FALTOU ALGUÉM NO VELÓRIO DO ZÉ por José Ribamar Bessa Freire
Os dois morreram com a mesma idade: 79 anos. Os dois foram abatidos pela
mesma doença maligna contra a qual lutaram bravamente por um longo período.
José Alencar (1931-2011), vice-presidente do Brasil, câncer no intestino.
François Mitterand (1916-1996) presidente da França, câncer na próstata. Ambos
tiveram funerais solenes com pompa de chefe de Estado. No velório do francês,
porém, foi registrada uma presença, que esteve ausente no enterro do
brasileiro.
Quase 15 mil pessoas desfilaram diante do corpo de Alencar, velado no
Palácio do Planalto, em Brasília e, no dia seguinte, no Palácio da Liberdade,
em Belo Horizonte, com direito a desfile em cortejo fúnebre, limusine preta,
celebração presidida pelo núncio apostólico, honras militares, 21 tiros de
canhão, bandeira a meio mastro, luto oficial. Alguém, no entanto, sentiu a
perda, mas não foi aos dois palácios. Quem?
Estavam lá a presidente Dilma Rousseff, quatro ex-presidentes, entre os
quais Lula, ministros, senadores, deputados, juízes, governadores, autoridades
civis, militares e eclesiásticas, políticos de todos os partidos, gente do
povo. Enfim, todos os poderes constituídos. O comandante do Exército, general
Enzo Peri, lembrou que o morto, quando jovem, havia feito ‘tiro de guerra’: "Nós
sentimos profundamente. Era um grande patriota, amigo das Forças Armadas".
O médico do ex-vice-presidente, Raul Cutait, declarou que Alencar era "um
exemplo de paciente". Ele teve "um papel quase que didático em relação
ao câncer", confirmou Josias de Souza, colunista da Folha de SP.
Efetivamente, o Brasil inteiro acompanhou, solidário, a luta daquele mineiro de
Muriaé, corajoso, esbanjando a disposição de um touro, sempre com um sorriso
descontraído depois de cada uma das inúmeras cirurgias a que foi submetido. Era
duro de queda, o Zé. Dava a impressão de ser imortal.
"Ele levou esperança a milhares de pacientes, abriu discussão sobre os
avanços no combate ao câncer, ensinou ao Brasil a fé, a coragem no
enfrentamento à doença e a importância fundamental da família e dos amigos para
o sucesso do tratamento"
– disse Luciana Holtz, presidente do
Instituto Oncoguia. Na sua fala, nada foi dito sobre uma pessoa, ali ausente,
que não havia recebido essa injeção de esperança.
Ritual do Poder
De qualquer forma, quem teve alguém próximo com câncer – e quase todo
mundo teve alguém próximo com câncer – se sentiu unido a José Alencar. O
Globo registrou muitas mensagens de mulheres e homens comuns como Sidney
Tito – "Adeus Zé, Deus te receberá com honras destinadas aos humildes, aos
bons e aos justos" – ou Fátima Cremona – "O Brasil perde um grande
guerreiro".
Até mesmo adversários não hesitaram em entrar na fila de cumprimentos no
velório, entre eles o ex-presidente Itamar Franco, classificado como "péssimo
caráter" por Alencar em depoimento a Eliane Cantanhêde, autora de "José
Alencar, Amor à Vida". Itamar não chegou a chorar, como Lula, mas provou que
mineiro é solidário no câncer, como queria Otto Lara. Outro ex-presidente, José
Sarney (vixe, vixe!), com ar compungido, moveu o bigode de ratazana e se
pronunciou:
– "No meu tempo, não vi um político ser objeto de opinião tão unânime
e receber uma solidariedade tão sem contrastes de todos os segmentos da
sociedade quanto José Alencar".
Será? O senador Aécio Neves concordou e, crente que o purgatório de
Alencar foi aqui na terra, despachou-o direto pro céu:"O Criador deve ter
dito: uai Zé, achei que você não vinha nunca".Ninguém questionaria o
sotaque mineiro de Deus se não houvesse um lugar vazio no velório. Mas havia,
embora despercebido por pessoas tão familiares como o ex-ministro José Dirceu e
a presidente Dilma.
Dilma contou que Alencar a "adotou" quando ela chegou a Brasília, em
2003: "Foi meu segundo pai". Na mesma linha, Dirceu afirmou, ao sair do
velório: "Lula disse que perdeu um irmão. Eu perdi quase um pai".
Com tal paternidade declarada, não precisa de um estudo profundo sobre
estrutura de parentesco para ver que a cerimônia do adeus ao patriarca reuniu
toda a quase-família: a esposa dona Mariza, os três filhos Josué, Graça e
Patrícia. Além do quase-filho Dirceu, lado a lado de sua quase-irmã Dilma e do
seu tio Lula. Só faltou mesmo alguém que esteve nos funerais de Mitterand.
