
 
Como foi esse contato?

Um dia depois de uma
reunião, meu jovem companheiro, Sérgio Sister, um pintor muito querido
que vive em São Paulo, me disse: "Eu estou ligado com o Lula em São
Bernardo, se você quiser conhecê-lo…" Respondi que
gostaria
muito de conhecê-lo. Então ele ajeitou o encontro. Quando cheguei com o
Sister à sede do sindicato e conheci o Lula aberto, simples, tranqüilo,
já me senti envolto pela confiança irradiante desses dirigentes
sindicais que não conheciam absolutamente nada das teorias políticas,
das filosofias, mas estavam decididos a reunir forças sempre maiores
para a derrota da ditadura militar. Pouco a pouco fui acompanhando as
iniciativas que precederam a fundação do partido. Eram reuniões para debates do que seria o programa do novo partido, o que seria o novo do partido, porque havia uma pressão muito grande para que não se chamasse Partido dos Trabalhadores, mas Partido Popular. A Ação Popular, antiga
das lutas e guerrilhas, era uma força muito preciosa e presente
nessa pressão sobre o nome, uma vez que na realidade era muito mais
amplo – naturalmente, ao
nascer, o PT não era somente o partido dos
trabalhadores. As greves de 1978 e 1979 abririam a imensa cavarana
afluente desse canal nascente que eram as forças sociais e políticas
interessadas na derrota da ditadura, e havia desde a CNBB até uma boa
parte dos parlamentares do MDB, o movimento universitário, o mundo da
cultura, do jornalismo, do funcionalismo. Muitas áreas se conjugaram
para criar o partido que não era apenas dos trabalhadores; era, digamos,
dos cidadãos que, depois de vinte anos de ditadura militar, sonhavam com
liberdade, justiça social e correição.
 
Não passou por sua
cabeça fazer uma frente dentro do MDB, como muitas pessoas que adotaram
essa estratégia?

Claro, mas eu achava que era muito bom que tivéssemos
essa visão abrangente. Eu me baseava na própria história do Brasil e da
sociedade: nenhum partido político, nenhuma classe social chegou, até
hoje, ao poder
do Estado isoladamente. O problema das alianças políticas
em torno de um programa comum representa o eixo das lutas por
transformações sociais que marcam todos os séculos precedentes. Tinha
muito respeito por essa
capacidade nova, para mim que vinha do PC, que
sempre foi muito duro, ligado à sua condição de dono das verdades
definitivas, o sentimento e a arrogância típicos da Igreja.
 
O senhor foi à reunião de fevereiro de 1980 no Colégio Sion, quando
foi fundado o PT?

Eu já freqüentava reuniões do partido em São
Paulo. O PT é um pouco audacioso com seus dirigentes sindicais, ciosos
da sua capacidade de assumir iniciativas um pouco à margem daquilo que
seriam as concessões da
ditadura. Conheci Jacob Bittar, o número dois do
partido, nessa época. Fui a reuniões do Colégio Sion, o que me permitia
admirar mais profundamente a imagem, envelhecida aparentemente, mas tão
radiosa, jovem, tão cheia de vida da diretora que abrigava o empenho de
formação de um novo partido popular dentro do seu colégio,
tradicionalmente ligado às camadas sociais mais altas. Conheci .guras
muito bonitas, como Mário Pedrosa, Sérgio Buarque de Holanda…
 
Eles freqüentavam essas reuniões também?

Talvez não tão
assiduamente como eu, mas de vez em quando. Então passei a viver os
problemas da formação do PT, tendo conhecimento só em parte das realidades brasileiras que se discutiam, mas muito identificado com os objetivos: o final da ditadura militar e o início de um modelo novo de democracia, fora dos modelos viciados que conhecemos na era republicana. Esses são os primórdios da ligação com o PT. No centro havia o Lula, por
quem se tinha grande admiração, figura central na propaganda que se
fazia em torno do partido que nascia.
 
O senhor foi um
dos homenageados na fundação?

