Aldeia Nagô
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HÁ UMA GUERRA CIVIL RASTEJANTE NA SOCIEDADE CAPITALISTA por Benedetto Vecchi

10 - 14 minutos de leituraModo Leitura

A crise do capitalismo alimenta o crescimento, na Europa, de um populismo inquietante e autoritário que tem em Sílvio Berlusconi o maior intérprete. Mas abre também espaço inédito para uma política que tenda à sua superação, defende o filósofo esloveno Slavoj Zizek em entrevista a Benedetto Vecchi, do Il Manifesto. "Há uma guerra civil rastejante na sociedade capitalista. A inquietação ambiental atingiu os níveis de vigilância. A democracia é reduzida a um simulacro. Ainda assim, nem tudo está perdido", diz Zizek.



Escrita
em estilo sóbrio, a obra analisa o mundo depois da crise econômica e a
tendência de muitos governos de intervir, por meio de financiamento das dívidas
dos bancos e das grandes instituições financeiras, para evitar aquilo que
apenas há poucos anos parecia a trama de um filme de ficção sobre o colapso do
capitalismo.
Mas
o autor procura distanciar-se das posições teóricas de muitos estudiosos
marxistas, que sempre viram o neoliberalismo como um parêntese que,
eventualmente, seria substituído por uma realidade social e política mais
consentânea com as leis económicas, dando pouco espaço para os rentistas que
enriqueceram com as loucuras especulativas das últimas décadas.

Para
Zizek, ao contrário, o neoliberalismo tem sido uma adequada contra-revolução
que cancelou a constituição material e formal surgida após a II Guerra Mundial,
quando o capitalismo era sinonimo de democracia representativa. No início do
terceiro milênio, a contra-revolução terminou, abrindo espaço para uma política
radical que Zizek, em sintonia com o filósofo francês Alain Badiou, chama
enfaticamente de "hipótese comunista".

O
filósofo esloveno não fecha, porém, os olhos para o fato de que os sinais
provenientes de toda a Europa apontam para a ascensão de uma direita populista
que conquista consensos onde os partidos social-democratas eram
tradicionalmente fortes – como na Holanda, Noruega, Suécia. E também era
irônico que com os democratas e norte-americanos radicais, que "nos Estados Unidos,
depois de haver saudado a eleição de Obama para a Casa Branca como um evento
divino, agora se deleitassem em discutir se é politicamente mais incisivo
‘Avatar’, de James Cameron, ou ‘Estado de Guerra’, de Kathryn Bigelow". Eis a
entrevista:

Num
artigo, você lançou farpas contra "Avatar", definindo-o como um filme
apolítico. No entanto, no filme de Cameron, há fortes referências tanto à
guerra do Iraque quanto à destruição da floresta amazônica: em ambos os casos,
os vilões são as multinacionais…

Slavoj
Zizek:
O filme
de James Cameron é agradável, divertido, uma obra inovadora do ponto de vista
do uso das tecnologias digitais. Mas aqueles que sustentam que os críticos
radicais nos Estados Unidos são uma espécie de ala marxista de Hollywood não me
convencem. Eles escreveram que Avatar retrata a luta de classes e a luta dos
pobres contra os ricos, com o fim de auto-determinarem a sua vida. Há um
planeta, Pandora, que é invadido por uma tropa de mercenários a soldo de
multinacionais. O objetivo é depredar os seus recursos naturais, colocando,
assim, em perigo o milenário equilíbrio que os seres vivos estabeleceram com o
luxuriante ecossistema. Podemos estabelecer certa analogia com o que as
multinacionais e os países imperialistas fazem com a Floresta Amazônica, com o
Iraque ou com toda aquela realidade onde estão as fontes energéticas e as
matérias primas fundamentais para a produção de riqueza. No filme, os
aborígenes de Pandora, em nome de uma visão holística de relação com a
natureza, democraciaopõem-se ao capitalismo, vencendo, no final, a sua batalha.
Mas a natureza é um produto cultural que muda com a mudança das relações
sociais.

Os
seres sempre retiraram da natureza os meios para viver e se reproduzir como
espécie. Mas ao fazê-lo, transformaram a natureza. Não é, portanto, retornando
a uma idade de ouro idealizada, como sugere James Cameron, que se pode derrotar
o capitalismo. "Avatar" é pura fantasia, fascinante por certo, mas sempre
fantasia.

Você
tem frequentemente sublinhado que o populismo é uma doença do Político. Não lhe
parece que o populismo, mais que uma doença, seja a forma política que, melhor
que as outras, se adapta ao capitalismo contemporâneo?

