Homens falam demais por Antonio Risério
Depois de alguns meses morando em Brasília, flanando sem
compromisso às margens plácidas do Paranoá, em pleno ócio da campanha
presidencial – quando, por absoluta falta do que fazer, passava horas
conversando com João Santana sobre vinhos, poesia provençal, hábitos sexuais do
Oriente ou música barroca, entre outros temas igualmente fascinantes -, eis que
venho voltando aos poucos à realidade, à dura vida do verão baiano e, claro, à
nossa querida Terra Magazine. Voltando aos poucos, aviso. Voltando aos dropes.
Vivo "fazendo antropologia". Expressão que,
aliás, até uso como uma espécie de gíria particular, levando meus amigos a
sorrir. Um deles me encontra, por exemplo, tomando um chope no Pereira, no
Porto da Barra, ao pôr do sol – ou sentado no banco de uma pracinha em
Arembepe, apreciando o ir e vir das pessoas queimadas de sol – e me pergunta
"o que tô fazendo" ali. A resposta é invariável: "fazendo
antropologia". E é a mais pura verdade. Não faço outra coisa na vida.
Pois bem: "fazendo antropologia" recentemente,
em algumas andanças pela capital baiana e seu litoral norte, cheguei a uma
conclusão – melhor, a uma constatação – que não deixou de me surpreender (e a
uma das fantasias machistas que ainda carrego comigo): os homens falam muito mais
que as mulheres. Notei isso muito bem – e para minha surpresa, repito – em duas
festas que fui (um aniversário, um caruru) e observando o comportamento de meus
convivas involuntários, em espaços de bar. É impressionante. O tempo
discursivo, nesses lugares onde estive, era quase inteiramente ocupado por
vozes masculinas. Pelo homens. As mulheres falavam bem menos. E, no entanto,
temos a velha piada. "Você sabe qual é o mês em que as mulheres falam
menos? É fevereiro – porque só tem 28 dias". Mas observem dois casais numa
mesa de bar. Regra quase geral, são eles – e não elas – que controlam o tempo e
o fluxo do discurso. Que falam mais. Que tagarelam praticamente sem parar. E
quando as mulheres se ach am apenas
entre elas, não falam mais do que os homens entre si. Quando muito, o jogo
termina empatado.
Falar sobre mulheres é sempre complicado. Mas a gente
fala. Me lembro de um ensaio que publiquei há tempos, numa coletânea chamada
"O Desejo Masculino", com quase todos os textos assinados por
psicanalistas. Como sabia disso, aproveitei para falar umas duas ou três coisas
que penso delas. Mas o que deu alguma confusão foi uma passagem sobre mulheres,
onde eu falava da teoria de Sarah Hrdy, uma sociobióloga norte-americana, que
trocou a antropologia cultural por estudos de primatas, inclusive viajando para
a África a fim de examinar clitóris de fêmeas de orangotango. Entre outras
coisas, Sarah diz que o orgasmo femino está em vias de extinção, pelo fato de
não ser mais biologicamente adaptativo, vale dizer, necessário à sobrevivência
da espécie. Por isso mesmo, o clitóris das fêmeas humanas não havia se
desenvolvido como o das fêmeas de chimpanzés e orangotangos, que são enormes,
para que elas tenham prazer em receber muitos machos, em trepadas monumentais,
e gerem filhos. Na espécie humana, a
conversa é outra. O orgasmo femino e a geração de filhos se dissociaram. O
orgasmo não é mais "adaptativo". Logo, de uma perspectiva darwiniana,
tende a desaparecer. A pequenez singela do clitóris das fêmeas humanas é um
indício disso.
