Finalmente a independência do BC por Yoshiaki Nakano
O Banco Central (BC) tomou a decisão de reduzir em 0,5 ponto percentual a sua
taxa de juros, o que surpreendeu o mercado financeiro. Os seus "porta
vozes", por meio da imprensa, falaram em quebra de "protocolo",
da "liturgia" e na subversão aos "princípios mais valiosos"
do sistema de metas de inflação.
Isso teria deixado o mercado
"perplexo" segundo a imprensa. Mas, afinal, qual era esse protocolo
ou liturgia a que o mercado estava acostumado? Quais eram esses
"princípios mais valiosos do sistema de metas de inflação" que o BC
teria abandonado?
De fato, o BC, que não tem na sua diretoria atual
funcionários de bancos privados, como tivemos nas diretorias anteriores,
surpreendeu os tesoureiros e economistas dos bancos privados, que estavam
acostumados a uma relação, no mínimo, promíscua. Nessa relação, o Banco Central
reagia às expectativas de inflação dos economistas dos bancos privados,
materializadas na pesquisa Focus e nas taxas de juros futuras das operações
efetuadas pelas tesourarias.
Na véspera das reuniões do Copom, a imprensa fazia a pesquisa informando o
Banco Central, qual o aumento ou redução em que a maioria dos bancos e empresas
de consultoria apostavam. Lógico que a maioria sempre acertava. Esse era o
protocolo ou a liturgia seguidos pelas diretorias anteriores do Banco Central
sempre ocupados por funcionários do sistema bancário. Na última reunião de
agosto, esse protocolo foi de fato abandonado. Daí a grande surpresa e
perplexidade do mercado financeiro. A rigor, o BC finalmente tornou-se
independente do mercado.
Banco não tem na sua diretoria atual funcionários de bancos privados, como
tivemos nas diretorias anteriores
Nesse protocolo ou liturgia prevaleciam, evidentemente, os interesses dos
mercados financeiros. Se as expectativas de inflação e de taxas de juros futuras
do próprio mercado financeiro guiavam as decisões do Banco Central, os riscos
de erros nas projeções eram minimizados e as possibilidades de ganho
maximizadas. Vale lembrar que, no Brasil, o Banco Central fixa a taxa Selic,
que é a mesma dos títulos públicos de longo prazo e, que serve de base (CDI)
para a fixação das demais taxas de juros ativas e passivas. Assim, a indexação
dos ativos financeiros à taxa diária Selic/DI elimina o risco da variação da
taxa de juros e, tal "protocolo" entre o mercado e o Banco Central
reduzia o risco de erros de expectativas. A dita "perplexidade" do
mercado é compreensível, pois agora aumentam os riscos de serem surpreendidos
se errarem nas as suas projeções.
Outro aspecto que merece atenção é que muitos economistas de bancos ou de
consultorias ligadas ao mercado financeiro imputam a última decisão do Banco
Central como subversão das regras ("princípios mais valiosos") da
política monetária baseada em metas de inflação. Nada mais longe da verdade. A
rigor, o sistema de metas que tínhamos no Brasil, era um arremedo do
verdadeiro. Como a variação da taxa de juros tem uma defasagem longa, de seis a
12 meses, para ter efeitos mais relevantes sobre o lado real da economia
(demanda agregada) e sobre a inflação, a taxa de inflação relevante, que tem
que ser monitorada, é a taxa estimada para os próximos seis a 12 meses.
Portanto, o sistema de metas pressupõe um bom sistema de previsão de inflação
futura para compará-la com a meta e daí tomar a decisão de mudar a taxa de juros.
No Brasil, além de considerarmos a inflação medida e acumulada de doze meses,
portanto, referente ao passado, estamos presos à inflação calendário.
Além da inflação passada de 12 meses dificilmente ser uma projeção correta
da inflação futura, a não ser por acaso, não consideramos nem mesmo a inflação
contemporânea. Se esta for mais relevante para extrapolarmos para o futuro, a
taxa de juros deverá ter um comportamento completamente diferente do nosso
caso.
Por exemplo, a taxa de inflação de agosto foi de 0,37%, portanto,
anualizando temos como taxa de inflação referência 4,5%, coincidindo com a
meta. A taxa de juros deveria ser muito menor. Ao utilizarmos a inflação
passada de 12 meses como referência, temos que manter a taxa de juros em níveis
elevados mesmo que as pressões inflacionárias efetivas tenham desaparecido e a
inflação contemporânea esteja dentro da meta. É compreensível que aqueles que
ganham com juros elevados defendam os "princípios mais valiosos" da
atual regra.
Outro aspecto que chamou a atenção dos "porta-vozes" do sistema
financeiro é que o BC não está considerando só a taxa de inflação, mas o
crescimento da economia, como se isso fosse um pecado mortal praticado pelo
banco. Novamente, isso representa uma ignorância sobre o sistema de metas de
inflação ou a defesa de interesses setoriais. O sistema de metas pressupõe que
a taxa de juros afeta a inflação por diversos canais, entre eles o da demanda
agregada ou o hiato do produto. A taxa de juros não afeta diretamente a
inflação. Assim, ao elevar a taxa de juros, o Banco Central pretende eliminar o
excesso de demanda ou atingir o hiato zero para assim controlar a inflação.
O Banco Central do Brasil agiu de forma correta se seus estudos técnicos e
as projeções de seus modelos indicam tanto a desaceleração do nível de
atividade econômica, como a queda nas pressões inflacionárias nos próximos 12
meses. Se isso for verdade, estamos mais próximos de um verdadeiro sistema de
metas. Se acrescentarmos que o ministro da Fazenda anunciou um aperto fiscal
maior para poder afrouxar a política monetária, estamos iniciando uma nova era
e podemos caminhar para um novo regime de política macroeconômica compatível
com crescimento acelerado e sustentado.
Yoshiaki Nakano, ex-secretário da Fazenda do governo Mário Covas (SP),
professor e diretor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio
Vargas – FGV/EESP
Artigo publicado originalmente no Jornal Valor Econômico de 13 de setembro