George Orwell salvou Dantas? por Douglas Fischer
Manhã do dia 10 de julho de 2008. Manchete do jornal:
"Supremo manda polícia soltar banqueiro Dantas". Voltarei ao tema. Preciso antes
compartilhar outros fatos com o leitor.
Atuando num processo ano passado, com réu condenado, vi uma
colega Procuradora da República recorrendo para absolver um réu acusado de
pequeno tráfico de entorpecentes (ela o havia denunciado, mas concluiu não haver
provas para a condenação no curso da ação). Sim, leitor, o MP deve atuar em
favor do réu também se assim entender. É o que determina a Constituição. Dei
parecer favorável. A condenação foi mantida.
Não discuto aqui a decisão que manteve a condenação: há se
respeitar o entendimento do Poder Judiciário. Mas eu recorri a favor do réu ao
STJ. O recurso foi admitido. Contudo, demora. Como demora. Porque ainda preso o
réu, resolvi entrar também com um habeas corpus a favor dele no STJ (sim,
leitor, o MP também pode entrar com habeas corpus a favor de réu para
beneficiá-lo)
Eu entendia que sua prisão (já há quase 2 anos) não tinha
fundamento jurídico (até porque o MP recorrera pedindo sua absolvição). A
liminar foi indeferida. Passaram-se mais alguns meses.
No interregno, Natal, final de ano, férias, praia para
alguns. Para outros, sol – quando muito – "quadrado". Invocando precedente do
próprio STF (aquele que serviu para a soltura de Flávio Maluf e, depois, de seu
pai, Paulo), "ousei" impetrar um novo habeas corpus, agora no STF. Isso já era
março de 2008. Havia pedido liminar para a soltura do réu. Nada. Pedi novamente
a concessão da liminar. Nada. Em 20 de junho (mais de três meses depois) sai
finalmente a decisão do relator: o habeas corpus é indeferido de plano. O
argumento: não haveria a flagrante ilegalidade e o outro hábeas, aquele perante
o STJ, estaria para ser julgado em breve. Ah, bom!
Daniel Dantas havia ajuizado um habeas corpus contra a
investigação que se fazia contra ele no TRF em São Paulo. Queria um
salvo-conduto, como se fala no juridiquês. Não ganhou a liminar. Impetrou outro
habeas no STJ. Não ganhou novamente a liminar. Foi ao STF. Mais uma vez, liminar
indeferida. Aí vem sua prisão temporária, que o levou para o cárcere dois dias
atrás.
Atente-se: o fundamento era novo porque havia um fato novo,
que não era objeto do habeas então ajuizado. Em vez de impetrar (como seria o
correto) novo habeas corpus no TRF em São Paulo, atacando a decisão do juiz que
decretou sua prisão (art. 108, I, "d", da Constituição), foi "direto" ao STF,
pedindo ampliação do pedido do habeas que lá estava. Não podia. Hipótese "per
saltum", como também dito no juridiquês. Mas a liminar foi deferida, pouco mais
de 24 horas depois da prisão.
Está solto, diz a manchete do jornal. Não há espaço para
contra-argumentar o equívoco, em meu modesto juízo, da soltura de Dantas. Não
contesto também, nem indiretamente (que fique em claro), a honorabilidade de
quem o soltou. Longe disso.
Mas quem talvez não deva estar entendendo nada é aquele
preso para quem impetrei os habeas corpus e que continua preso se souber da
manchete dos jornais de hoje.
Diante de tudo, lembro de um dos mandamentos da sátira de
George Orwel em sua Revolução dos Bichos: "Todos os animais são iguais, mas
alguns animais são mais iguais que outros".
Satiagraha (nome da Operação) define a linha de ação de
Gandhi na sua luta pela independência da Índia (Gandhi e Orwell eram indianos,
por coincidência)
Dantas é grato a seus advogados, certamente. Mas a estas
alturas, por paradoxal que seja, já deve estar acendendo velas para George
Orwell. Isso se o vento que corre solto no alto de sua cobertura na beira-mar do
Rio de Janeiro permitir.
(*) Douglas
Fischer é Procurador Regional da República
na 4ª Região (Porto Alegre),