Fugir de casa por Contardo Calligaris
Antes de mencionar “A Busca”, de Luciano Moura, eu devo me declarar impedido: por razões anteriores e exteriores ao filme, serei parcial.
Primeiro. Tenho uma tremenda admiração pela roteirista do filme, Elena Soarez –ela criou, com Cao Hamburger, o seriado “Filhos do Carnaval” (HBO), que ainda me força a ficar acordado quando esbarro numa reprise noturna.
Segundo. Desde “Central do Brasil”, de Walter Salles, sou especialmente sensível às corridas território brasileiro adentro, atrás de um pai de verdade (eventualmente, marceneiro).
Terceiro e mais importante. Como o jovem Pedro no filme de Moura e com a mesma idade dele, eu fugi de casa.
Por que Pedro foge? Difícil dizer. Talvez seja por causa da recente separação dos pais. Talvez seja porque o pai (Wagner Moura) não enxerga mais o filho, que está crescendo e tem paixões próprias. Ou talvez seja porque fugir de casa, algum dia, é necessário para todos -e tanto faz que isso aconteça realmente ou de maneira figurada.
Por que eu fugi? Mesma perplexidade: uma namorada distante, a vontade de cruzar fronteiras por minha conta, a ambição de provar que podia sobreviver sem a ajuda de ninguém… As razões que eu enumeraria naquela época e que poderia enumerar hoje não me bastam. Quanto mais me esforço para encontrar uma resposta, menos entendo: eu gostava dos meus pais e do lar no qual crescia com eles.
Ou seja, Pedro não me explicou minha fuga. Em compensação, pela primeira vez depois de 50 anos, num cinema da Gávea, eu senti o que deve ter sido a dor de meus pais, quando eu sumi. No desespero do pai de Pedro correndo atrás do filho, Brasil afora, vi o drama do meu pai. A comoção foi um arrependimento? Não pelo que fiz e que faria de novo, mas, sim, pela dor que causei, embora talvez fosse inevitável.
Lembrei-me claramente de uma manhã muito cedo, em Londres, quando meu pai, cansado, bateu na porta do apartamento que eu dividia com um amigo e do qual ele tinha conseguido o endereço numa penosa investigação entre meus conhecidos, em Milão.
Não houve nenhum abraço especial. Ele pediu que eu voltasse, porque, disse, minha mãe não aguentava minha ausência e a falta de notícias. Ele nem mencionou seu próprio sofrimento. E não perguntou por que eu tinha fugido de casa.
Aceitei voltar para tranquilizar minha mãe. Mas prometi que eu fugiria de novo, assim que pudesse. E foi o que aconteceu: fui para casa e fugi de novo.
Muitos meses depois, quando voltei de vez, tampouco conseguimos falar das razões do que tinha acontecido -talvez porque, no fundo, não houvesse razões, além da banalidade do processo de crescer, de destacar-se dos pais, de encontrar uma voz própria, fora do coro.
Nesse processo, aliás, surgem motivações genéricas suficientemente poderosas para que mal seja necessário procurar “causas” na singularidade dos pais ou dos filhos. Dois exemplos.
1) Os pais nunca nos dão tudo (nem quando são loucos a ponto de querer nos fartar). Mesmo assim, durante um tempo absurdamente longo, o que temos e esperamos vem só deles. Na adolescência, começamos a desejar coisas que eles não conseguiriam nos dar nem se quisessem nos ver eternamente satisfeitos. No entanto, como eles sempre foram responsáveis por nossas satisfações, agora eles nos parecem ser responsáveis por nossas frustrações.
2) Stanley Cavell, um grande filósofo norte-americano, num ensaio de 1987, observou que todos nós sempre resistimos a deixar que os outros nos transformem, e isso acontece, ele propôs, porque temos uma memória viva (e talvez ressentida) de quanto fomos transformados por alguns outros no começo de nossa vida.
Essa intuição de Cavell pressupõe uma mágoa para com os pais pelo próprio peso que eles tiveram na nossa infância –uma mágoa fundamental, só por eles terem criado e moldado a gente.
Obviamente, essa mágoa, que animaria a rebeldia adolescente, é, de fato, mais uma marca dos pais. Pois mesmo os pais mais invasivos nunca deixam de sonhar com a autonomia dos filhos. Hostilizamos os pais e fugimos deles porque ELES mesmos querem nos ver livres e não gostam que se prolongue a influência que eles tiveram e têm sobre nós.
Ironia: quem deseja que fujamos de casa são nossos pais. E fugindo, realizamos um desejo deles.
Claro, o outro desejo deles seria que ficássemos em casa para sempre.
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Contardo Calligaris, italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New School de NY e foi professor de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas na versão impressa de “Ilustrada”.
Artigo publicado originalmente em http://www1.folha.uol.com.br