Aldeia Nagô
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Golpe em marcha para tirar Ana de Hollanda do MinC por Mauro Dias

10 - 14 minutos de leituraModo Leitura

Aplaudi a indicação de Ana de Hollanda para o Ministério da Cultura
da posição independente de quem não votou na Dilma Rousseff. Aplaudi por
muitos motivos, mas dois deles já me seriam suficientes.


Primeiro, Ana
de Hollanda vinha de um não questionado período à frente da Funarte, o
que lhe conferia – confere – experiência administrativa e comprova
capacidade na lida com as complicações do tráfego burocrático. Segundo, e
mais importante, Ana de Hollanda é uma artista independente. Fez a
carreira de cantora a contrapelo do mercado, gravou o que quis gravar,
da forma como quis gravar, tendo como norte o primado estético, como
regra a integridade artística. Há quem goste e quem não goste do
trabalho da cantora Ana de Hollanda. Não há quem lhe negue honestidade e
coragem na construção da carreira.

O
fato é inédito: um artista, se não de sucesso, ao menos de prestígio,
sem ligação com a indústria (ou a academia) chega ao comando do MinC.
Bolas, todos sabemos muito bem que existem duas músicas brasileiras (e
vou falar só de música, campo que conheço bem e sobre o qual escrevo há
mais de quarenta anos). Uma delas, uma dessas músicas brasileiras, é a
criada pelo mercado, pela indústria, pelas três multinacionais que
mandam no mercado fonográfico, na difusão televisiva e radiofônica e no
trânsito virtual de informações. Essa música é, na quase totalidade
(totalidade, de fato; há uma ou outra exceções que confirmam a regra),
muito ruim. Não representa xongas para a cultura. Tem significado para a
megaindústria do entretenimento e para as bolsas de valores.
Naturalmente, a criação que circula nessa esfera tem o lucro como
objetivo. Nada contra o lucro. É só questão de pôr as coisas no lugar.

A outra música brasileira é a que o sujeito faz de acordo com sua
sensibilidade, suas convicções artísticas, seu desejo de traduzir o
mundo, à sua maneira, sem outros ditames que não os de foro íntimo. Esse
criador é o independente. Se faz um disco, ele é lançado por uma
gravadora pequena – ou o artista cria seu próprio selo para lançar o
disco. Dessa forma, a obra submete-se ao mínimo possível de
interferência externa. O resultado pode ser formidável ou pavoroso. Não
importa, é autêntico. E a verdade é: nem toda música independente é boa,
mas praticamente toda música boa em circulação é independente. Ou,
posto de outra forma: se ser independente não faz de ninguém um bom
artista, ser parte da indústria, como regra, caracteriza um artista que
se importa mais com o lucro do que com a arte.

Essa é uma discussão antiga, que embute um monte de "no entanto",
"não obstante", "por outro lado" – e joga com questões não artísticas –
necessidades particulares, questões de sobrevivência, vaidade, claro,
mas também coerência, caráter e outras qualidades (negativas ou
positivas) abstratas. Renderia páginas e páginas de exposição e outras
tantas de discussão, mas nada muda a realidade: a boa canção brasileira
está na produção independente, que, sim, também é um mercado, mas de
proporções menores do que aquele capitaneado pela grande indústria e,
por uma tradição há muito estabelecida, mais preocupado com a boa
qualidade – a autenticidade – de seu produto. A independência permite
que o artista ouse, seja diferente, corra riscos, defenda estéticas,
crie estéticas, marque presença, anuncie sotaques, explicite
estranhamentos, estabeleça parâmetros, diversifique parâmetros,
introduza ou suprima elementos, expanda experiências, enfim,
manifeste-se.

Então, quando alguém vinda dessa extração assume o Ministério da
Cultura, essa é uma boa notícia. Ana de Hollanda vem (ou melhor, é) do
mercado independente, conhece as dificuldades de se fazer cultura sem o
amparo dos mecanismos da grande indústria, sem garantia nenhuma de
chegar ao topo da parada de sucessos, mas com garantia total de fazer o
que lhe dá na telha e lhe parece bom (muitas vezes pagando do próprio
bolso para que a criação se transforme em produto, em disco).
Eventualmente entra um trocadinho, suado, sofrido, pequeno, mas estava
previsto. E é assim que a cultura se move, assim ela anda para a frente.