Homenageado não diretamente, era da
velha-guarda. Essa situação muito privilegiada, com ou sem méritos
especiais, em que os cabelos brancos sempre dão uma ajuda. Mário
Pedrosa, Sérgio Buarque, eu e outros
estávamos entre os primeiros na
deferência. Era interessante o respeito dos líderes sindicais à cultura,
à sabedoria. Isso mostrava também quanto o povo, por meio de suas forças
organizadas, traz, como estímulo e
sugestões de renovação da visão da
sociedade e da natureza, um colorido novo, sem os velhos tabus das
doutrinas anteriores, mas sob a influência das mais antigas utopias que
queriam uma sociedade nova e diferente. Dentro desse quadro, sou
incorporado ao PT, e René também estava comigo.
 
O senhor
participava de reuniões no Rio?

Até esse momento não. Depois passei a
participar do diretório regional do PT do Rio. Havia o deputado estadual
José Eudes, da AP. Trabalhamos na criação e para o fortalecimento do
partido no Rio. E, dentro dessa visão
de que a presença dos cabelos
brancos é necessária nos núcleos de direção, fui também convidado para
ser membro da direção nacional. Recebi uma homenagem muito especial, que
me deixou profundamente aturdido
pelas suas dimensões: passei a ser
membro da Comissão Executiva desse novo partido que nascia.
 
O senhor chegou também a ser vice-presidente?

Não só me deram a
missão de membro da executiva como também passei a ser terceiro e
segundo-vice. Claro que o primeiro era Jacob Bittar, isso era inalienável. Mas eu não me encantava, como nunca me encantei na vida com postos de direção. Nós nos demos – não é, René? – inteiramente ao trabalho de criação e formação do PT. Há algo a destacar, que é esquecido inclusive no interior do partido: seus núcleos de base, com a presença popular, o colorido das camadas sociais, níveis de consciência
e cultura e atuação quase dominadora na fase inicial do projeto. O PT
foi a mais bela forma e o mais belo modelo de democracia interna
partidária que já tinha existido nesse meio milênio de existência de
nosso país.

Primeiro, porque o PT estava se criando, não tinha
ainda um projeto político definido, como ainda hoje tem certas falhas no
seu projeto político. Segundo, porque vêm para o PT não somente as
forças dos trabalhadores em seus vários ramos, mas as forças populares,
a Igreja com as suas comunidades eclesiais, que já tinham certa margem
de discussão de programas que olhavam para o futuro. Por exemplo, qual
seria o tipo de regime político no futuro imediato e mediato?. Quais
seriam as relações com os partidos antigos ou partidos adjacentes?
Dentro desse colorido de influências, de níveis de cultura e de debate
interno, os núcleos populares foram de uma riqueza
extraordinária!
Eu era ligado à direção nacional, sujeito aos
seus apelos muito constantes. Nós vivíamos no Rio, mas constantemente eu
era chamado a São Paulo, onde às vezes .cava uma semana
discutindo...
 
Quais eram os grandes debates que a Comissão
Executiva travava?

Começamos por criar um projeto político, muito amplo
e sem definições mais precisas quanto às raízes e aos desdobramentos
futuros, mas profundamente democrático e apoiado em suas forças
populares. Naturalmente, com certas marcas e influências das faixas
populares. Porque a criação do PT é marcada por uma forte presença de
forças populares oriundas da CNBB e também das instituições mais
apressadas na busca dos
objetivos finais, o que nós chamávamos de
maneira muito conciliadora de "as tendências internass". E estas queriam
o socialismo não amanhã de manhã, mas até o meio-dia! (risos). De
maneira que os sindicalistas, um
pouco apavorados com isso, mas senhores
da sua força, se apoiavam também nas figuras que eram mais moderadas na
visão das realidades. Nesse quadro passamos a trabalhar com um projeto
político que tinha a visão longínqua do socialismo, mas ainda tímida – e
aí entravam o imenso poderio e a imensa influência do mundo
sindical predominante -, pois não se falava de socialismo. O PT, no seu
manifesto inicial, a 10 de fevereiro de 1980, chama a sonhar uma
sociedade sem explorados nem exploradores. Só em setembro ou outubro de
1981 é que o partido se anima a colocar dentro de sua visão e dos seus
horizontes a palavra socialismo. Mais de um ano e meio depois, pela pressão presente e contínua das organizações mais impregnadas da pressa humana, e justa, mas ainda de olhos fechados quanto às possibilidades
dessa realidade.
 
