Aldeia Nagô
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Estão-nos mentindo sobre os piratas por Johann Hari

6 - 8 minutos de leituraModo Leitura

Quem imaginaria que em 2009, os governos do mundo
declarariam uma nova Guerra aos Piratas?





No instante em que você lê esse
artigo, a Marinha Real Inglesa – e navios de mais 12 nações, dos EUA à China –
navega rumo aos mares da Somália, para capturar homens que ainda vemos como
vilãos de pantomima, com papagaio no ombro. Mais algumas horas e estarão
bombardeando navios e, em seguida, perseguirão os piratas em terra, na terra de
um dos países mais miseráveis do planeta. Por trás dessa estranha história de
fantasia, há um escândalo muito real e jamais contado. Os miseráveis que os
governos ‘ocidentais’ estão rotulando como "uma das maiores ameaças de
nosso tempo" têm uma história extraordinária a contar – e, se não têm toda
a razão, têm pelo menos muita razão.

Os piratas jamais foram exatamente o que pensamos que
fossem. Na "era de ouro dos piratas" – de 1650 a 1730 – o governo
britânico criou, como recurso de propaganda, a imagem do pirata selvagem, sem
propósito, o Barba Azul que ainda sobrevive. Muita gente sempre soube disso e
muitos sempre suspeitaram da farsa: afinal, os piratas foram muitas vezes
salvos das galés, nos braços de multidões que os defendiam e apoiavam. Por quê?
O que os pobres sabiam, que nunca soubemos? O que viam, que nós não vemos? Em
seu livro Villains Of All Nations, o historiador Marcus Rediker começa a
revelar segredos muito interessantes.

Se você fosse mercador ou marinheiro empregado nos
navios mercantes naqueles dias se vivesse nas docas do East End de Londres, se
fosse jovem e vivesse faminto-, você fatalmente acabaria embarcado num inferno
flutuante, de grandes velas. Teria de trabalhar sem descanso, sempre faminto e
sem dormir. E, se se rebelasse, lá estavam o todo-poderoso comandante e seu
chicote [ing. the Cat O’ Nine Tails, lit. "o Gato de nove
rabos"]. Se você insistisse, era a prancha e os tubarões. E ao final de meses
ou anos dessa vida, seu salário quase sempre lhe era roubado.

Os piratas foram os primeiros que se rebelaram contra
esse mundo. Amotinavam-se nos navios e acabaram por criar um modo diferente de
trabalhar nos mares do mundo. Com os motins, conseguiam apropriar-se dos
navios; depois, os piratas elegiam seus capitães e comandantes, e todas as
decisões eram tomadas coletivamente; e aboliram a tortura. Os butins eram
partilhados entre todos, solução que, nas palavras de Rediker, foi "um dos
planos mais igualitários para distribuição de recursos que havia em todo o
mundo, no século 18 ".

Acolhiam a bordo, como iguais, muitos escravos
africanos foragidos. Os piratas mostraram "muito claramente- e muito
subversivamente- que os navios não precisavam ser comandados com opressão e
brutalidade, como fazia a Marinha Real Inglesa." Por isso eram vistos como
heróis românticos, embora sempre fossem ladrões improdutivos.

As palavras de um pirata cuja voz perde-se no tempo,
um jovem inglês chamado William Scott, volta a ecoar hoje, nessa pirataria new
age
que está em todas as televisões e jornais do planeta. Pouco antes de
ser enforcado em Charleston, Carolina do Sul, Scott disse: "O que fiz, fiz
para não morrer. Não encontrei outra saída, além da pirataria, para sobreviver".

O governo da Somália entrou em colapso em 1991. Nove
milhões de somalianos passam fome desde então. E todos e tudo o que há de pior
no mundo ocidental rapidamente viu, nessa desgraça, a oportunidade para
assaltar o país e roubar de lá o que houvesse. Ao mesmo tempo, viram nos
mares da Somália o local ideal onde jogar todo o lixo nuclear do planeta.

