Aldeia Nagô
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Eu vi o final da novela por Elaine Tavares

8 - 11 minutos de leituraModo Leitura

A novela Viver a Vida terminou neste sábado e, como sempre, uma novela da Globo, por ser uma usina reprodutora de mais-valia ideológica, repercute em vários outros momentos da telinha.


Este folhetim em especial suscitou muito debate sobre o que ficou
configurado como "a possibilidade de superação", uma vez que a
personagem principal, Luciana, era uma garota linda, de profissão
modelo, que sofre um acidente e fica paraplégica. A novela então se move
neste universo de superação da personagem que, ao longo da trama, em
meio à dor, vai encontrando caminhos e formas de viver que transcendem a
sua condição de prisioneira de uma cadeira de rodas.

Assim, por meses, enquanto
durou a
novela, esse tema da superação foi assunto dos programas de entrevista,
dos
programas de entretenimento, dos noticiários, enfim, permaneceu como
pauta,
sempre reforçando que as pessoas podem superar suas desgraças físicas e
pessoais. E é assim que se expressa a mais-valia ideológica como bem já
demonstrou o venezuelano Ludovico Silva. A pessoa que assiste à
televisão, na
verdade, não está "descansando" ou "fruindo", mas segue absolutamente
conectada
aos ideais e às idéias da classe dominante, que ali reforça suas
verdades. E foi
por assim entender que se me ficou, neste sábado de último capítulo, a
seguinte
questão: afinal, que pessoas, neste país, tem verdadeiramente a condição
de
"superar", de transcender?

Pois vamos ver o destino
dos
personagens do enredo da novela das oito global.

A menina Luciana, que era
uma
chatinha mimada, amadurece, enfrenta com galhardia seu destino de
paraplégica,
encontra um amor (que também é médico), casa, passa a lua de mel em
Paris e
termina dando a luz a gêmeos. Ora, isso é mesmo de chorar. Luciana é
rica, tem
um motorista que a leva a todos lugares, vai aos melhores 
fisioterapeutas, não
tem que ficar nas filas do SUS, teve uma enfermeira particular ao longo
da
recuperação e seguirá tendo. Seus filhos correrão pela casa enquanto
duas ou
três babás estarão a postos aos menores desejos. Que vida sem névoas!
Luciana
superou tudo apoiada na família, sempre presente. O pai chegou a
reformar a
mansão para atender a todas as novas necessidades. Tudo correu bem. Ela
foi
mesmo um exemplo de superação, chegando a manter um blog para contar
isso a toda
gente. Certo, mas na verdade, a única coisa que a personagem de fato
superou foi
aceitar a condição de prisioneira da cadeira de rodas, porque o demais
sempre
lhe garantido.

A mãe da Luciana foi a
sofredora da
trama. Enfrentou a separação de um marido canalha, e teve de passar por
toda uma
via-crúcis com a filha acidentada, ainda atendendo as demandas de uma
outra
filha mau caráter, que acaba com um texano rico (presente ou castigo?).
Nesse
processo foi muito apoiada pela terceira filha, boazinha e virgem. Ela
conseguiu
passar por todos os tropeços com muita valentia. Cuidou da filha,
dedicando-se
integralmente. O que foi possível porque a linda mulher não trabalhava,
era
fartamente sustentada por uma pensão do rico marido calhorda. Então, ali
também
não havia névoas. Era só superação emocional. No final da trama, depois
de ver a
filha feliz, ela finalmente encontra um novo amor, com quem vai passar a
lua de
mel em Paris. Incrível como Paris parece estar sempre na rota dos
sofredores
endinheirados.

Há ainda outra personagem
que é um
lindo exemplo de superação. Não lembro seu nome, mas é a garota
alcoólatra.
Durante toda a novela o público vibrou com as desventuras da mocinha,
que
desprezada pelo namorado, não conseguia superar o vício que já tinha.
Então, ela
encontra um novo amor, recebe o apoio dos amigos, encontra um emprego
incrível,
de modelo fotográfico, e vai superando, entre uma recaída e outra, o seu
problema. Nos últimos capítulos ela ainda recai mais uma vez, mas tudo
lhe é
perdoado. Ela é linda, o namorado é uma ameba compreensiva e vai
terminar
morando com ela, com o projeto de andarem perambulando pela Europa.
Bonito
demais.

A personagem Dora, que
durante toda
a trama foi uma desonesta, ladra de marido e tudo mais, também encontra
redenção. Ela deixa de ser uma chinelona que vive de favor na casa dos
outros e
encontra um homem mais velho, de classe média alta, dono de restaurante,
que lhe
acolhe, reconhece a filha mais velha e, de quebra, descobre que o
garotinho que
poderia ser filho de outro, é mesmo seu filho. A família termina feliz,
entre
tangos e festa. Toda a tentativa de se dar bem na vida, buscada de
maneira torta
pela personagem, acaba dando certo e tudo lhe é perdoado.  

A linda Helena, moça negra,
mas não
pobre, que enfrenta a traição de um marido vagabundo, perde um filho e
sofre por
sentir-se responsável pela desgraça da amiga Luciana, termina a novela
com um
fotógrafo de moda, lindo, embora meio burrinho, que lhe dá um filho. Ela
também
acaba vivendo sua possibilidade de redenção, superando as culpas. No
final do
capítulo, Helena e Luciana terminam na passarela, em um desfile de alta
moda, no
qual a paraplégica aparece maravilhosa, mostrando que chegou a cume da
superação. Nem mesmo o trabalho de modelo ela perdeu.