Em relação ainda às tendências há um
artigo seu de 1990, em Teoria e Debate, defendendo o desligamento de
algumas delas, que estavam na prática rompendo o pacto de convivência
interna no partido. Essa democracia interna partidária, que seria
traduzida na relação de diferentes grupos, visões, também trouxe algumas
tensões e debates dos quais o senhor participou muito
ativamente.
Nos anos 1978-1980, circulava um jornal de esquerda chamado
Em Tempo, muito sob influência de organizações mais apressadas quanto às
soluções finais. E, entre as entrevistas que fui convidado a dar para
esse jornal, falei do problema das tendências com uma confiança um pouco
exagerada no equilíbrio das sugestões das organizações mais apressadas.
Eu achava muito interessante porque levava em conta que o PT não tinha
raízes de visão profunda da realidade e de conhecimento das teorias
políticas e sociais. Pensava que esses setores, ligados a faixas
revolucionárias européias que discutiam muito os problemas de hoje e
amanhã, ajudariam no debate interno, estimulariam a reflexão sobre
doutrinas, problemas políticos, sociais e ideológicos, utopias etc.
Inicialmente defini essa perspectiva, que a vida não iria endossar
porque, em geral, essas instituições são bastante apressadas na visão de
seus horizontes. São também profundamente voltadas para a
tentativa de ganhar forças e impor sua visão de ritmo nas mudanças da
sociedade no interior dos partidos, interessados diretamente nessas
mudanças. Depois escrevi o artigo a que vocês se referem.
 
Uma
das organizações apontadas pelo senhor, em 1990, que está indo além dos
limites da democracia interna do PT é exatamente o PCBR, do qual o senhor tinha sido um dos fundadores...

Eu vi que as tendências não
apenas disputavam ardorosamente os postos de mando e de influência na
estrutura interna partidária como também passavam a disputar de maneira
aberta os postos de comando no poder do Estado. Isso ficou evidente, e
fui chamado a dar outra entrevista e lembrar o que me parecia justo, não
aceitar a intransigência e a intolerância, uma das heranças do velho e
querido – da época – PC. Achava que
devíamos olhar para os problemas,
preservar a identidade do PT e o caminho que ele tinha escolhido ao
nascer, marcado pela confiança no povo, pela busca de liberdade e pela
visão das realidades e das possibilidades reais
das mudanças sucessivas
correspondentes. Essas tendências se chocavam muito diretamente com o
ritmo previsto de mudanças, o grande problema era o tempo. Senti que o
choque era demasiado forte porque uma das tendências mais combativas na
época deixou de existir com o nome próprio porque daria nascimento a dois outros partidos políticos que estão hoje na arena
nacional. A Convergência Socialista era extremamente dura no julgamento
dos elementos que tinham a liderança maior no PT e cujos ritmos e
horizontes não coincidiam com os seus. Eu pedia que não houvesse a
expulsão da Convergência, mas que a convidassem a transformar-se
num partido. O PT, com sua influência já crescente, em 1987, devia
ajudar tanto quanto possível a criação de novos partidos e as
divergências seriam diluídas num quadro de alianças políticas, mas não
quebrando a identidade de um partido nascente que precisava ter uma
imagem mais precisa e mais unificada para dirigir seu povo e ganhar
força. Inclusive eu convidava o PCBR a também ser afastado, mas este
depois se fechou em maioria num partido sempre clandestino.

Quando o senhor foi para o exílio, sua militância estava vinculada
ao PCBR, mas quando retorna está afastado de qualquer organização
de esquerda mais definida.

Talvez melhor seria dizer "com boas
relações com outras organizações de esquerdaa", mas pedindo para que
elas sentissem esse problema. Os meus objetivos principais eram as
forças mais irreverentes, mais livres de
limites no julgamento das
lideranças do PT, a Convergência, a Causa Operária… Ambas se tornaram
partidos políticos depois.
 
A partir de 1985 a ditadura está
fora da arena política. O PT trazia em si a sua estrutura democrática
partidária, com sua visão de democracia, com a visão de que chegaria a
um modelo que não admitiria mais nem explorados
nem exploradores e pelo
socialismo. O PT sentia que o novo regime político, mesmo com todos os
vícios da democracia que a era republicana apresenta, era
respeitado...
 