Exatamente isso: lixo atômico. Nem bem o governo
desfez-se (e os ricos partiram), começaram a aparecer misteriosos navios
europeus no litoral da Somália, que jogavam ao mar contêineres e barris
enormes. A população litorânea começou a adoecer. No começo, erupções de pele,
náuseas e bebês malformados. Então, com o tsunami de 2005, centenas de barris
enferrujados e com vazamentos apareceram em diferentes pontos do litoral. Muita
gente apresentou sintomas de contaminação por radiação e houve 300 mortes.

Quem conta é Ahmedou Ould-Abdallah, enviado da ONU à
Somália: "Alguém está jogando lixo atômico no litoral da Somália. E chumbo
e metais pesados, cádmio, mercúrio, encontram-se praticamente todos."
Parte do que se pode rastrear leva diretamente a hospitais e indústrias
européias que, ao que tudo indica, entrega os resíduos tóxicos à Máfia, que se
encarrega de "descarregá-los" e cobra barato. Quando perguntei a Ould-Abdallah
o que os governos europeus estariam fazendo para combater esse ‘negócio’, ele
suspirou: "Nada. Não há nem descontaminação, nem compensação, nem
prevenção."

Ao mesmo tempo, outros navios europeus vivem de
pilhar os mares da Somália, atacando uma de suas principais riquezas: pescado.
A Europa já destruiu seus estoques naturais de pescado pela superexploração –
e, agora, está superexplorando os mares da Somália. A cada ano, saem de lá mais
de 300 milhões de atum, camarão e lagosta; são roubados anualmente, por
pesqueiros ilegais. Os pescadores locais tradicionais passam fome.

Mohammed Hussein, pescador que vive em Marka, cidade
a 100 quilômetros ao sul de Mogadishu, declarou à Agência Reuters: "Se
nada for feito, acabarão com todo o pescado de todo o litoral da Somália."

Esse é o contexto do qual nasceram os
"piratas" somalianos. São pescadores somalianos, que capturam barcos,
como tentativa de assustar e dissuadir os grandes pesqueiros; ou, pelo menos,
como meio de extrair deles alguma espécie de compensação.

Os somalianos chamam-se "Guarda Costeira
Voluntária da Somália". A maioria dos somalianos os conhecem sob essa
designação. [Matéria importante sobre isso, em
http://wardheernews .com/Articles_ 09/April/ 13_armada_
not_solution_ muuse.html
: "The Armada
is not a solution".] Pesquisa divulgada pelo site somaliano
independente WardheerNews informa que 70% dos somalianos "aprovam
firmemente a pirataria como forma de defesa nacional".

Claro que nada justifica a prática de fazer reféns.
Claro, também, que há gângsteres misturados nessa luta – por exemplo, os que
assaltaram os carregamentos de comida do World Food Programme. Mas em
entrevista por telefone, um dos líderes dos piratas, Sugule Ali disse:
"Não somos bandidos do mar. Bandidos do mar são os pesqueiros clandestinos
que saqueiam nosso peixe." William Scott entenderia perfeitamente.

Por que os europeus supõem que os somalianos deveriam
deixar-se matar de fome passivamente pelas praias, afogados no lixo tóxico
europeu, e assistir passivamente os pesqueiros europeus (dentre outros) que
pescam o peixe que, depois, os europeus comem elegantemente nos restaurantes de
Londres, Paris ou Roma? A Europa nada fez, por muito tempo. Mas quando alguns
pescadores reagiram e intrometeram- se no caminho pelo qual passa 20% do
petróleo do mundo… imediatamente a Europa despachou para lá os seus navios de
guerra.

A história da guerra contra a pirataria em 2009 está
muito mais claramente narrada por outro pirata, que viveu e morreu no século 4º
AC. Foi preso e levado à presença de Alexandre, o Grande, que lhe perguntou
"o que pretendia, fazendo-se de senhor dos mares." O pirata riu e
respondeu: "O mesmo que você, fazendo-se de senhor das terras; mas, porque
meu navio é pequeno, sou chamado de ladrão; e você, que comanda uma grande
frota, é chamado de imperador." Hoje, outra vez, a grande frota europeia
lança-se ao mar, rumo à Somália – mas… quem é o ladrão?

Artigo Publicado originalmente em 5/1/2009, Johann Hari: The
Independent
, UK 

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