Zizek: Até há alguns anos,
afirmava-se que o capitalismo era sinônimo de democracia na sua forma liberal,
fundada sobre a tolerância, o multiculturalismo e o politicamente correto.
Agora, ao contrário, assistimos às forças ou aos líderes políticos que invocam
a mobilização do povo para combater os inimigos do estilo de vida moderno. O
filósofo argentino Ernesto Laclau analisou a fundo a lógica do populismo,
sustentando que existe uma variante de esquerda e uma variante de direita. A
tarefa do pensamento crítico consistiria em evitar a derivação de direita.

Não
estou de acordo com essa posição. Em primeiro lugar, o populismo é sempre de
direita. Além disso, o povo, como a natureza, é uma invenção. Laclau acredita
que para fazê-lo tornar-se realidade deve-se imaginar um universal que contenha
e supere as diferenças dentro dele. Daí a necessidade de identificar um inimigo
que impede a formação do povo. Não é uma coincidência, então, que a forma
acabada de populismo seja o anti-semitismo, porque indica um inimigo que vive
entre nós. O mesmo fazem os populistas contemporâneos quando indicam os
migrantes como a quinta-coluna entre nós.

Na
sua avaliação, o populismo dirigirá o conflito contra inimigos de conveniência,
para esconder o sistema de exploração do capitalismo. Isso quer dizer que esta
tendência ocupa um espaço político abandonado, por exemplo, pela esquerda. Como
recuperar esse espaço?

Zizek: Walter Benjamin escreveu que o
fascismo emerge de onde uma revolução foi derrotada. Um conceito que, aplicado
à realidade contemporânea, explica o fato de o populismo emergir quando a
hipótese comunista, que não coincide com o socialismo real, é retirada da
discussão pública. Entretanto, no tolerante capitalismo contemporâneo
assistimos à campanha midiática contra os migrantes, porque atentam contra a
nossa segurança. Ou ficamos atordoados com intelectuais que, como Bernard
Henri-Levy, debatem longamente sobre a superioridade da civilização ocidental e
sobre o perigo representado pelo fundamentalismo islâmico, qualificado como
islamo-facismo.

Creio,
todavia, que há fortes pontos de contacto entre a ideologia liberal e o
populismo: ambos são pensamentos políticos que levam em conta o estilo de vida
capitalista ocidental como o único mundo possível. Os liberais, em nome da
superioridade da democracia, os populistas em nome do único estilo de vida que
as pessoas se dão. Há também diferenças. Os liberais estão impondo, mesmo com
as armas, a democracia e a tolerância entre quem não é democrático nem
tolerante. Os populistas desejam, ao contrário, aniquilar de modo suave de
polícia étnica as diversidades culturais, sociais, de estilo de vida. O
populismo é, portanto, uma das formas políticas do capitalismo global, mas não
a única. Silvio Berlusconi, frequentemente julgado como um comediante ou um
personagem de opereta, é, ao contrário, um líder político para ser estudado com
atenção, porque pretende conjugar a democracia liberal com o populismo.

O
primeiro-ministro italiano está, todavia, acelerando uma tendência presente em
todos os sistemas políticos democráticos. Sua obra visa modificar o equilíbrio
dos poderes – Executivo, Legislativo, Judiciário – para benefício do Executivo,
de modo tal que o executivo englobe o Legislativo e o Judiciário, mas sem
cancelar os direitos civis e políticos. As eleições são consideradas como uma
sondagem sobre a obra do executivo. Se Berlusconi perde, invoca em seguida a
soberania popular representada por ele. A forma política que propõe é, sim, uma
mescla entre democracia e populismo, se bem que a sua ideia de democracia seja
uma democracia pós-constitucional que faz da invenção do povo o seu traço
distintivo. Tudo isso faz com que a Itália, mais que um país atípico, seja um
laboratório inquietante onde se desenvolveu uma democracia pós-constitucional.
Desse ponto de vista, na Itália está sendo construído o futuro dos sistemas
políticos ocidentais…

O
que quer dizer com pós-constitucional?

Zizek: Uma democracia que elimina a
antiga divisão e equilíbrio entre os poderes Executivo, Legislativo e
Judiciário. Equilíbrio dos poderes definido por todas as constituições
europeias e pelo Bill of Rights dos Estados Unidos…

Na
Europa, tudo isso é chamado pós-democracia. Claro, Sílvio Berlusconi deseja
superar a democracia representativa que conhecemos no capitalismo. Por isso é
um líder político mais que nenhum outro. Acho que o presidente Nicolas Sakozy
tem uma visão muito mais clara do que aquela posta em jogo no capitalismo. Isso
quer dizer que é mais perigoso do que os outros expoentes da direita europeia
ou dos EUA. Não nos encontramos, portanto, em frente a um personagem de
opereta, que vai às mulheres e promulga leis ad personam. A tragédia apresenta sempre
momentos de opereta. Mas há tragédia quando se manifestam conflitos radicais,
onde não há possibilidade nem de mediação nem de salvação.