Quando o presidente da França morreu no cargo, foram se despedir dele,
na Catedral de Notre Dame, em Paris, cerca de 1.500 personalidades: reis,
rainhas, príncipes, presidentes e chefes de governo de quase todos os países do
mundo. Mas não foi nenhum deles que fez falta no enterro de Alencar. Quem fez
falta foi alguém ainda mais importante, que concentrou todo o foco da imprensa
mundial: Mazarine
Mazarine
Mazarine foi registrada com esse nome em homenagem à biblioteca mais
antiga da França. É que seus pais adoravam livros. Sua mãe Anne Pingeot era
bibliotecária do Museu d´Orsay. Seu pai François Mitterand discutia com
intimidade, entre outras, as obras de escritores latino-americanos como Júlio
Cortázar e Garcia Marquez, que foram convidados para sua posse.
Acontece que Mazarine Marie, nascida em 1974, era filha de uma relação
adúltera. Foi discretamente reconhecida, em cartório, pelo pai, que conseguiu
manter o segredo durante anos, até 1994, quando foi revelado publicamente pela
revista Paris-Match. Hoje, ela é Mazarine Marie Pingeot-Miterrand,
escritora, autora de um romance – Cemitério de bonecas – em que uma
mulher mata seu bebê e o coloca num congelador.
Mazarine e sua mãe não foram mortas nem ficaram no congelador. As duas
foram convidadas para os funerais pela própria Danielle Miterrand, esposa do
presidente, que bateu de frente com o poder e subverteu as normas do
cerimonial. Uma foto estampada na primeira página dos jornais do mundo todo
mostra Danielle ladeada por seus dois filhos Jean-Christophe e Gilbert, tendo
Mazarine e Anne à sua esquerda.
No velório de Alencar, quem ficou de fora foi a Mazarine brasileira,
conhecida em Caratinga (MG) como Alencarzinha, uma quase-irmã do Dirceu e da
Dilma. Trata-se de uma professora aposentada de 55 anos, que em 2001 entrou com
uma ação de reconhecimento de paternidade, reivindicando ser filha de um
romance entre José Alencar e a enfermeira Francisca Nicolina de Morais.
Com a mesma teimosia com que lutou contra o câncer, seu quase pai, Zé
Alencar, se recusou a fazer exames de DNA e morreu sem reconhecer aquela que
diz ser sua filha. Diante da recusa, o juiz da comarca de Caratinga (MG), José
Antônio de Oliveira Cordeiro, fez o que manda a lei. Declarou oficialmente José
Alencar Gomes da Silva como o pai da professora, que agora passou a
assinar, legalmente, Rosemary de Morais Gomes da Silva.
Entrevistado no programa de Jô Soares, em 2010, diante das câmeras e dos
microfones, José Alencar não negou que havia tido uma relação com Nicolina, mas
disparou um tiro de guerra. Revelou que "como todo jovem na época" era
freqüentador das zonas de meretrício das cidades onde morou, insinuando que a
mãe de sua eventual filha era uma prostituta e que qualquer um podia ser o pai.
Alencarzinha
Confesso que nutria enorme admiração pela luta de Alencar contra o
câncer, mas ela se esfumou quando ouvi sua declaração, digna de um Bolsonaro,
ultrajante e ofensiva a todas as mulheres brasileiras, virtuosas ou pecadoras,
que não mereciam um comportamento público tão machista, mesquinho e vulgar.
Fiquei envergonhado, afinal ele me representava. Não era um quase-pai,
mas era um quase-presidente. Nem o insensato coração de André Lázaro Ramos foi
capaz de discurso tão abominável e covarde, indigno de um homem tão bom, que
pelo seu cargo deveria ter um comportamento mais republicano. O pior é que,
pelo lugar de onde fala, ele tem um "papel didático" também nessas questões de
gênero. Ele está ensinando aos telespectadores, incluindo aí nossos filhos,
como um homem deve se comportar com uma mulher.
Alencarzinha assistiu pela televisão à cobertura do velório de um homem
poderoso, rico, com grandes qualidades, mas asquerosamente machista. "Não
fui a Belo Horizonte porque não ia ser bem aceita lá", ela disse.
Judicialmente, podia ter tentado impedir a cremação para realizar o exame de
DNA, pelo qual tanto lutou. Mas não o fez. "Queria ter conversado com ele em
vida, para mostrar quem eu sou, a filha que ele tem, todo pai gosta de conhecer
a pessoa que ele colocou no mundo. Agora, não adianta mais".