Uma cantora com experiência nessa área pode fazer muito pela música
brasileira – mais uma vez, estou falando de música porque é o que
conheço melhor. Com base em sua experiência no mercado independente, com
seu conhecimento de como funcionam os mecanismos que freiam a
divulgação da obra que não pertence ao grande mercado, pode dar
contribuição formidável para nosso cancioneiro. Pelo vasto conhecimento
da cultura popular tradicional, pela vivência junto aos criadores
alternativos, pelas batalhas que enfrentou para levar seus discos às
lojas, seus espetáculos aos palcos, conhece como só quem viveu a questão
as dificuldades porque passa a grande maioria dos autores, intérpretes,
músicos. Junte-se isso à experiência administrativa e podemos ter um
Ministério da Cultura que faça jus à cultura que representa.

Agora querem expulsar Ana de Hollanda do MinC. Há um golpe em
andamento. Ela mexeu em vespeiro e estão fazendo o possível para
defenestrá-la.

A nomeação de Ana de Hollanda foi uma porrada na cara da corrente
hegemônica do MinC conforme a estrutura deixada por Gilberto Gil, um
grande artista que fez carreira na indústria (os tempos eram outros,
naturalmente) e que tem cabeça de mercado, até porque as contingências
de sua trajetória são muito peculiares (outro tópico que renderia
páginas e páginas de discussão). E foi uma porrada porque Ana de
Hollanda mandou retirar da página inicial do sítio do MinC o link para
licenças do Creative Commmons, um mecanismo que permite que determinado
autor abra mão, sob certas circunstâncias, de seus direitos financeiros
resultantes da circulação da obra.

A ministra argumentou desde o início que não era necessária aquela
licença específica – que se apresenta como sem fins lucrativos -, uma
vez que a legislação ordinária permite que um autor abra mão de seus
direitos – etc. O MinC considera o link propaganda de um produto
multinacional que funciona como "barateador de custos" para a "livre
circulação da informação" – leia-se, obra de arte (música, textos e
mais). Não argumentou, muito diplomaticamente, que o tal mecanismo é
mantido por empresas de software – o Google, por exemplo, é uma empresa
de software livre, usado no mundo inteiro, gratuito. Gratuito? É o maior
empreendimento comercial da era da informática, maior do que a
Microsoft. Ganha em publicidade. Ganha fazendo circular
("gratuitamente") conteúdo ao qual vem agregado a publicidade. Ganha
monitorando virtualmente nosso gosto, nossas preferências, nossas
atividades comuns e elegendo, com base nas informações que acumula, os
produtos que devem ser de nosso interesse; cobra do anunciante, atinge
um público cuidadosamente escolhido etc., etc., etc.

Mas na hora de distribuir conteúdo – vamos falar de música,
especificamente -, o Google (e qualquer outro provedor) precisa pagar
direito autoral, de acordo com legislações vigentes no mundo inteiro.
Isso representa custo alto, dado o volume de informação em movimento. E
aí entra o "facilitador" Creative Commons, um formulário pronto, que
basta preencher e – eureca! – o autor abre mão de seu direito em troca
da garantia (na verdade, nenhuma) de estímulo para divulgação da obra,
uma vez que não há custo para quem a vai divulgar – e o verbo "divulgar"
é usado eufemisticamente no lugar do que de fato é posto em prática:
negócio. O conteúdo é negociado, não é "divulgado". Ele é trocado pelas
informações sobre seus gostos e preferências para orientar a publicidade
que você recebe quando abre determinada página.

Você dirá: mas é assim que funciona o mundo. Verdade. Só que, no
mundo dos negócios, todos os envolvidos ganham alguma coisa – uns poucos
ganham muito, uma parte ganha alguma coisa, a maioria ganha bem pouco,
mas todos ganham. No caso da "flexibilização" do direito autoral todos
ganham – menos o autor. Só que, sem o autor, não há obra, e sem obra
essa estrutura toda não tem razão de ser. Então porque apenas o autor
deve abrir mão de seu lucro, se é ele que faz rodar a engrenagem?