Será, por isso, interessante ver como evoluirá a situação italiana, que não
representa – e sobre isso, estou de acordo consigo – uma anomalia, mas um
laboratório político cuja existência condicionará muitíssimo o futuro político
da Europa. Na Holanda, na Suécia, na Noruega, na Dinamarca, na França, na
Inglaterra há, de fato, forças políticas populistas que recolhem sempre mais
consensos eleitorais graças às campanhas anti-migratórias que conduzem, mas não
têm aquele radicalismo que apresenta a situação italiana.

Dito
isso, não é preciso, no entanto, desenvolver uma visão apocalíptica da
realidade. É claro: há uma guerra civil rastejante na sociedade capitalista. A
inquietação ambiental atingiu os níveis de vigilância. A democracia é reduzida
a um simulacro. Ainda assim, nem tudo está perdido.

Pelo
contrário. Como demonstra a recente crise econômica, quando tudo parece
perdido, abre-se espaço para uma ação política radical, que eu chamo de
comunista. Tomemos o recente encontro sobre ambiente realizado no ano passado
em Copenhaga. O resultado final, mais que um êxito decepcionante, foi um
desastre político. Há propostas, derrotadas nos trabalhos da cúpula, que
indicam na salvaguarda do ambiente uma das prioridades para salvar o
capitalismo. Podemos pensar numa aliança tática com quem o carrega avante.

A
crise econômica, além disso, exigiu uma intervenção do Estado para salvar da
bancarrota empresas, bancos e sociedades financeiras. Mas isso significou que o
tabu sobre a periculosidade da intervenção reguladora do Estado foi quebrada.
Isso pode reforçar os socialistas – isto é, aqueles que apontam para uma
redistribuição dos rendimentos e de poder. Não é a política que eu amo, mas
abre espaço a propostas mais radicais. Por outras palavras, volta forte a ideia
comunista de transformar a realidade. O que proponho não é um mero exercício de
otimismo da razão, mas a consciência de que há forças e relações sociais que
podem ser liberadas a partir da camisa de força do capitalismo. Toni Negri e
Michael Hardt acham que enfatizando as características do capitalismo
pós-moderno criam-se condições para o governo da comuna – isto é, do comunismo
– graças àquilo que definiu a virtude prometeica da multidão. Mais
realisticamente, acho que devemos organizar as forças sociais oprimidas para
uma ação praticável no presente e no futuro imediato.

Você
escreve, em sintonia com Alain Badiou, que o comunismo é uma ideia eterna. Uma
política "comunista" deve, todavia, ancorar-se numa análise das relações
sociais de produção e das formas que ela assume numa contingência histórica.
Pode-se estar de acordo ou em discordância com a tese de Negri e Hardt sobre o
capitalismo cognitivo, mas os seus escritos assinalam exatamente essa
necessidade. Caso contrário, o comunismo torna-se uma teologia política, não
acha?

Zizek: Não acredito, como Hardt e
Negri, que com o desenvolvimento capitalista as forças produtivas, mais cedo ou
mais tarde, entrem em rota de colisão com as relações sociais de produção.
Precisamos agir politicamente para que isso aconteça. É esse o legado de Lenin
que não pode mais ser apagado. Mas deixemos fora os textos sagrados e olhemos o
capitalismo real. Existe certamente um setor de força-trabalho cognitiva, mas
que também continua a trabalhar em fábrica e que, como os migrantes, é reduzida
a uma condição de submissão servil no processo laboral.

Para
não jogar no lixo da história esses "excluídos", ou "marginais", é preciso uma
forte imaginação política, capaz de recompor e unir os diferentes setores da
força-trabalho. A teologia é sempre fascinante, mas, quando digo que a ideia
comunista é eterna, refiro-me ao fato de que é uma constante na história humana
a tensão de superar a condição de escravidão e exploração. Por isso, o
comunismo volta sempre, mesmo quando tudo previa que fosse permanecer
definitivamente sepultado sob os escombros do socialismo real.

Tradução:
Anete Amorim Pezzini para o Outras Palavras

Fonte: Carta Maior | Internacional, 02/05/2011

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