Bem, nunca me vi envolvido em tantas discussões com
minhas amigas. Eu não estava defendendo nenhuma ideologia, não estava afirmando
nada, etc. Apenas, expusera um ponto de vista existente na área dos estudos
biológicos. Mas não adiantava argumentar. Me vi sob fogo incessante durante uns
dias. E não só as mulheres estavam interessadas na discussão. A citação de
Sarah Hrdy me rendeu, entre outras coisas, uma longa conversa telefônica (ele,
no Rio; eu, em Brasília) com meu querido Caetano Veloso. Caetano ficou
ligadíssimo naquela história. Me fez as mais diversas perguntas. Conversamos
bastante, viajando pelos meandros do tema. E Caetano mistura observações
profundas com tiradas bem-humoradas. Lá pelas tantas, me disse: "se o
orgasmo feminino tá indo embora, eu quero ir junto com ele". Na verdade,
Caetano ficou tão interessado que acabou descolando outros textos de Sarah. E
até me deu um livro dela, que eu não tinha, de presente: "The Woman that
Never Evolved". Com a dedicatória : "Riso, aí
está. Contanto que nós outros continuemos a evoluir… Beijos".
Mas vejam: eu já estou falando demais…
No "Vocabulário Tupi-Guarani Português", o
velho Silveira Bueno oferece uma explicação curiosa para a palavra
"cunhã", com que os tupinambás designavam mulheres. O tupi, como se
sabe, é uma língua aglutinante, como o alemão. "Cunhã", segundo
Bueno, viria de "cu" ("língua") e "nhã"
("que corre"). Logo, mulher = "a língua ligeira, rápida,
linguaruda". Não acredito que a explicação seja correta. Mas aí está o
mito, encontrável nas mais diversas culturas e comunidades: as mulheres falam
demais – e, no desdobramento desse falar demais, a mania de contar tudo, a
incapacidade de guardar segredo. É o que dizem os índios brasileiros, os negros
da África, os nórdicos. Esta incapacidade feminina para o segredo é o que
explica a constituição de sociedades secretas masculinas – como a dos abakuás
de Cuba, por exemplo, que tanto fascinaram García Lorca -, em torno de certos
mistérios e fundamentos da existência e do cosmos.
Mas, assim como estou chegando à conclusão de que os
homens tagarelam mais que as mulheres, não penso que a incapacidade para o
segredo seja monopólio feminino. Guardar segredo é muito difícil para todos
nós. É quase irresistível contar o que só nós sabemos. Na verdade, a capacidade
de silenciar uma coisa depende de muitos e complexos fatores. Da opção por
isso, do tipo de compromisso que se tem diante de determinado assunto ou ação,
da confiança que se tem na pessoa que pediu a você que guardasse o segredo,
etc. É muito complexo. Eu mesmo confesso, desde logo, que guardo segredo sobre
raríssimas coisas e de raríssimas pessoas. Entre elas, o supracitado João
Santana. Mas é pela minha absoluta confiança nele que não digo nem meia sílaba
do que ele me diz que é para não dizer. Ou seja: o assunto é mais complexo –
guardar segredo implica muitas coisas. Não diz respeito a gênero ou sexo.
Além de não falar mais que os homens, as mulheres têm me
parecido, nessas minhas últimas andanças "fazendo antropologia", bem
mais concisas e objetivas. Muitos homens parecem estar mais preocupados, acima
de tudo, em demonstrar uma certa superioridade ou competência verbal. São muito
prolixos. Loquazes. Enfim, parecem mais interessados no modo de dizer do que na
substância do que estão dizendo. Posso estar completamente enganado. Mas é o
que tenho visto. Ou, ao menos, esta é a impressão que tenho sobre o que venho
ouvindo. Mas, em todo caso, vou continuar fazendo antropologia. É o que me
resta. E, sobretudo, é o que mais me encanta, fascina e diverte.
Conversei sobre essas coisas, recentemente, com algumas
amigas. Eles escutaram atentas o que eu dizia. Algo surpresas. Em silêncio. E
eu ali: falando, falando, falando…
Antonio Risério é poeta e antropólogo.
Artigo publicado originalmente em www.terramagazine.com.br