A Sandrinha, irmã mais moça
de
Helena, que ao longo da novela comete o pecado de se apaixonar por um
favelado e
ter um filho dele, igualmente vive seu momento de redenção. Depois da
morte do
marido, que era um bandidinho rampeiro, ela volta para a linda pousada
da mãe e
encontra o "perdão" para sua falta de filha rebelde, indo trabalhar em
instituições de caridade. Ela não encontrará entraves porque a rica mãe
lhe
ajudará a criar o filho do bandido morto.

E assim seguem os finais
dos
personagens, todos da parte rica da novela. Gente bonita, lindos
casamentos,
superações, viagens a Paris. E até na parte pobre também há alguns bons
exemplos
de "ir adiante", que parece ter sido o mote da trama. O garoto bonzinho,
primo
da Dora, termina a novela cantando no bar do argentino, tendo sua chance
de
iniciar a vida de artista. É o prêmio que lhe é dado por ser sempre um
garoto
amável, cumpridor das tarefas, que nunca reclamou do patrão, que sempre
foi
submisso. Ele sabia que ter aquele trabalho de garçom no bar do
argentino era
uma bênção e que não poderia abrir mão disso nunca. Sua irmã, ambiciosa,
mas não
tanto a ponto de ser má, também consegue que o dono do novo bar olhe
para ela
como se ela fosse um objeto sexual e lhe ofereça emprego. Sim, emprego,
porque
não lhe ocorre um casamento. Mulher pobre e bonita é pra curtir. Ela
aceita
maravilhada.

Já o garoto bandido, Benê,
esse não
tem chance de superação. A ele não lhe é permitida a redenção, embora
ele sempre
tenha se mostrado um bom garoto, premido pela vida cruel da favela,
enrolado com
o tráfico e o crime apenas porque não tinha muita saída. Mas, não, esse
não teve
chance de "superar". Alguém na novela tinha de pagar por seus crimes ou
quedas
morais. Alguém tinha de ser punido, não dava para acabar tudo bem.
Então, a
escolha lógica era Benê. Ele era negro, pobre, favelado, bandido. A ele
não
podia ser dada qualquer oportunidade. Foi-se, morreu!  É que o menino
Benê não
queria ser garçom na pousada da sogra, não queria ser caixa de
supermercado, ele
sonhava mais. Ele era rebelde, inconformado, e na sua revolta singular
deixava
antever um desejo coletivo de vida boa para todos os seus companheiros
da
favela. Ele queria dar ao filho as belezas anunciadas pelo sistema,
antevistas
nas casas ricas dos amigos da mulher. Ele queria viagens a Paris,
talvez… Ele
queria tudo que aos outros era dado. Mas não teve chance.   Alguém na
novela
tinha de morrer. Não podia ser o Marco, empresário mau caráter,
mulherengo,
corrupto. Não podia ser a alcoólatra linda e aventureira, que só queria
perambular pela Europa, não podia ser a Dora, traíra e ambiciosa, não
podia ser
a Helena, nem mais ninguém do mundo certinho e viável do núcleo dos
ricos. Não,
haveria de ser o guri rebelde, o insurgente. Estes não podem chegar à
redenção.
Estes não superam. Eles sucumbem e ponto. É assim.

O fato é que não se poderia
esperar
outra coisa de um folhetim do Manoel Carlos na Globo. É a visão de uma
classe. E
na classe dominante as coisas são assim mesmo. Tudo pode ser superado,
porque
não há julgamentos morais. Tampouco há empecilhos materiais. Agora,
imagine a
vida de uma mãe, sem marido, com a filha paraplégica, lá no Morro do
Céu?
Imagine uma trabalhadora qualquer, do comércio, por exemplo, que sofra
um
acidente e não possa mais trabalhar? Bom, mas isso não daria novela.
Seria muito
baixo astral. O bom mesmo é mostrar a realidade assim, na perspectiva de
uma
classe que pode, sim, tudo superar e transcender. Uma gente que pode ter
fisioterapeutas particulares e ir para Paris quando está muito triste.  

O bom das novelas é que
elas nos
permitem esse olhar, o nosso, desde a outra classe. E nos possibilitam
ver que
para os lindos, ricos e bem nascidos, o destino dos pobres é
absolutamente
claro. Os que não se queixam, os que não se rebelam, terminam nos
empreguinhos
mais ou menos, explorados e bem felizes. Já os que se insurgem, os que
enxergam
o mundo para além do conforto permitido pelos ricos, estes tem de
morrer, sumir,
escafeder-se.

Bueno, e ao final do
folhetim cabe a
nós dizer onde estão os nossos espaços reais de "redenção". Na nossa
"novela" de
vida real, há um elemento que pode alavancar nossa verdadeira superação.
A
solidariedade concreta, a cooperação comunitária e compreensão de que o
nosso
mundo pode ser bonito, pleno e rico. Não por conta da exploração de uns
pelos
outros, mas porque saberemos distribuir a riqueza e construir o mundo
novo.
Neste nosso mundo, que construiremos, o Benê teria chance.
Coletivamente, com a
comunidade em luta, ele teria superado. E, no fundo, em muitos lugares
deste
brazilzão, é assim que já é. Só que a rede Globo jamais mostraria. Cabe a
nós
fazê-lo! É que buscamos fazer na Pobres e Nojentas, revista de
reportagem
que conta a vida real. E assim, avançamos, para além da telinha
aliciadora e
alienante.

Existe vida no Jornalismo
Blog da Elaine:
www.eteia.blogspot.com
América Latina Livre – www.iela.ufsc.br
Desacato

www.desacato.info
Pobres & Nojentas –
www.pobresenojentas.blogspot.com
Agencia Contestado de Noticias
Populares –
www.agecon.org.br

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