Claro que ninguém é obrigado a usar a licença do Creative Commmons.
Mas o autor vai pensar, inevitavelmente, que se ele não abrir mão de
seus direitos e os outros abrirem mão, a obra dele vai ser preterida,
porque tem custo, enquanto a dos outros não tem. Então, porque precisa
mostrar a obra, ele acaba abrindo mão de seu direito de autor. É só
isso. Foi só por isso que a licença foi retirada da página do MinC.
Porque ela induzia o autor a abrir mão de seu lucro – aumentando o lucro
de quem veicula sua obra. Uma espécie de Ardil 22, mais cruel – muito
mais cruel – do que o Ardil 22 original, vocês lembram? O livro "Ardil
22", do norte-americano Joseph Heller (filmado por Mike Nichols) é
passado numa guerra – da Coreia, acho. Os pilotos têm um número
determinado de bombardeios para realizar, e esse número sempre aumenta.
Então, o sujeito resolve pedir para ser dispensado, porque não aguenta
mais a barbaridade que está cometendo. Vai ao médico, que lhe pergunta:
"Você está maluco"? O cara responde que não. "Então não posso lhe dar
licença. Você não está ferido. Só poderia dispensá-lo se você estivesse
ferido ou louco. Mas se você estivesse louco não pediria para parar de
voar. Se você pede para parar de bombardear, é porque você está são. E
se você está são, não posso dispensá-lo".

Agora querem expulsar Ana de Hollanda do MinC. Há um golpe em
andamento. Ela mexeu em vespeiro e estão fazendo o possível para
defenestrá-la.

Ela feriu a lógica do Ardil 22. Como não pode ser punida por tirar
uma peça publicitária da página do MinC, o cerco vem de outros lados.
Escândalo no Ecad? Culpa da ministra. Os órfãos da estrutura montada por
Gilberto Gil & Juca Ferreira no governo Lula, que davam por certo
assumir o MinC, querem que Ana de Hollanda façam intervenção no Ecad –
mas intervenção numa entidade de direito privado, que história é essa? O
Ecad, que funciona mal, mesmo, sem dúvida, pertence aos autores. Foi
criado, nos anos 60, como órgão fiscalizador da arrecadação de direitos
autorais. Antes do Ecad, cada sociedade de direitos autorais recolhia o
dinheiro de seus associados e o distribuía de volta como bem entendesse,
sem ter de prestar contas a ninguém. O papel do Ecad é fiscalizar, de
forma centralizada, a arrecadação e distribuição, punindo quem cometa
impropriedades. O próprio Ecad, no entanto, comete (muitos) erros. Pois
que se conserte o Ecad. Que os autores (e intérpretes e arranjadores e
todos os envolvidos) se unam para fiscalizar o Ecad. Não que o governo
intervenha para acabar com o Ecad. Ou, pior do que isso, como anda sendo
defendido: que o governo se torne gestor do dinheiro do direito
autoral.

Porque essa reivindicação, vale lembrar, é antiga. É do interesse dos
donos de emissoras de rádio e televisão, concessões públicas que em
grande parte acaba nas mãos de caciques políticos – que são contra a
cobrança do direito autoral, obviamente. Os políticos vivem pedindo
intervenção no Ecad. Agora, por inocência ou desconhecimento, ou
malícia, ou interesses ocultos, um monte de gente – intelectuais em bons
postos públicos, criadores que frequentam gabinetes, ambiciosos que se
sentiram lesados com a mudança da política do MinC – estão fazendo coro
com os políticos que não querem pagar o direito autoral. E a ministra é
contra? Derrube-se a ministra!

Pois agora querem expulsar Ana de Hollanda do MinC. Há um golpe em
andamento. Ela mexeu em vespeiro e estão fazendo o possível para
defenestrá-la.

Devo dizer que não tenho procuração para falar em nome de Ana de
Hollanda. Nem estou dizendo que Gilberto Gil & Juca Ferreira tenham
agido de má fé. Apenas acho que eles estavam equivocados e que Ana de
Hollanda está certa. Ou no caminho certo. E tenho certeza de uma coisa:
se o golpe que está sendo armado der certo, estaremos dando um passo
para trás, um imenso, infinito passo atrás, em termos de democracia, de
gerenciamento independente, de visão criativa apartada (embora não
ignorante dele, atenção) do mundo do mundo do negócio. Estou com medo.

*Publicado originalmente no blog mauromaurodias.blogspot.com

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