Boa parte do PCBR que estava no exterior
pensava em voltar para discutir com os companheiros da nossa
organização. Inclusive o nosso filho René veio numa pequena delegação e
parou no Chile, em escala para chegar ao Brasil, e discutir com os
companheiros que queriam continuar a rebelião armada, quando havia uma
situação política diferente e era necessário olhar para ela. Como a
direção do PCBR, por maioria, não aceitava essas ponderações,
continuamos a estimular essa situação de rebeldia diante do nível de
consciência do povo e também um modelo de regime político que começava a
se instaurar com todas as deficiências que marcaram sempre a democracia
na era republicana. Deixamos o PCBR em 1979. Até então lutávamos pela
anistia. Voltamos em outubro de 1979, a anistia havia sido em agosto.
Muitos companheiros achavam que René e eu fazíamos a impulsão no caminho
do suicídio, achavam que não haveria condescendência da ditadura
em
relação aos banidos etc. De maneira que o PT tem a alegria de lembrar
que foi a pá de cal no regime militar com suas grandes greves do
ABC.

Na verdade o senhor foi um caso bem especial, porque as
lideranças tradicionais ligadas ao Partido Comunista, PCdoB, PCBR não
foram para o PT.

O velho PC foi profundamente cioso de suas "qualidades
excepcionaiss", dono das verdades definitivas, único entre os partidos
conhecedor da realidade, capaz de abrir caminho para outras instâncias e
para outros regimes… De maneira que olhou com desprezo em direção ao
PT. Desprezo pelas alianças, pela força dos demais partidos, a absoluta
condição de portador do presente e do futuro. Olhava-se o PT como uma
instituição
pequeno burguesa, no sentido pejorativo, incapaz de abrir
caminhos e, portanto, passageira.
 
Nas eleições de 1982
no Rio, diziam: "Vocês estão jogando votos fora, o PT não tem nenhuma
chance de se consolidar como um partidoo". Falava-se em "voto útill",
tínhamos de votar no PMDB, e o PT era visto como
divisionista e uma
aventura. Em 1982 o partido tinha de enfrentar as eleições. É verdade
que era muito verde ainda nas realidades, tinha boa capacidade de busca
do que devia ser justo, mas tinha um cabedal muito pequeno de cultura
política e teórica. Lembro-me que o Lula me perguntou: "Vou ser o
candidato ao governo de São Paulo, o que você acha, podemos ganhar??" Eu
disse: "Acho difícil, mas não é mal tentarr". Era para mim uma confissão
tirada sem dores, porque eu não tinha uma visão clara se seria bom ou
ruim. Em 1985 ganhamos duas prefeituras, Diadema e Fortaleza. Em 1982
ganhamos os primeiros deputados federais, além dos quatro que o MDB, na
sua decomposição, nos tinha dado de presente. Um partidozinho que já
começava com oito deputados federais tinha certa importância. Também
houve as eleições para as assembléias legislativas e câmaras
municipais.
 
Essa imagem profundamente democrática, um partido
integrado ao povo, assim o PT aparece e se torna um partido legal, em
fevereiro de 1980. Nós saímos do quadro de movimento social já com o
nome de partido que trazia consigo várias vozes convergentes e muito
sonoras, a voz dos comícios nas portas das fábricas, a dos campi nas
universidades, a das ruas nas grandes manifestações…
 
E a campanha das Diretas…

Como coroamento, em 1984, temos a campanha
das Diretas. São várias vozes e faltava, a partir de 1983, 1985, uma
outra voz, que seria efetivamente uma mudança de qualidade. Quando se
fala em nós da História, são momentos de estancamento do surto de
avanço. Quando se superam esses nós, temos o salto nodal. Seria
efetivamente a voz das ruas, as eleições. E com as eleições nós temos um
partido que está feliz porque deixa de ter as limitações clássicas do
movimento social – que, ao lado do que tem de bonito, de abrangente, de
profundamente social, é muito ligado às contingências, ao caráter
isolado de suas faixas de ação: mulheres,
negros, raças etc. Volta-se
para o poder de Estado, para as relações novas da sociedade com o
Estado. Esse é o grande salto nodal, que marca um avanço extraordinário,
que ele faz ainda um pouco tateando. Esse salto
terá profundas
repercussões na imagem original do PT, um partido profundamente democrático apoiado nas bases; porque as câmaras municipais, os
conselhos municipais, os governadores de estados, as assembléias
legislativas e a Câmara Federal roubam dos núcleos o que havia de mais
avançado, deixando os núcleos despovoados de suas lideranças. E o
partido não tem forças nem consciência da necessidade de formar quadros
novos, isto é, estabelecer as bases de uma formação política constante,
estabelecer debates políticos para ajudar seus militantes.

