Frei Betto: Memória brasileira: sigilo ou vergonha? por Frei Betto
Há 141 anos terminou a Guerra do Paraguai. Durou de 1864 a 1870. Ao longo de seis anos, Brasil, Argentina e Uruguai, instigados pela Inglaterra, combateram os paraguaios.
O pretexto era derrubar o ditador Solano López
e impedir que o Paraguai, país independente e sem miséria, abrisse uma
saída para o mar.
O
Brasil enviou 150 mil homens para o campo de batalha. Desses, tombaram
50 mil. Do lado paraguaio foram mortos 300 mil, 20% da população do
país. E o Brasil abocanhou 40% do território da nação vizinha.
Até
hoje o acesso aos documentos do conflito estão proibidos a quem
pretende investigá-los. Por quê? Talvez o sigilo imposto sirva para
cobrir a vergonhosa atuação de Duque de Caxias, patrono do Exército
Brasileiro, que comandou nossas tropas na guerra. E do Conde D’Eu, genro
de Dom Pedro II, que sucedeu o duque no massacre aos paraguaios.
Os
arquivos ultrassecretos do Brasil podem permanecer sigilosos por 30
anos. O presidente da República pode prorrogar o prazo por mais 30,
indefinidamente. Eternamente.
Em
2009, Lula enviou à Câmara dos Deputados projeto propondo o sigilo
eterno periodicamente renovado. Cedeu a pressões dos ministérios da
Defesa e das Relações Exteriores. Os deputados federais o aprovaram com
esta emenda: o presidente da República poderia renovar, por uma única
vez, o prazo do sigilo, e os documentos considerados ultrassecretos
seriam divulgados em, no máximo, 50 anos.
O
projeto passou ao Senado. Caiu em mãos da Comissão de Relações
Exteriores, cujo presidente é o senador Fernando Collor. E, para azar de
quem torce por transparência na República, ele próprio assumiu a
relatoria. E tratou de engavetá-lo. Não deu andamento ao debate nem
colocou o projeto em votação.
A
presidente Dilma decidira sancionar a lei do fim do sigilo eterno a 3
de maio, Dia Mundial da Liberdade de Imprensa. Naquela data, o relator
Collor foi a plenário e declarou ser "temerário" aprovar o texto
encaminhado pela Câmara dos Deputados.
Na
véspera de ser empossada ministra das Relações Institucionais, Ideli
Salvatti declarou que Dilma estaria disposta a atender pedidos dos
senadores José Sarney e Fernando Collor, e patrocinar no Senado mudança
no decreto para assegurar sigilo eterno a documentos oficiais. A única
diferença é que, agora, o sigilo seria renovado a cada 25 anos.
O
Congresso está prestes a aprovar a Comissão da Verdade, que irá apurar
os crimes da ditadura militar. Como aprovar esta comissão e vetar para
sempre o acesso a documentos oficiais? Isso significa impedir que a
nação brasileira tome conhecimento de fatos importantes de sua história.
Collor
e Sarney não gostam de transparência por razões óbvias. Seus governos
foram desastrosos e vergonhosos. Já o Ministério das Relações Exteriores
alega que trazer à tona documentos, como os da Guerra do Paraguai, pode
criar constrangimentos com países vizinhos. Com países vizinhos ou com
nossas Forças Armadas e personagens que figuram como heróis em nossos
livros didáticos?
O
sigilo brasileiro a documentos oficiais não tem similar no mundo. Se
não for quebrado, a presidente Dilma ficará refém da chamada base
aliada. Ontem foi o "diamante de 20 milhões de reais", hoje o sigilo
eterno, amanhã…
Na
terça, dia 14 de junho, retornaram ao Brasil os arquivos do livro
"Brasil Nunca Mais" (Vozes), que relata os crimes da ditadura militar
brasileira. A publicação, patrocinada pelo Conselho Mundial de Igrejas,
foi monitorada pelo cardeal Dom Paulo Evaristo Arns e o pastor Jaime
Wright.
O
mérito do "Brasil Nunca Mais" é que não há ali nenhuma notícia de
jornal ou depoimento de vítima da ditadura. Toda a documentação se
obteve em fontes oficiais, retirada, por advogados, de auditorias
militares e do Superior Tribunal Militar. Microfilmada, foi remetida ao
exterior, por razões de segurança. Agora retorna ao Brasil para ficar
disponível aos interessados. Muitas informações ali contidas não constam
da redação final do livro, da qual participei em parceria com Ricardo
Kotscho.
Os
arquivos da Polícia Civil (DOPS) sobre a ditadura militar já foram
abertos e se encontram à disposição no Arquivo Nacional. Falta abrir o
arquivo das Forças Armadas, o que depende da vontade política da
presidente Dilma, ela também vítima da ditadura. As famílias dos mortos e
desaparecidos têm o direito de saber o que ocorreu a seus entes
queridos. E o Brasil, de conhecer melhor a sua história recente.
Um país sem memória corre sempre o risco de repetir, no futuro, o que houve de pior em sua história.
[Frei
Betto é escritor, autor de "Diário de Fernando – nos cárceres da
ditadura militar brasileira" (Rocco), entre outros livros.
Artigo publicado originalmente em Adital