Irã: a hipocrisia de Europa e EUA e o remorso dos embaixadores por José Filho Safrany
O documento que se
lê adiante, publicado pelo Los Angeles Times, foi escrito e assinado por
seis ex-embaixadores de países europeus, no Irã: Richard Dalton (Reino
Unido), Steen Hohwü-Christensen (Suécia), Paul von Maltzahn (Alemanha),
Guillaume Metten (Bélgica), François Nicoullaud (França) e Roberto
Toscano (Itália).
Todos esses embaixadores serviram em Teerã e todos
parecem lamentar o que seus respectivos governos os obrigaram a fazer em
relação à ‘questão nuclear’ iraniana. Agora, decidiram reunir-se e
manifestar-se juntos, em dura crítica aos próprios governos e à Agência
Internacional de Energia Atômica. Aí está (mais) uma fascinante
novidade!
No documento que o
LAT publicou, expõem-se em termos muito claros a hipocrisia e o vazio de
toda a política ‘ocidental’ sobre a ‘questão nuclear’ do Irã. O que os
embaixadores dizem é que o Irã, como país soberano, tem legítimo e pleno
direito de construir e implementar seu programa nuclear; que cabe ao
Ocidente aceitar o programa iraniano e estimular o Irã a continuar a
agir responsavelmente; e, no que tenha a ver com minimizar riscos, cabe
ao Ocidente conseguir que a Agência Internacional de Energia Atômica
trabalhe construtivamente" ("Revisiting India’s IAEA vote on Iran", MK
Bhadrakumar, 17/6/2011, Indian Punchline, em
http://blogs.rediff.com/mkbhadrakumar/). Eis o que escreveram:
"Como embaixadores no
Irã durante a última década, todos acompanhamos muito de perto o
desenvolvimento da ‘crise nuclear’ entre o Irã e a comunidade
internacional. Parece-nos inaceitável que as conversações tenham
permanecido em permanente impasse por tanto tempo.
O mundo árabe e o
Oriente Médio estão entrando em nova época, na qual nenhum país está
imune às mudanças. Inclui-se aí a República Islâmica do Irã, que
enfrenta a oposição de parte significativa da população. Esse período de
incerteza abre oportunidades para que o ocidente reconsidere sua
posição fixada sobre a ‘questão nuclear’ iraniana.
Em termos da lei
internacional, a posição da Europa e dos EUA é menos sólida do que em
geral se acredita. Basicamente, está corporificada num conjunto de
resoluções aprovadas pelo Conselho de Segurança da ONU que autorizam
medidas de coerção em caso de "ameaças à paz".
Mas onde estaria a
ameaça? No enriquecimento do urânio em centrífugas iranianas? Não há
dúvidas de que se trata de atividade sensível, em país sensível, em
região altamente sensível. As preocupações manifestadas pela comunidade
internacional são legítimas, e o Irã tem um dever moral, além da
necessidade política, de responder a elas.
Mas, em princípio,
nada, na lei internacional ou no Tratado de Não Proliferação Nuclear
proíbe o enriquecimento de urânio. Além do Irã, vários outros países,
signatários e não signatários do Tratado, enriquecem urânio sem que, por
isso, sejam acusados de "ameaçar a paz". E no Irã essa atividade é
regularmente inspecionada pela Agência Internacional de Energia Atômica
[ing. International Atomic Energy Agency (IAEA)]. Essas inspeções, é
verdade, são limitadas por um acordo de salvaguarda datado dos anos
1970s. Mas também é verdade que a IAEA jamais encontrou no Irã qualquer
evidência de desvio de material nuclear para finalidades militares.
Haveria então alguma
ameaça à paz, porque o Irã estaria tentando ativamente construir uma
arma nuclear? Já há três anos, a comunidade de inteligência dos EUA
descartou completamente essa possibilidade.
O diretor da
inteligência nacional dos EUA, James Clapper, em depoimento que prestou
ao Congresso dos EUA em fevereiro, declarou que: "Continuamos a
investigar se o Irã mantém aberta a opção de desenvolver armas nucleares
(…). Mas nada há que confirme que o Irã, algum dia, abrirá a
possibilidade de construir armas nucleares (…). Ainda entendemos que
qualquer decisão iraniana a favor de, no futuro, construir armas
nucleares será sempre orientada por uma abordagem de custos-benefícios, o
que oferece meios para que a comunidade internacional influencie
Teerã."