O partido tem, sobretudo, a visão das relações entre a sociedade e
o Estado. Só os partidos políticos podem unir forças sobre um
projeto político comum: transformar a sociedade. O movimento social não
pode de maneira nenhuma. Está subestimado na sua imensa credencial de
força mobilizadora, abrangente etc. Não basta olhar para as mudanças
da sociedade e agir por elas. Nós temos, a partir de 1982-1985, o
esvaziamento dos grupos populares, que são a marca definida e
excepcional do PT como partido político.
 
Nas primeiras
campanhas eleitorais o senhor, com uma experiência política de décadas,
participava?

Não, porque havia os problemas do partido e eu estava
profundamente preocupado, nesse momento, com o esvaziamento da base
popular do PT.
 
Mas já em 1982 existia isso?

Não. Em
1982 era apenas o rastilho inicial, mas, a partir de 1985, como há as
secretarias de cada deputado federal, estadual, esvazia-se o que há de mais mobilizador, as faixas de lideranças dos movimentos populares, e depois um certo pendor para as eleições contamina também nossas lideranças. Eu nunca quis ser candidato. Posso ter esporadicamente participado das campanhas eleitorais, mas muito pouco. Jamais quis ser candidato, como jamais quis ter qualquer posto de mando no partido.
Sempre me dei muito bem com o trabalho comum, de base, e com a pesquisa
da realidade. Sempre participei das lutas internas, dos conflitos, dos
debates, sempre com muita alegria, mas como um porta-voz de faixas da
militância, nada mais que isso.
 
Há relatos de
militantes do PT no Nordeste de que, nos primeiros anos, o senhor teve
um papel na organização do partido em alguns estados do Nordeste, do
Norte, por exemplo.

A um dado momento, eu estava ainda na Comissão
Executiva Nacional e, um pouco enfermo, pedi ao partido para renunciar
ao cargo porque não tinha condição física de cumprir meus trabalhos, mas
consegui da direção e
mais dois militantes muito aguerridos a
possibilidade de visitar as direções do PT em todo o país. E assim pude
verificar até que ponto decrescia a presença dos núcleos populares na
estrutura partidária. Até que ponto decresciam os debates políticos, as
conferências para discutir as questões gerais do país e do partido,
coisas que marcam o PT desde os seus primeiros dias e lhe dão um caráter
profundamente democrático.
Visitei o Rio Grande do Sul, parte de São
Paulo, Rio de Janeiro, o Nordeste, a Bahia, e verifiquei o vazio da base
popular do partido, o esvaziamento contínuo da faixa ocupada até então
pelos núcleos. Senti o quanto decrescia a viagem de democracia, de
modelo de partido baseado na democracia interna, para a imagem
do PT.
 
Viajei uns 16 dias. Eu participava também de certos
debates porque já estava preocupado com o caráter pouco construtivo da
luta interna partidária sob a influência de certas entidades.
Convergência Socialista e Causa Operária faziam parte e havia outras que
forçavam o desenvolvimento contínuo e em bases amplas e abrangentes de
massas populares sob a exigência de passos muito rápidos à
frente.
 
Essa característica de participação do PT na política
institucional se aprofundou muito, a ponto de chegarmos à Presidência da
República. Se por um lado é um momento histórico, por outro se agravaram
esses problemas.
 Como o partido faz para manter sua identidade original
e ao mesmo tempo avançar? Como o senhor vê o PT hoje?

