Globo: os princípios, a credibilidade e a prática por Venício Lima
Não deixa de ser intrigante que os “Princípios Editoriais das Organizações Globo” tenham sido divulgados apenas algumas semanas após o estouro do escândalo envolvendo a News Corporation e um dia depois que um ex-jornalista da própria Globo tenha postado em seu Blog – com grande repercussão na blogosfera – que havia uma orientação na TV Globo para tentar incompatibilizar o novo Ministro da Defesa com as Forças Armadas.
Deve ter sido coincidência. Todavia, não deixa de ser intrigante que os "Princípios Editoriais das Organizações Globo"
tenham sido divulgados apenas algumas semanas após o estouro do
escândalo envolvendo a News Corporation e um dia depois que um
ex-jornalista da própria Globo tenha postado em seu Blog – com grande
repercussão na blogosfera – que havia uma orientação na TV Globo para tentar incompatibilizar o novo Ministro da Defesa com as Forças Armadas.
Credibilidade: questão de sobrevivência
A
credibilidade passou a ser um elemento absolutamente crítico no
"mercado" da notícia. O monopólio dos velhos formadores de opinião não
existe mais. Não é sem razão que as curvas de audiência e leitura da
velha mídia estejam em queda e o "negócio", no seu formato atual,
ameaçado de sobrevivência.
Na contemporaneidade, são muitas as
fontes de informação disponíveis para o cidadão comum e as TICs
ampliaram de forma exponencial as possibilidades de checagem daquilo que
está sendo noticiado. Sem credibilidade, a tendência é que os veículos
se isolem e "falem", cada vez mais, apenas para o segmento da população
que compartilha previamente de suas posições editoriais e busca
confirmação diária para elas, independentemente dos fatos.
O
escândalo do "News of the World" explicitou formas criminosas de atuação
de um dos maiores conglomerados de mídia do mundo, destruiu sua
credibilidade e levantou a suspeita de que não é só o grupo de Murdoch
que pratica esse tipo de "jornalismo". Além disso, a celebrada
autorregulamentação existente na Inglaterra – por mais que o fato
desagrade aos liberais nativos – comprovou sua total ineficácia. As
repercussões de tudo isso começam a aparecer. Inclusive na Terra de
Santa Cruz.
Os Princípios da Globo
No Brasil ainda não
existe sequer autorregulamentação e as Organizações Globo, o maior grupo
de mídia do país, não tem um único Ombudsman em suas dezenas de
veículos para acolher sugestões e críticas de seus "consumidores". Neste
contexto, a divulgação de princípios editoriais – sejam eles quais
forem – é uma referência do próprio grupo em relação à qual seu
jornalismo pode ser avaliado. Não deixa de ser um avanço.
A
questão, todavia, é que o histórico da Globo não credencia os Princípios
divulgados. Em diferentes ocasiões, ao longo dos últimos anos,
coberturas tendenciosas que se tornaram clássicas, foram documentadas. E
alguns pontos reafirmados e/ou ausentes dos Princípios agora divulgados
reforçam dúvidas. Lembro dois: a presunção de inocência e as liberdades
"absolutas".
Presunção de inocência
O Código de Ética
dos Jornalistas Brasileiros, adotado pela FENAJ, acolhe uma garantia
constitucional (inciso LVII do artigo 5º) que tem origem na Revolução
Francesa e reza em seu artigo 9º: "a presunção de inocência é um dos
fundamentos da atividade jornalística".
Não é necessário lembrar
que o poder da velha mídia continua avassalador quando atinge a esfera
da vida privada, a reputação das pessoas, seu capital simbólico. Alguém
acusado e "condenado" pela mídia por um crime que não cometeu
dificilmente se recupera. Os efeitos são devastadores. Não há
indenização que pague ou corrija os danos causados. Apesar disso, a
ausência da presunção de inocência tem sido uma das características da
cobertura política das Organizações Globo.
Um exemplo: no auge
da disputa eleitoral de 2006, diante da defesa que o PT fez de filiados
seus que apareceram como suspeitos no escândalo chamado de
"sanguessugas", o jornal "O Globo" publicou um box de "Opinião" sob o
título "Coerência" (12/08/2006, Caderno A pp.3/4) no qual afirmava:
"Não
se pode acusar o PT de incoerência: se o partido protege mensaleiros,
também acolhe sanguessugas. Sempre com o argumento maroto de que é
preciso esperar o julgamento final. Maroto porque o julgamento político e
ético não se confunde com o veredicto da Justiça. (…) Na verdade, a
esperança do PT, e de outros partidos com postura idêntica, é que
mensaleiros e sanguessugas sejam salvos pela lerdeza corporativista do
Congresso e por chicanas jurídicas. Simples assim."
Em outras
palavras, para O Globo, a presunção de inocência é uma garantia que só
existe no Judiciário. A mídia pode denunciar, julgar e condenar. Não há
nada sobre presunção de inocência nos Princípios agora divulgados.
Aparentemente, a postura editorial de 2006 continua a prevalecer nas Organizações Globo.
Liberdades absolutas?
Para
as Organizações Globo a liberdade de expressão é um valor absoluto
(Seção I, letra h) e "a liberdade de informar nunca pode ser considerada
excessiva" (Seção III).
Sem polemizar aqui sobre a diferença
entre liberdade de expressão e liberdade de imprensa – que não é
mencionada sequer uma única vez nos Princípios – lembro que nem mesmo
John Stuart Mill considerava a liberdade de expressão absoluta. Ela,
como, aliás, todas as liberdades, têm como limite a liberdade do outro.
Em
relação à liberdade de informar, não foi exatamente o fato de "nunca
considerá-la excessiva" que levou a News Corporation a violar a
intimidade e a privacidade alheia e a cometer os crimes que cometeu?
O futuro dirá
Se
haverá ou não alterações na prática jornalística "global", só o tempo
dirá. Ao que parece, as ressonâncias do escândalo envolvendo o grupo
midiático do todo poderoso Rupert Murdoch e a incrível capilaridade
social da blogosfera, inclusive entre nós, já atingiram o maior grupo de
mídia brasileiro.
A ver.
Professor Titular de Ciência Política e
Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Regulação
das Comunicações – História, poder e direitos, Editora Paulus, 2011.