Hoje, a maioria dos
especialistas, mesmo em Israel, parece constatar que o Irã luta para
tornar-se "país limítrofe" [ing. "threshold country"], com competência
técnica para produzir armamento nuclear, mas que, no presente, optou por
não o fazer. Outra vez: nada na lei internacional ou no Tratado de Não
Proliferação Nuclear proíbe que o Irã faça o que até agora tem feito.
Como o Irã, há vários
outros países no mesmo caminho, ou que já alcançaram aquele limiar, mas
comprometeram-se a não produzir armas nucleares. Esses países de modo
algum são considerados como "ameaça à paz".
Ouve-se repetir com
frequência que a má vontade do Irã, a recusa a negociar com seriedade,
teria deixado nossos países sem escolha e obrigados a levar o Irã a
julgamento pelo Conselho de Segurança em 2006. Aqui tampouco as coisas
são tão simples.
Lembremos que, em
2005, o Irã estava disposto a negociar um número máximo para suas
centrífugas e a manter seu nível de enriquecimento de urânio muito
abaixo dos níveis necessários de enriquecimento para produzir armas.
Teerã também se manifestou disposta a implantar o protocolo adicional
que firmara com a IAEA pelo qual se permitiam inspeções não programadas
em todo o território iraniano, mesmo em locações não divulgadas. Mas,
naquele momento, europeus e os EUA já estavam decididos a proibir todo o
programa iraniano de enriquecimento de urânio.
Hoje, os iranianos
assumem que essa decisão de Europa e EUA não mudou, e que aí está a
razão pela qual o Conselho de Segurança insiste em forçar o Irã a
suspender todas as atividades de enriquecimento. Mas o objetivo de
chegar a "zero centrífugas operantes no Irã, mesmo que só
temporariamente" não é realista, e esse irrealismo contribuiu muito
decisivamente para que se criasse o impasse atual.
Evidentemente, muitos
de nossos líderes debatem-se num dilema. Por que oferecer ao regime
iraniano uma abertura que pode ajudar a restaurar sua legitimidade
nacional e internacional? Não se deveria esperar que se eleja lá um
sucessor mais palatável, para considerar a possibilidade de uma nova
abertura?
Essa questão é
legítima, mas não se deve superestimar a influência de uma negociação
nuclear no rumo que tomem as questões internas no Irã. Ronald Reagan
costumava chamar a União Soviética de "o império do mal", mas isso não o
impediu de negociar intensamente o desarmamento nuclear com Mikhail
Gorbachev; e não se o pode acusar pelos sucessos que obteve com vistas
ao desarmamento.
Os cinco membros
permanentes do Conselho de Segurança e a Alemanha devem, é claro, manter
o foco em questões políticas e de direitos humanos, mas também devem,
simultaneamente, tentar trabalhar com mais empenho para resolver um
problema ainda urgente e sempre frustrante, de proliferação. Se o
fizerem, reduziremos consideravelmente uma fonte de graves tensões, numa
região que, mais que nunca, anseia por tranquilidade.
O fracasso da última
rodada de negociações em Istanbul no final de janeiro e a recente
frustrante troca de cartas entre as partes aí estão para mostrar, mais
uma vez, que o impasse existe e persiste, difícil de superar. Nesse
processo, quanto mais as negociações sejam discretas e técnicas, maiores
as chances de que se obtenham avanços. E quanto à substância, já
sabemos que qualquer solução dependerá, sempre, da qualidade do sistema
de inspeção da Agência Internacional de Energia Atômica.
Ou bem todos
confiamos na capacidade e na competência da IAEA para supervisionar
todos os estados-membros, inclusive o Irã, ou não. E se não confiamos, é
preciso esclarecer por que não confiamos; e se, se consideramos a
organização confiável só quando supervisiona os membros mais virtuosos,
faz algum sentido continuar a manter a IAEA.
O próximo passo para
sairmos do impasse tem de ser os dois lados consultarem a IAEA para
sabermos de que novas ferramentas a Agência precisa para que possa
monitorar satisfatoriamente o programa iraniano e oferecer laudos
confiáveis, de modo a que, se a Agência afirmar que o programa iraniano
tem finalidades pacíficas, esse laudo seja levado a sério. A resposta
que a IAEA nos dê, servirá