Danielle Mitterand recebeu criticas impiedosas pela presença de Mazarine
e Anne Pingeot nos funerais do presidente francês. Num belo texto que tornou
público, ela condenou a hipocrisia e o conformismo, dizendo que um homem ou uma
mulher sensível podia se enamorar e se encantar com outras pessoas: "É preciso
admitir docemente que um ser humano é capaz de amar apaixonadamente alguém e
depois, com o passar dos anos, amar de forma diferente". Ela fez um apelo:
– "Aceitei
a filha de meu marido e hoje recebo mensagens do mundo inteiro de filhos
angustiados que me dizem: – ‘Obrigado por ter aberto um caminho. Meu pai
vai morrer, mas eu não poderei ir ao enterro porque a mulher dele não aceita’
(…). Espero que as pessoas sejam generosas e amplas para compreender e
amar seus parceiros em suas dúvidas, fragilidades, divisões e pequenas paixões.
Isso é amar por inteiro e ter confiança em si mesmo".
Foi essa
generosidade que faltou no enterro de Alencar.
Íntegra do texto de Danielle
Miterrand, esposa do ex-presidente François Miterrand, ao povo francês,
Antes de
mais nada devo deixar claro que não é um pedido de desculpas. Muito menos um
enunciado de justificativas vãs, comum aos covardes ou àqueles que vivem
preocupados em excesso com a opinião dos outros. Aos 71 anos, vivendo a hora do
balanço de uma existência que é um sulco bem traçado e profundo, já não mais
preciso, e nem devo, correr atrás de possíveis enganos.
Vivo o
momento em que as sombras já esclarecem e que as ausências são lindas expressões
de perenidade e criação. Sombras e ausências podem ser tudo, ao passo que luzes
e presenças confundem os mais precipitados, os mais jovens.
Vivi com
François 51 anos; estive com ele em muito desse tempo e me coloquei sempre. Há
mulheres que não se colocam, embora estejam; que não se situam embora componham
o cenário da situação presumível de uma vida de altos e baixos.
Na época
da Resistência nunca sabíamos onde iríamos passar a noite – se na cama, na
prisão, nos bosques ou estendidos por toda a eternidade. Quando se vive assim
em comum, cria-se uma solda e a consciência de que é preciso viver depressa.
Concentrar talvez seja a palavra. Por isso tentei entendê-lo, relacionar-me com
sua complexidade, com as variações de sua pessoa e não de seu caráter…
Quem
entende ou, pelo menos, luta para compreender as variações do outro, o ama
realmente. E nunca poderá dizer que foi enganada ou que jamais enganou. Não nos
enganamos, nos confundimos quando nos perdemos da identidade vital do parceiro,
familiar ou irmão. Ou jamais os conhecemos, o eu também, não é um engano. Quem
não conhece, não tem enganos. Nas variações do outro, não cabe o apaziguador
tudo antes do tempo em forma de tranqüilidade. Uma relação a dois não deve ser
apaziguada, mas vibrante, apaixonada, e não enfastiada.
Nessa
complexidade vi que meu marido era tão meu amante quanto da política. Vi,
também, que como um homem sensível poderia se enamorar, se encantar com outras
pessoas, sem deixar de me amar.
Achar que
somos feitos para um único e fiel amor é hipocrisia, conformismo. É preciso
admitir docemente que um ser humano é capaz de amar apaixonadamente alguém e
depois, com o passar dos anos, amar de forma diferente.
Não somos
o centro amorável do mundo do outro. É preciso aceitar, também, outros amores
que passam a fazer parte desse amor como mais uma gota d’água que se incorpora
ao nosso lago.
Simone de
Beauvoir dizia bem, que temos amores necessários e amores contingentes ao
longo da vida.
Aceitei a
filha de meu marido e hoje recebo mensagens do mundo inteiro de filhos
angustiados que me dizem: – ‘Obrigado por ter aberto um caminho. Meu pai vai
morrer, mas eu não poderei ir ao enterro porque a mulher dele não aceita.
É preciso
viver sem mesquinhez, sem um sentido pequeno, lamacento, comum aos moralistas,
aos caluniadores aos paranóicos azedos que teimam em sujar tudo. Espero que as
pessoas sejam generosas e amplas para compreender e amar seus parceiros em suas
dúvidas, fragilidades, divisões e pequenas paixões.
Isso é amar por inteiro e ter
confiança em si mesmo.
‘Deus não prometeu Dias sem Dor;
Risos sem Sofrimentos; Sol sem Chuva. Ele prometeu Força para o Dia; Conforto
para as Lágrimas e Luz para o Caminho…
Publicado originalmente em: http://www.taquiprati.com.br