Aldeia Nagô
Facebook Facebook Instagram WhatsApp

Frei Betto, a blogueira e uma Cuba imaginária por Samarone Lima

7 - 9 minutos de leituraModo Leitura

Acabo de voltar de Salvador, onde lancei meu "Viagem ao Crépúsculo" (Editora
Casa das Musas), livro sobre a vida cotidiana do povo cubano, fruto de uma
viagem que fiz à ilha, entre o final de 2007 e janeiro de 2008. Poucos dias
depois do meu retorno, quando escrevia os primeiros capítulos do livro,
Fidel Castro renunciou do cargo de Comandante-em-Chefe, depois de 50 anos no
cargo.


Mal desfaço as malas, e recebo uma cópia de um artigo de Frei Betto – "A
blogueira Yoani e suas contradições".

Frei Betto disseca à sua maneira um episódio recente, quando a blogueira foi
jogada em um carro e golpeada. Para ele, houve um "suposto ataque" real
(Yoani não mostrou publicamente, em seu blog, os hematomas), e passa ao
ataque simbólico. Vai à biografia da blogueira, para mostrar que ela foi
morar na Suiça e voltou a Cuba para escrever sobre o regime. Questiona o
retorno, como se os laçoa familiares não interessassem, e passa a questionar
a quantidade de acessos do nicho "Generación y" – 14 milhões de visitas/mês.
Para detonar a fonte, questiona sobre "quem paga os tradutores no exterior",
sugerindo, claro, conexões nada lícitas com cubanos de fora.

"Yoani Sánchez tem todo o direito de criticar Cuba e o governo de seu país.
Mas só os ingênuos acreditam que se trata de uma simples blogueira. Nem
sequer é vítima da segurança ou da Justiça cubanas. Por isso, inventou a
história das agressões. Insiste para que suas mentiras se tornem
realidades".

Não, Frei Betto, Yoani não tem "todo o direito de criticar Cuba". Isso, em
Cuba, ninguém tem. No mês que passei na casa dos cubanos, escutei relatos os
mais sombrios sobre repressão, sobre o perigo de criticar o regime, sob o
risco de ser preso. Não se sabe exatamente o número de presos políticos no
país. Talvez 200, talvez 250. Frei Betto, que já foi preso político, sabe
como é duro.

Inúmeras vezes escutei o povo cubano se referir a "nós" e "eles".
Traduzindo: "Nós", o povo cubano. "Eles", a elite do Estado, que comanda o
país desde 1959.

O que se lamenta, de um homem com a trajetória política de Frei Betto – com
quem me iniciei na leitura contra a opressão em meu país, com "Batismo de
Sangue" – , é que tenha perdido o rumo e a medida, e para sustentar seu
sonho revolucionário, precise mentir, usando o pesadelo alheio – de quem
pensa defender.

Betto diz que os cubanos têm "casa, comida, educação e atenção médica
gratuitas e segurança, pois os índices de criminalidade ali são ínfimos
comparados ao resto da América Latina".

Queria saber onde Frei Betto se hospeda, quando vai a Cuba. Fiquei em
diferentes casas de cubanos, que passam as piores privações, desde a hora em
que acordam, até o anoitecer. Acompanhei um cubano em sua busca pela comida
racionada, num dos lugares mais deprimentes que já vi, após viajar por mais
de 15 países.

Basta andar alguns quarteirões em Havana, para se ter a dimensão da pobreza,
da frustração, do grau de dificuldade e carência que mergulhou o país, onde
é impossível andar um quilômetro sem receber uma oferta de produtos do
mercado negro, onde há profissões em alta, como consertadores de caneta, de
isqueiro. Um professor universitário, dentro de um ônibus, escutou a língua
portuguesa e perguntou a um amigo se poderia conseguir um dicionário para
ele, pois não tinha um disponível em seu departamento. Nos finais de semana,
este mesmo homem faz vinho clandestino para sobreviver.

Frei Betto não sabe, creio, que os jovens que moram no interior do país, não
podem ficar em Havana, sob o risco de serem deportados, e que esses jovens,
quase todos mulatos, se insistirem em voltar, ganharão um processo criminal.
Os rejeitados em Havana são chamados popularmente de "palestinos".