Eu pediria
a vocês que aceitassem uma pequena pergunta: e agora? Estamos na mais
profunda crise que abalou as esquerdas nos últimos tempos e, em particular, afetou o PT. Apesar de toda a profundidade do PT, nós não soubemos abrir os olhos a tempo, para as raízes da crise e para seus efeitos. A crise é, ao mesmo tempo, um choque, uma surpresa, mas não é uma calamidade, não é nenhuma tragédia assustadora. Ao contrário, a vida se encarregou de mostrar que, menos de três semanas depois do seu desencadeamento, a 10 de fevereiro recente, era profundamente transitória
e praticamente ruiu em sua base inicial. Os grandes vencedores neste
fevereiro amargam uma derrota sombria. Isso significa que há uma
realidade nova. O
povo, com seu protesto, está começando a estabelecer
marcos sucessivos de presença na recusa a essa ousada projeção do
predomínio das mordomias, inclusive muito chocado com a parceria
Judiciário e nova presidência a Câmara.
Inclusive do que seria
o respeito ao Parlamento, porque houve a tentativa de que as mesas das
casas do Parlamento decidissem pela urgência do decreto de aumento de
salários sem passar pelo plenário. Não é apenas um desdém, mas um
insulto à democracia. Mas há, portanto, um mal-estar imenso no
Parlamento com a voracidade de certas faixas desse próprio Parlamento; e
nós tivemos um governo dividido, um PT dividido e, também, um Parlamento
dividido. Alcançando um nível de uma posição unitária no Senado devido a
uma visão marcada pelo espírito de ética, pelo respeito à democracia e
ao Parlamento em si. Mas há uma demonstração clara de divisão no
conjunto dos partidos políticos, no conjunto das casas do Parlamento,
sobretudo na primeira casa e, em particular, no PT.
 
Eu acho que
a divisão do PT é algo que marca sua trajetória desde o primeiro dia. Se
vocês relerem os cadernos da Editora Fundação Perseu Abramo, inclusive o
relato da sessão de fundação do PT, a 10 de fevereiro, do Perseu Abramo,
verão como o choque das tendências apressadas modificava a visão
original do PT e procurava se impor. De um lado a limitação das forças
interessadas nas mudanças para os trabalhadores; de
outro a pressa pela
profundidade das mudanças. Mas, ao mesmo tempo, ao lado desse mal-estar,
há também um bom contingente de cidadãos ciosos de democracia, de
realidade, de respeito ao outro. O Parlamento tem forças, está mostrando
agora, que não podem afetar a degenerescência da instituição e o
abandono do sentimento e do pensamento do povo. Devemos enaltecer, sem
cair na fantasia do otimismo barato – minha namorada insiste que sou um
otimista barato -, a imagem dos poderes. E, ao lado disso, as forças
vivas
também ciosas do povo, que estão dentro de cada partido político,
apesar de a degenerescência do troca-troca, de olhos fechados,
abominável nos últimos tempos, ter jogado muitos ciscos sobre a imagem
dos partidos
políticos.

Diante dos partidos políticos,
de uma faixa sensível do Parlamento, da presença abrangente de forças
interessadas em sentir a pressão popular em vias de desenvolvimento, é
preciso olhar sem receio de parecer demasiado otimista. Os níveis de
consciência popular se revelam através de manifestações próprias,
através do apoio e do estímulo às reações positivas dentro do
Parlamento, inclusive dentro do PT.
 
É preciso voltar a ter
confiança?

Não é só voltar a ter confiança, mas estimular a imagem
original do PT, corrigir as ausências que determinaram sua situação
secundária ultimamente, por meio dos debates políticos, da vida política
interna, de conferências políticas que abram as consciências para avivar
a alegria e o orgulho dos militantes do partido, que foi, ao nascer, o
mais democrático de nossa história. Tem tudo para ser de novo o que foi,
por meio de debate,
da formação política, da abrangência e do respeito
às alianças políticas, às instituições democráticas, a visão clara e
apaixonada dos direitos humanos, das liberdades civis, da presença
popular, no seu pensamento, nas suas propostas e na sua condução de
prática coletiva.
 
Voltar a essa imagem sadia, promisora e rica
do período original, dos primeiros anos, é um elemento extremamente
considerável porque o PT é o partido mais forte das esquerdas,
predominante do governo que eu chamaria de um governo plural. Vamos ter
um governo de coalizão, mais amplo, mais seguro, e, nessas condições,
poder olhar a confusão que começa a reinar nas parcerias, envolvendo
pedaços dos poderes. Desculpem, me senti nopalanque.
 
*Alexandre Fortes é professor-doutor do Departamento de História da
UFRJ e
coordenador do Centro Sérgio Buarque de Holanda, da Fundação
Perseu
Abramo
 
*Marieta de Moraes Ferreira é professora
do Departamento de História da
 UFRJ e pesquisadora do CPDOC-FGV

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