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Espinosa, o “mensalão” e o sistema político brasileiro por Vinícius dos Santos

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Espinosa

Não causa estranheza que, em nenhum momento desde que se denunciou o chamado “mensalão”, menos ainda durante o “julgamento” (que mais parece um linchamento de um partido e alguns de seus dirigentes), a grande mídia, os partidos de direita e demais setores economicamente hegemônicos no país tenham se pronunciado a favor de mudanças no sistema político-eleitoral

 

Mas nem antes o PT era um partido de anjos, nem depois virou um partido de demônios. Contudo, muitos tentaram (com maior, menor ou nenhum sucesso, isso não vem ao caso aqui) vender a ideia de que os malfeitos atribuídos ao PT eram obra e graça exclusiva de um suposto desvio de caráter de seus militantes, especialmente de seus dirigentes, sem qualquer relação com o modelo político vigente. Desse modo, seria possível contrapor à “raça petista moralmente deficiente”,  políticos “do bem”, aptos a administrar os interesses públicos de maneira íntegra, porque providos “de caráter”. Ora, o que se fazia, assim, era exatamente tentar vender aquela falsa ideia de que há governantes ideais, infalíveis e moralmente superiores. Como se a política pudesse não ser feita por pessoas de carne e osso, passíveis de erros e acertos. Buscava-se, assim, confundir, naquele sentido antidemocrático que Espinosa condenara, as virtudes ou os defeitos de um Estado com as virtudes ou defeitos pessoais de seus dirigentes. Visava-se, com isso, reforçar a percepção típica da política pós-moderna de que a avaliação do público dá-se pela régua do privado, tornando aquele dependente deste. A consequência mais grave da disseminação desse entendimento é a diluição da política substantiva na ética privada, a redução da democracia a uma competição personalista pela simpatia dos eleitores.

Naturalmente, isso não foi (nem é) feito sem interesses escusos por trás. Por isso, é preciso perguntar: a quem interessa essa privatização da política? Quem ganha com sua submissão à lógica do espetáculo, na qual quem pode vender melhor sua imagem como “homem de bem” torna-se potencial favorito a vencer eleições, administrar o Estado e a vida pública? A resposta não é difícil: justamente àqueles que, derrotados nas urnas, mas com mais recursos econômicos, e amparados por aparatos ideológicos para operar no “mercado político” e impor sua vontade, visam conservar à força seu poder através da dissolução paulatina da esfera pública. No limite, sacrificando a própria democracia.

Nesse sentido, não deve causar estranheza que, em nenhum momento desde que se denunciou o “mensalão”, menos ainda agora durante o “julgamento” (que mais parece um linchamento de um partido e de alguns de seus dirigentes), a grande mídia, os partidos de direita e demais setores economicamente hegemônicos no país tenham se pronunciado a favor de mudanças no sistema político-eleitoral brasileiro. Mudanças que, independentemente de afeições pessoais de A, B ou C, criassem um arcabouço institucional, hoje praticamente inexistente, cujos mecanismos impedissem (e não, como atualmente, favorecessem) os dirigentes “a agir de forma desleal ou contrária ao interesse geral”. Em vez disso, preferiu-se, pelos interesses nada republicanos destacados acima, particularizar as acusações de corrupção e, mesmo sem provas materiais, depositar o “mal” na conta de um partido – como se, aliás, qualquer desvio de conduta atribuído a um de seus militantes, mesmo que se tratando de qualquer um de seus dirigentes, pudesse macular a totalidade do partido e, mais ainda, desacreditar sua política.

No entanto, independentemente dos desdobramentos do caso do “mensalão”, é preciso chamar a atenção para o seguinte: um exame honesto de nosso sistema político deixa claro que os vícios da política nacional, a corrupção que permeia o tecido administrativo do Estado e sufoca os interesses populares em nome de interesses pessoais, são, primeiro, defeitos de nosso próprio sistema institucional. O misto entre presidencialismo e parlamentarismo criado pela Constituição de 1988, que pode fazer um presidente refém dos interesses particulares do Congresso; o financiamento privado das campanhas, que invariavelmente cobra contrapartidas dos favorecidos quando eleitos, independentemente do fato de tais contrapartidas ferirem o interesse público; a volatilidade da grande maioria dos partidos políticos, verdadeiras “legendas de aluguel”, desprovidas de programas político-ideológicos com mínima consistência, que existem apenas para barganhar cargos e orçamento no aparelho estatal; o personalismo decorrente desse modelo eleitoral e daquela concepção de política privatizante; tudo se entrelaça (não por acaso, diga-se de passagem) para favorecer a disseminação de práticas ilegais que estão longe de ser monopólio de um partido ou de algum governante – historicamente fazem parte do próprio modus operandi do Estado brasileiro – e contra o qual, com todas as dificuldades, é sempre bom lembrar, os governos Lula e Dilma foram os mais incisivos.

Assim, diante desse cenário, temos duas opções. Ou encaramos o problema de fundo e encampamos a luta por uma reforma política capaz de renovar (ou recriar) nossas instituições democráticas e permitir uma nova relação entre Estado e sociedade civil, inclusive no âmbito da máquina administrativa. Uma reforma política que se oriente no sentido de favorecer a ampliação do espaço e da lógica pública, em detrimento da lógica privada ainda hoje dominante, e crie mecanismos eficazes contra qualquer forma de sequestro privatizante da coisa pública. Ou ficaremos (nós, da esquerda, que almejamos outra política, outro Estado, outra sociedade) sempre assombrados pelos fantasmas dos vícios intrínsecos à política e ao Estado brasileiro. Por conseguinte, à mercê do discurso moralizante hegemônico (até aqui, felizmente, sem grandes impactos eleitorais em nível nacional), típico da classe média e de seus representantes preferenciais. Com efeito, não serão os partidos da direita, que se locupletam de tais vícios, ao mesmo tempo em que, desavergonhadamente acobertados pela grande mídia, podem se apresentar ao “mercado de eleitores” como “paladinos da ética”, que assumirão essa bandeira. É nossa tarefa, nossa responsabilidade, de todos os militantes de esquerda, do PT, dos movimentos sociais progressistas, “desprivatizar” radicalmente a política em todos os sentidos, e trazê-la finalmente para o domínio democrático do público.

Vinícius dos Santos é bacharel em Ciências Sociais, mestre e doutorando em Filosofia pela UFSCar, bolsista da Fapesp

Artigo publicado originalmente em http://www.teoriaedebate.org.br/materias/politica/espinosa-o-mensalao-e-o-sistema-politico-brasileiro

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