"O curioso é que ela jamais exibiu em seu blog as crianças de rua que
perambulam por Havana, os mendigos jogados nas calçadas, as famílias de
miseráveis debaixo dos viadutos… Nem ela nem os correspondentes
estrangeiros, e nem mesmo os turistas que visitam a Ilha. Porque lá não
existem", prossegue Frei Betto, que constrói uma Cuba imaginária para dar
conta de tanta ideologia.

Em Cuba há miséria por todo lado, Frei Betto. As famílias de miseráveis se
amontoam em casas-cortiços, os viadutos praticamente não existem e conheci
mães que falam de seus filhos que estão com os dentes caindo, por falta de
cálcio. Uma delas, que me hospedou, contou o inferno da prisão onde o filho
está recolhido, onde outros 700 jovens compartilhavam o destino, muitos
deles banguelas e descalços.

Mas há misérias piores. Cito duas: a falta absoluta de liberdade e o medo. O
cubano só pode ler o jornal "Granma", e "Juventud Rebeld". A TV Cubana
pertence ao estado, e o jornal reprisa diariamente louvações a uma revolução
que vive seu crepúsculo. Em quase um mês, comprando jornais e assistindo TV
todos os dias, jamais vi uma notícia de um crime, atropelamento, assalto.
"Isso você jamais vai ver nos jornais", me disse um Cubano, na noite de
Natal, no mesmo bairro onde levou uma paulada na cabeça e teve tudo roubado.
O cubano tem medo de falar o que sente e sabe que não pode falar.
Presenciei, numa dessas filas de comida, um diálogo raivoso de dois cubanos,
onde a pergunta quase inaudível era: "Quando vai acabar este inferno?".

Dizer que "O capitalismo, que exclui 4 bilhões de seres humanos dos seus
benefícios básicos, não é mesmo capaz de suportar o fato de um país pobre
viverem com dignidade e se sentirem espelhados no saudável e alegre Buena
Vista Social Club", Frei Betto, é finalmente tripudiar em cima de um
cotidiano que beira ao desespero, dos quase 12 milhões de cubanos.

Talvez Frei Betto precise voltar a Cuba, o mais rápido possível. De
preferêncfia ainda este ano. Precisa se hospedar na casa dos cubanos e ver
de perto como funciona o mercado negro, que vai do leite em pó ao arroz,
passando pelo acesso clandestino à Internet. Precisa caminhar pelas ruas de
Havana, principalmente à noite, quando dezenas de quarteirões estão sem
iluminação pública. Terá que responder aos pedidos de um "sabonete", se for
descoberto como turista. Escutará dos próprios cubanos simples, se fizer
amizade, como funciona a azeitada máquina de repressão e delação.

Mas talvez amoleça um pouco o coração dele quando ficar na casa de alguém
que vende produtos no mercado negro, como fiquei. Quando chegarem mulheres,
donas de casas, fatigadas, desesperançadas, em busca de "um pouco de arroz",
ou "um pedaço de galinha", já que a fome lá é grande. É uma fome de tudo.

Se ficar no meio do povo, como tanto defendeu na época dos movimentos
populares, Frei Betto talvez não veja tanta "dignidade", e perca a ilusão de
que há um espelho no "saudável e alegre Buena Vista Social Club". Isso chega
a ser cômico, de tão caricato, e me lembra a absoluta subserviência de
intelectuais a regimes e sistemas, à relevia da vida real e do sofrimento
dopovo.

Quanto à blogueira em questão, Yoani Sánchez é uma magricela cubana,
descendente de espanhóis, que tem conseguido, com seu minúsculo blog
(www.desdecuba.com/generaciony) falar sobre a realidade de seu país. São
pequenas postagens, carregados de ironia e comovente desesperança sobre a
vida cotidiana em Cuba. Para conseguir usar a Internet dos hotéis, proibida
aos cubanos, ela se aproveita da cor. É branca, e muitas vezes se passa por
turista.

O livro dela, "De Cuba, com Carinho" (Editora Context0), é uma leitura
fundamental para todos os que idealizam seus sonhos revolucionários às
custas do pesadelo alheio.

Sugiro que Frei Betto o compre. Se comprar, que o leia. Se ler, que reflita.
Se achar que ela, por criticar a vida sofrida em Cuba, é
contrarrevolucionária ou "financiada por Miami", eu também devo ser. No
último capítulo de meu livro, falo sobre "Medo, Revolta e Delação". Nada a
ver com o "saudável e alegre Buena Vista Social Club".

Samarone Lima
http://www.estuario.com.br/

Compartilhar:

Mais lidas

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *